Histórias Para Ninar Gente Grande

G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira

Mangueira, tira a poeira dos porões

Ô, abre alas pros teus heróis de barracões

Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões

São verde e rosa, as multidões

 

Brasil, meu nego

Deixa eu te contar

A história que a história não conta

O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra

 

Brasil, meu dengo

A Mangueira chegou

Com versos que o livro apagou

Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento

Tem sangue retinto pisado

Atrás do herói emoldurado

Mulheres, tamoios, mulatos

Eu quero um país que não está no retrato

 

Brasil, o teu nome é Dandara

E a tua cara é de cariri

Não veio do céu

Nem das mãos de Isabel

A liberdade é um dragão no mar de Aracati

 

Salve os caboclos de julho

Quem foi de aço nos anos de chumbo

Brasil, chegou a vez

De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

Em 2019, a Estação Primeira de Mangueira chegou ao seu vigésimo campeonato das escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro. Além de ser uma escola tradicionalíssima, berço de muitos bambas e talvez uma das mais icônicas marcas do carnaval com seu verde e rosa, nos últimos anos, a escola liderada pelo carnavalesco Leandro Vieira tem levado para a avenida enredos questionadores, políticos, e acima de tudo, que levam toda a brasileiridade para a avenida. E neste ano de campeonato não foi diferente. Com o título “Histórias para Ninar Gente Grande”, o enredo tratava dos heróis da história brasileira esquecidos pelos livros, daqueles que não estão nos retratos, ignorados mas que tiveram grande papéis “na história que a história não conta”. Com tudo que deu o que falar nesse desfile e a vitória acachapante da verde-e-rosa, pouco se debruçou realmente sobre quem são os heróis da história escrita pela Mangueira. Estamos aqui para isso.

Leci Brandão

Junto com Jamelão, é uma das “heróis do barracão mangueirense” exaltada no samba-enredo. Apesar de nascida em Madureira e criada em Vila Isabel, Leci fez história no morro da Mangueira ao ser a primeira mulher a desfilar na ala de compositores da escola. No começo da carreira, Leci Brandão cantava nas noites de samba do teatro Opinião até ser convidada por Sérgio Cabral (não o governador, mas um jornalista e crítico) para gravar um disco em 1973. Seu LP completo de 1975 foi sucesso de crítica. São mais de 40 anos de carreira, dentre os quais um período de 5 anos de silêncio forçado: as gravadores se recusavam a gravar as músicas com letras de alto cunho social e político. Apesar da retaliação, Leci diz ter muito orgulho de seu engajamento.

 

Leci Brandão

Jamelão

Se você falar o nome José Bispo Clementino dos Santos, ninguém vai saber quem é, mas Jamelão faz o olho de qualquer sambista brilhar. Desde jovem envolvido com a música, era cantor de festas de gafieiras no Rio dos anos 30, mas se achou tocando tamborim na bateria da Mangueira. Apesar do talento com o instrumento, ficou mesmo conhecido como o longevo puxador dos sambas da verde e rosa entre 1949 a 2006, sucedendo ninguém mais ninguém menos que Xangô da Mangueira como cantor principal. Chegou a receber a medalha de Ordem do Mérito Cultural das mãos do presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2001. Morreu em 2008, mas, independente de reconhecimentos externos, Jamelão é um pedaço importante e inesquecível da história da escola da samba – e não precisou ter seu nome escrito nos livros de história para deixar sua marca na Mangueira.

 

Jamelão

Dandara

Esposa de Zumbi dos Palmares, é reconhecida como uma guerreira que lutou ao lado de outros negros contra as investidas ao quilombo. Muitas partes de sua biografia são desconhecidas, como, por exemplo, se ela nasceu já no Brasil ou veio trazida da África. Apesar disso, há concordância de que foi uma liderança crucial na organização politica e social quilombola. Após uma investida que derrubou a resistência de Palmares, Dandara teria se jogado de um penhasco para evitar ser escravizada novamente.

As lendas de Dandara

Índios Cariri

Os cariri não eram uma única etnia, mas diversas que se juntaram e ocuparam uma extensa área no que hoje é a região Nordeste do país. Organizaram algo como uma confederação para resistir à dizimação dos povos indígenas após a saída dos holandeses, e por sua luta foram chamados “bárbaros”. Há relatos de meados do século XVIII de que alguns cariris ajudaram os quilombolas do Cumbe (Pernambuco).

“Um dragão no mar de Aracati” ou Chico da Matilde

Estes são os apelidos de Francisco José do Nascimento, um jangadeiro cearense cujo trabalho principal era carregar escravos do continente até o navio negreiro e vice-versa. Quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, Chico se recusou a fazer o transporte da “carga”, o que na prática impedia o comércio escravista na região, e com isso conseguiu forçar a libertação dos escravos no estado.

Dragão de Aracati – Chico da Matilde

Caboclos de Julho

2 de julho de 1823, independência da Bahia da dominação portuguesa. A data pode parecer estranha, já que o Brasil se tornou independente em 1822. Mas a luta de independência antecede a independência “oficial” em sete meses com a assinatura de uma declaração de independência em 14 de junho de 1822 em Santo Amaro da Purificação em nome da unidade nacional e da autoridade de D. Pedro I. O processo não teve nada de pacífico e os caboclos – personificação guerreira de todas as etnias que lutaram em uma única figura – lutaram frentes em terra e no mar. Aqueles que lutaram tinham várias faces: negros, pobres, descendentes de indígenas – e venceram um processo que não foi nada de pacífico, ao contrário do retrato às margens do Ipiranga descrito pela história.

Malês

Era como eram conhecidos os negros muçulmanos alfabetizados em árabe, mas principalmente conhecidos pela Revolta de 1835 na Bahia. Com um total de cerca de 1500 escravos, a principal bandeira da revolta era a liberdade de culto, mas foram fortemente reprimidos pelas tropas imperais. O objetivo final era estabelecer uma república islâmica com os negros libertados.

Luísa Mahin

Escrava de origem árabe, uma malês, comprou sua liberdade no começo do século XIX e ganhava a vida como quituteira em Salvador. Seu filho – o abolicionista Luiz Gama – relatou que a mãe dizia ter sido princesa na África antes de ser escravizada. Os revolucionários transmitiam mensagens através de seus tabuleiros de quitutes, que circulava em toda a Salvador, assim organizando as revoltas escravas e separatistas, incluindo a Sabinada (1837-38).

Luisa Mahin

Marielle Franco

Mulher negra nascida na favela da Maré, no Rio de Janeiro. Formada em sociologia, mestre em administração publica, foi eleita vereadora do Rio com a quinta maior votação em 2016. Defensora dos direitos das mulheres e estudiosa das condições de vida nas comunidades da cidade, Marielle foi assassinada junto com seu motorista, Anderson Gomes, numa emboscada. Até hoje nem as circunstância do crime, nem os culpados foram identificados.

 

Marielle Franco

Obviamente que a história destas personagens não cabe em um parágrafo e que há tantos outros heróis esquecidos pelos livros de história (outros tantos foram lembrados e homenageados no desfile), mas é crucial lembrarmos que a história vai muito além do que vimos na sala de aula. Há tantas mulheres, e negros, e índios, e pobres que deixaram sua marca na construção desse país e lutaram por seus e nossos direitos e liberdades. Que iniciativas como a da Estação Primeira de Mangueira não se percam num mar de desinformação e esquecimento e que mais e mais brasileiros possam descobrir a força e inspiração dessas figuras. Vamos nós, todos e juntos, construir a história que queremos. Sejamos nossos próprios heróis. Afinal, como já diz o samba da escola, é na luta que a gente se encontra.