Você conhece a poesia do Carlos Drummond de Andrade “O Homem; as viagens”? Vou dar um gostinho aqui embaixo. Mas leia ela toda, você não vai se arrepender 😉

O Homem; as viagens – Carlos Drummond de Andrade

O homem, bicho da terra tão pequeno
Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua.

[…]

Vamos a vênus.
O homem põe o pé em vênus,
Vê o visto – é isto?

Idem.

[…]

Restam outros sistemas fora
Do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.

 

Conheci esse poema pelos olhos de Ailton Krenak, vencedor em 2020 do prêmio Juca Pato pela União Brasileira de Escritores.

Nada mais atual. Talvez haja vida em Vênus, não é mesmo?

Em seu novo livro pela CIA das Letras, “A vida não é útil”, Krenak nos convida a pensar no significado da vida [1] e a cair com Drummond, um dos paraquedas coloridos de que fala para adiarmos o fim do mundo [2].

 

Livros de Ailton Krenak publicados pela Companhia das Letras. No meio, o e-book nascido no começo da pandemia de COVID-19, publicado como capítulo do “A vida não é útil” (2020).

 

É fantástica e inegável a capacidade da ciência de nos permitir sonhar com viagens para outros mundos. Esse conhecimento científico que nos tem levado cada vez mais distante nada é sem perguntas.

Saber fazer boas perguntas é uma das habilidades que aprendemos ao nos tornarmos cientistas, cada um em sua área do saber. Deslocar pressuposições é parte desse caminho para chegarmos a possíveis respostas e resultados. A maestria de artistas, poetas e filósofos em produzir esses deslocamentos nos ajuda a resgatar o motivo e o que nos motiva a fazer ciência, sobretudo em tempos de negacionismo.

Nesse sentido, Ailton Krenak nos guia em uma viagem que entrelaça múltiplas formas de conhecimento sem sair do planeta, do país, da aldeia ou de casa. Chega em boa hora, em meio à pandemia que evidenciou dimensões até então não palpáveis de nossas desconexões e conexões globais. Hoje vivemos dia a dia com a descoberta de que nossos corpos em circulação ou em quarentena, alimentados pelo agronegócio, afetam e são afetados por milhões de vidas [3].

Percorrendo caminhos entre músicos como Milton Nascimento, xamãs, filósofos e cientistas, Krenak constrói linha por linha o paraquedas-foguete da viagem para dentro de nós mesmos. A cada página, nos vemos convivendo com algo muito maior do que a ideia de humanidade comporta [4].

Nos seus capítulos-paraquedas, o autor lança perguntas centrais para repensarmos nossas vidas e nossa forma de fazer ciência:

  1. Não se come dinheiro: A ideia de humanidade é útil para o que e para quem? O que é a vida?
  2. Sonhos para adiar o fim do mundo: Por que contar sonhos?
  3. A máquina de fazer coisas: Quem é a praga que come o mundo? Como recriamos mundos?
  4. O amanhã não está à venda: Faz sentido esperar a volta à “normalidade” depois da pandemia?
  5. A vida não é útil: Por que vivemos? Vale a pena adiar o fim de que mundos?

Ao fim da leitura, me perguntei: quão longe a ciência poderia ir com esses deslocamentos?

***

Esse é um livro para levar no peito e compartilhar. Ler, emprestar, trocar, reler e contar como se sonho fosse. Nas palavras do autor, contar sonhos é veicular afetos com pessoas com quem convivemos, nos preparar para nosso cotidiano e afetar o mundo sensível.

 

NOTAS

[1] A deviante Suzane Melo fez uma excelente resenha sobre o primeiro livro, Ideias para adiar o fim do mundo, em que ele nos guia nesse percurso da queda do céu descrita por Davi Kopenawa.

Suzane também entrevistou a bióloga Marta Marcondes que analisou rompimentos de barragens como a de Brumadinho.

O povo Krenak, que continua habitando o vale do rio Doce, foi afetado pelo rompimento das barragens de Mariana (MG) em 2015 e de Brumadinho (MG) em 2019.

O Chutando a Escada, no episódio Mar de Lama, trouxe várias referências sobre esses crimes. A deviante Izabella Romansini fez um balanço preciso de 1 ano de Brumadinho (27/01/2020).

A mineradora Vale S.A., a principal responsável por esses crimes, acelerou a predação durante a pandemia, como Ailton Krenak observou no capítulo Não se come dinheiro.

 

[2] Para uma perspectiva científica sobre o que é vida, ouça o SciCast A busca pela vida: Marcadores Químicos (18/09/2020). Como nossos queridos deviantes Fencas, Marcelo Guaxinim, Bruna, Iuri, Eduardo e Matheus observaram, a vida não tem uma definição única e direta. A noção que temos de vida até agora é limitada, pois se baseia na fonte de nossa própria vida aqui na Terra. Mas ainda há muito a conhecer nos oceanos e em outros planetas para sabermos se há outras vidas possíveis.

Ouça também sobre esse tema:

O SciCast Origem da Vida (13/03/2015).

Camila Esperança fez o Spin de notícias bem didático Qual o real impacto da descoberta de Fosfina em Vênus? (26/09/2020).

 

[3] A pandemia, como diz o autor, deveria enviar a conta do estrago para o “agro é pop”. Para quem acha que está exagerando, recomendo o livro recém-traduzido para o português Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência de Rob Wallace.

Wallace é biólogo evolucionista com PhD na Universidade da Cidade de Nova York e pós-doutorado na Universidade da Califórnia. Agradeço à antropóloga Dibe Ayoub por ter me apresentado esse debate e autor =)

 

[4] A entrevista de Ailton Krenak sobre a sustentabilidade ser vaidade pessoal à Fernanda Santana é uma das melhores sínteses da questão ambiental hoje. Como esse importante ativista do movimento socioambiental diz sem meias palavras: “Não serão pessoas, individualmente, que farão a diferença, porque agora nos constituímos numa força planetária atuando de maneira predatória”.

No capítulo A vida não é útil, defende que precisamos reconhecer que a saída é coletiva para nos permitirmos uma outra compreensão sobre a vida na Terra, entendendo que somos parte da natureza.