A arte permite reflexões sobre a sociedade ao apresentar experiências, reais ou fictícias, que não teríamos no cotidiano. Nesse texto (e em outros que virão), pretendo usar isso com uma obra de arte que admiro muito, o RPGuaxa. Mais especificamente, vamos discutir o que é agir eticamente e o conflito de culturas a partir do incrível RPGuaxa #68, Primeiro Contato.

O debate

RPGuaxa é um podcast de RPG (Role Play Game) com episódios one shot, que têm começo meio e fim no mesmo episódio. O assunto surgiu no debate sobre o episódio com o padrinho do podcast, Felipe Ronchi Brigido. Graças a ele, percebi que “Primeiro Contato” permite uma reflexão interessante sobre a ética em diferentes culturas.

Dentro desse tema, vamos pensar os problemas de analisar a conduta de outras sociedades, geográfica ou historicamente distantes, a partir de um Código de Ética próprio.

Alertas para quem não viu o episódio

Antes de entrar no debate, valem algumas notas:

1) sim, haverá spoilers sobre, e somente sobre, o episódio 68. Se você tem a intenção de ouvi-lo, sugiro que o faça antes de ler, pois o texto vai estragar a experiência. É só clicar aqui;

2) você não precisa ter ouvido o episódio para acompanhar e apreciar o texto, mas vai aproveitar mais se tiver feito. Caso não ouça antes, quem sabe você decida ouvir depois (deixe um comentário se ouvir por causa do meu texto =D);

3) caso você seja ouvinte do RPGuaxa, mas não tenha chegado nesse episódio ainda, não tem prejuízo você ouvir ele antes dos demais;

4) estou escrevendo esse texto antes do Guaxaverso (podcast em que o host comenta sobre o episódio), portanto, pode ser que algum conteúdo tratado lá torne erradas algumas das considerações, mas isso não prejudica a discussão que pretendo trazer.

O episódio

Não vou narrar o episódio inteiro, mas tenho que destacar os pontos importantes para a discussão. Pra não dizerem que não avisei, a partir daqui, teremos spoilers.

A pesquisa na ética humana

Um dos pontos centrais no episódio é a troca que os aliens fazem com os tripulantes humanos da nave Unicórnio, modelo Zenit 7500. Nessa troca, a capitã da nave, Ada Rogato (homenagem do Guaxa à Ada Leda Rogato, pioneira da aviação no Brasil) aceita ir para a nave alienígena e, em troca, os aliens deixam uma fêmea de sua espécie com os demais tripulantes.

O episódio deixa claro que há uma intenção de busca de conhecimento, ainda que alguns, inclusive os próprios jogadores, especulam que podem ter intenções ocultas que não ficaram claras no episódio. Nesse momento, fica gritante a diferença das formas de cada espécie tratar seus visitantes.

Os jogadores, em espacial a Lorena, controlada pela Fernanda, fazem a pesquisa da forma menos invasiva o possível. Tenta explicar os procedimentos, pede o consentimento para tirar o sangue, utiliza scanners corporais para estudar a anatomia e não faz nada muito invasivo.

De fato, os jogadores trataram a Ali, nossa etzinha, como alguém com vida e sentimentos. Carlos, inclusive, se empenha em interagir com ela e até ensinar xadrez (Felipe Xavier, até com atributo 5, é um doce de pessoa).

A pesquisa na ética alien

O problema começa quando eles percebem que o sentimento predominante na Ali é o medo. Seu medo vem de traumas do passado, de pesquisadores que não foram tão éticos como a nossa Lorena. Com isso, surge o medo sobre o que está acontecendo com a capitã Ada, mãe de Lorena e Carlos.

Ao entrar na nave alien para verificar, o Russo, Chekov, controlado pelo Gabriel Pinheiro, vê Ada morta numa, com todos os seus órgãos retirados de seu corpo. Diante da cena, os humanos fogem, deixando o corpo de Ada para trás e levando Ali consigo.

Acontece que a morte de Ada não era bem o que parece, porque depois Ada reaparece viva, ainda que com próteses metálicas, sangue modificado e algumas partes internas fora do lugar.

Ada se comunica com a nave Unicórnio da nave alien e pede que parem para fazer a troca. Contudo, vendo o desespero de Ali com a possibilidade de voltar à nave, os humanos, apesar de receber Ada, usam de armas para ameaçar os aliens e ficarem com nossa etezinha.

Alguns pressupostos pro nosso debate

Algo que se pode perceber facilmente no episódio é que a nave alienígena era uma expedição científica e não queria ou não podia entrar em batalha. Os alienígenas não apenas pareciam mais fracos fisicamente, mas também não demonstraram ter armas.

Para fins dessa análise, vamos ignorar algumas possíveis interpretações da aventura.

Primeiro, vamos considerar que a Ada não tenha sido modificada para ser uma infiltrada dos ETs na nave. Também vamos presumir que os alienígenas não pretendiam seguir a Unicórnio até a Terra.

Então, nosso pressuposto é que a intenção era apenas um “intercâmbio” científico. Portanto, a expedição consistia em procurar outras espécies no universo para fazer a troca de pessoas para analisar e ganhar conhecimento.

A primeira impressão

Bom, a primeira impressão sobre tudo isso é: eles não queriam guerra, eram apenas cientistas sem muita ética de pesquisa. Sem ética porque tratavam pessoas como mero objeto, sem preocupação com matar ou, ao ressuscitar, em colocar tudo em seu lugar.

A falta de ética também aparece na forma como tratam a Ali, que parece ser obrigada a se submeter a exames feitos por diversas naves. Inclusive, parece que alguns desses não se preocupavam em pedir o consentimento ou não causar dor a ela.

Ouso dizer, se considerar que Ada foi revivida e não teve traumas do evento, a situação de objeto de troca em que está a Ali é o que mais causa repulsa.

O problema com essa impressão

É complicado, se não errado, dizer que os aliens não agiram eticamente. Ao fazer isso, impomos nossas regras éticas a uma cultura completamente diferente.

Uma cientista brasileira que, hoje, agisse como os ETs, estaria, sem dúvidas, sendo antiética, pois estaria contrariando as normas da sociedade em que está inserida.

Portanto, não há elementos suficientes para dizer se os aliens agiam ou não de forma ética, porque não conhecemos as regras éticas da sociedade deles. Mas vamos supor que, dentro de sua própria visão estavam agindo corretamente.

Aliás, no desenvolver da mesa (jogo), vemos que eles seguiram alguns protocolos que podemos atribuir a uma espécie de Código de Ética próprio.

O Código de Ética alien

Em primeiro lugar, eles fizeram uma troca de um humano por um sujeito da raça deles. Isso mostra um quê de diplomacia e busca do conhecimento em conjunto com as demais espécies. Talvez isso até seja algo que venha de normas, jurídicas ou políticas, de relações intergaláticas, que suponho que podem existir por eles terem estranhado as tentativas de recusa do Carlos.

Em segundo lugar, Ada acompanhou os aliens voluntariamente. Ainda, apesar de não terem como se comunicar de forma adequada e não haver um consentimento verbal, podemos dizer que eles entenderam que Ada aceitou ser objeto da experiência. Inclusive, em momento algum utilizaram força ou impuseram sua vontade diante dos terráqueos.

Em terceiro lugar, eles não mataram a Ada, ou pelo menos a trouxeram de volta. Por mais que nós possamos ficar incomodados com o fato de ela ter sido modificada, podemos presumir que, para eles, nada demais aconteceu durante o procedimento.

Por fim, mesmo após perseguirem a nave Unicórnio, que fugiu com Ali, eles apenas a abordaram para realizar a troca, sem violência. A única violência ocorrida foi por parte dos terráqueos, que os ameaçaram com armas para ficar com a Ali. Pensando da perspectiva deles, eles foram as vítimas, pois tiveram uma de suas tripulantes sequestrada, ou, caso vejam ela como uma propriedade, roubada.

Pra ficar claro, a intenção, até aqui, não é julgar os ETs nem passar pano pra eles, mas apenas entender sua perspectiva. Vamos debater um pouco de ética para construir uma base para as análises.

Existem normas éticas universais?

O que está por trás da discussão é se existe um Código Ético universal, uma forma universal de “agir corretamente”.

Lógico que esse código universal não seria algo simples, não seria uma lista abstrata de como se comportar, como são nossas leis. Isso seria difícil, pois o agir corretamente depende das circunstâncias de cada caso.

Em outras palavras, uma mesma ação pode ser certa ou errada a depender do caso concreto. Assim, seria impossível, ou ao menos impraticável, escrever normas regulassem todas as peculiaridades de todos os casos. É por isso que alguns pensadores trabalham o agir ético como algo que só pode ser construído na prática (ou na práxis), nunca abstratamente.

Poderiam existir normas éticas universais?

Há duas possibilidades de existirem normas éticas universais.

A primeira é a partir de uma autoridade transcendental que impõe essas normas. Essa é a forma comumente defendida pelas religiões. Nesse caso, um ou mais deuses analisam e julgam as condutas dos seres para sopesar se foram boas ou ruins.

A segunda é a existência de normas éticas naturais. Essas podem ser pensadas por meio da razão, por exemplo, considerando conceitos como a necessidade de convivência social. É o que defendem alguns filósofos, como Kant, com seu imperativo categórico.

Apenas para ilustrar, e colocando de forma simplificada, Kant diz que você deve agir como se suas ações fossem se tornar leis universais, como se todas as pessoas devessem agir como você. Nesse sentido, matar, por exemplo, é errado, pois não seria bom que todos pudessem matar.

O problema das normas universais

O problema com qualquer uma dessas formas é que não temos como saber se são as nossas normas que correspondem ao ético universal. Além disso, diante de um confronto com uma cultura diferente, não temos como saber se o correto é o nosso modo de agir, o do outro, ou nenhum dos dois.

Diante disso, sequer é relevante, para pensar o agir corretamente, a discussão de se existe um ético universal ou não. Contudo, vamos explorar o outro lado.

Normas éticas histórico-sociais

Outra possibilidade é que não existem normas éticas universais. Xada sociedade, inserida em seu contexto espacial e temporal, tem seu próprio conjunto de normas éticas.

É interessante notar que mesmo esse conjunto de normas éticas não é algo estável, pois, diferente da vertente teológica, não existe um ente “sociedade” com uma vontade única que concorda no que é certo ou errado.

Assim, o Código Ético de cada sociedade é um conjunto, ou mesmo um conflito, dos vários códigos éticos dos indivíduos que a compõe.

Conflito de culturas

Considerando esse relativismo moral, precisamos pensar como lidar com culturas diferentes e que julgamos erradas.

Se entendemos que há uma moral absoluta e nossa sociedade a conhece, chegaremos à mesma conclusão que os Europeus na época das colonizações, de que temos um dever moral de levar nossa cultura aos outros povos.

Contudo, não temos como ter certeza disso, portanto, me parece não ser a melhor opção.

Levando isso em conta, uma postura possível seria a inação, ou seja, deixar que cada sociedade resolva seus conflitos internos conforme o que julga correto. Isso leva a dois problemas.

O problema das minorias

O primeiro problema é que as sociedades não são homogêneas, então haverá conflito de “Códigos Éticos” dentro da própria sociedade. Poderia se pensar que basta dividir essa sociedade em grupos menores que compartilhem um Código de Ética.

Essa é uma solução complicada. Primeiramente, os conflitos não necessariamente ocorrem em espaços geográficos separados, dificultando a divisão das pessoas. Em segundo lugar, cada pessoa discordará, em algum ponto, de cada uma das outras. Sem a possibilidade de se estabelecer um critério estável de divisão das sociedades, acabaríamos com o absurdo de sociedades de uma pessoa.

Sendo assim, para que não haja a imposição das normas éticas de um sobre os demais, é necessário que a sociedade considere os interesses das minorias em suas decisões políticas, ou sempre restará uma relação de repressão.

Onde começa e termina a sociedade?

Se o primeiro problema está nos limites internos da sociedade, o segundo está nos externos. Da mesma forma como não é viável apartar as das minorias das maiorias em uma sociedade, também não há como separar completamente uma grande sociedade da outra, ainda mais num mundo globalizado.

Atualmente, tendemos a identificar as grandes sociedades com os países, contudo, como vimos em vários SciCasts, como o de Estado e Nação, essa é uma criação recente.

Além de recente, cria divisões arbitrárias, tanto de países que incluem culturas bem distintas como a Espanha com os catalães, bascos etc , quanto de culturas que estão divididas em vários Estados como os curdos.

Na verdade, as pessoas de todos os países interagem em algum nível, maior quanto mais avança a globalização. Por isso, o conjunto dos povos não deixa de formar uma grande sociedade global, com culturas sempre entrando em choque.

Portanto, o conflito de culturas é inevitável e, na minha visão, algo bom. Bom porque, se não podemos ter certeza se nossas práticas são corretas, confrontá-las com o diferente é uma ótima maneira de repensá-las.

Então caímos num relativismo total?

Uma saída pra essa questão é o niilismo, ou seja, podemos concluir que nenhum Código de Conduta está correto. A partir do niilismo, temos dois caminhos:

(1) considerar que tudo é relativo (ainda  que a frase seja um paradoxo em seus próprios termos, já que “tudo é relativo”, é uma afirmação absoluta);

(2) construir algo a partir dessa falta de um sentido a priori.

A primeira saída, o relativismo total, não é interessante por um motivo simples. Ao considerar que tudo é correto, inviabiliza-se a vida em sociedade. Assim, nós teríamos um “vale-tudo”, um verdadeiro estado de natureza hobbesiano (sobre isso, dá uma olhada no SciCast sobre Estado de Direito).

A segunda saída é difícil, mas, pra mim, é o grande desafio que a humanidade deve enfrentar. Para construir algo, considerando que um Código Ético absoluto ou não existe, ou não pode ser plenamente compreendido, o conflito das diferentes culturas é essencial. Porém, mais do que isso, é essencial que esse conflito não leve a lutas, mas ao diálogo, aceitação do outro e, mais importante, à reflexão sobre si mesmo.

Considerando tudo isso, vamos voltar pro RPGuaxa.

Uma reflexão sobre o que é agir eticamente a partir do RPGuaxa #68

Se fizermos uma leitura dos aliens pelos pressupostos que coloquei, podemos ver que tinham um Código de Ética e até que eram bem intencionados. O que fizeram foi para a construção do conhecimento científico de forma solidária e compartilhada entre todas as espécies interplanetárias e buscando o avanço científico em benefício de toda forma de vida (dá até pra pensar num princípio de direito internacional assim dentro da Terra). Isso não significa que não devemos problematizar as condutas deles.

Os danos à Ada

Pensando no que os aliens fizeram com a Ada podemos destacar alguns pontos.

Em primeiro lugar, ainda que ela tenha consentido em ir com os aliens, ela não sabia exatamente a que tipo de experimento iria se submete. Em segundo lugar, o fato de terem matado ela e trazido de volta a vida e não da mesma forma que ela chegou é um ponto importante contra os ETs.

Os danos à Ali

O problema que me parece mais grave é a Ali, que entra na questão das minorias.

Ainda que tenha se mostrado conformada com a situação, a reação inicial dela foi de medo pelo que os humanos fariam com ela. Quando viu que ficaria na nave ficou muito feliz. Por fim, ficou clara o pavor e a resistência dela quando descobriu que poderia ter que voltar ao seus coplanetários. Tudo isso mostra que ela não estava feliz e que não havia aceitado sua situação. A vontade dos outros aliens estava sendo imposta sobre ela.

Olhando para nós mesmos

Mas antes de jugar os aliens vale trazer um ponto que o Felipe Ronchi Brigido trouxe na nossa conversa. Até que ponto não fazemos algo parecido nas pesquisas com animais? Não trago isso para condenar qualquer pesquisa com animais, mas para mostrar como nós também relativizamos o bem-estar de outras espécies quando temos uma finalidade justa.

O que fica de conclusão é que não podemos parar no julgamento, a partir da nossa moral, dos ETs, ou mesmo de outras sociedades do presente ou do passado. Precisamos ir além e entender o lado deles para, a partir disso, refletir sobre o que é agir eticamente.