Quando eu comecei a estudar todos os movimentos, divididos por períodos históricos, da Literatura Norte-Americana, eu me apaixonei rapidinho pelo Renascimento do Harlem (Harlem Renaissance, em inglês), movimento político-cultural, em que se vivenciou o florescimento de importantes autores e músicos negros, e assim a arte e a intelectualidade negra foi colocada em foco para o mundo todo.

O Renascimento surgiu logo ali no pós guerra (estamos falando da primeira guerra, ou seja, logo após 1918), até meados dos anos 30. Sua ênfase foi na década de 20, período de efervescência cultural em diversas regiões do globo, e aqui, em especial, em Harlem, bairro de Manhattan, Nova York. Os historiadores divergem em relação à data de inicio e término do  movimento. Acredito que seja porque suas raízes são como as daquelas árvores frondosas e centenárias, que se agarram ao chão com uma força tremenda, e rendem frutos por décadas e décadas. Os frutos de Harlem podem ser vistos até hoje, então realmente acho complicado estimar quando o movimento iniciou e terminou, talvez porque ainda não tenha terminado.

A príncipio meu interesse pelo Renascimento se deu pela minha ligação com o jazz. Há muito tempo aprecio esse estilo musical e o tenho como um dos meus favoritos, e de uns quatro anos para cá comecei a fazer parte de algumas formações de bandas de jazz no Paraná e no Mato Grosso, como vocalista. Coisa pequena, fato, mas que certamente faz parte da minha identidade. Também me fascina o poder da Literatura de dialogar e se interligar com outras artes. Mesmo sendo professora de Literatura, eu mesma me pego descobrindo, com certo espanto e encantamento, que aquela música que eu tanto amo tem uma relação com algum clássico da Literatura, ou algum movimento literário; e o mesmo acontece com certa frequencia com filmes e séries. Fiz uma pequena reflexão sobre isso na abertura da XXIII Semana da Letras da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), onde leciono atualmente. De quebra vocês me veem cantando “Dream a little dream of me”, um clássico do jazz, das minhas canções favoritas da vida.

Fiquei empolgada em poder estudar um movimento tão amplo e complexo que tivesse em si próprio a participação de músicos e ao mesmo tempo de autores que se tornaram relevantes para a Literatura. Ou seja: Música e Literatura juntas, minhas duas maiores paixões.

Realmente, o Renascimento do Harlem contou com a participação de músicos e escritores, além de pintores, jornalistas e intelectuais.

É importante apontar também que, apesar de ter Harlem como ponto de origem, o Renascimento também ocorreu em Chicago, Detroit, Philadelphia e algumas capitais europeias, com destaque para Paris.

Para entender bem o que foi esse movimento, precisamos voltar um pouquinho no tempo. A escravidão, prática social abominável que ocorreu em diversos pontos do globo, se consolidou nos Estados Unidos e se perpetuou até 1861, quando surgiu um conflito de interesses entre os estados do Norte e os estados do Sul. Os estados do Norte (chamados de “União”) eram a favor da abolição da escravidão, enquanto os estados do Sul (chamados de “Confederados”) eram contra. A economia do Sul era fundamentada na produção agrícola, principalmente de algodão, e dependia da manutenção do sistema escravagista para continuar da mesma forma. Os donos de escravos encaravam seus escravos como um investimento, e a abolição como a perda repentina desses investimentos. Já o Norte tinha uma economia com outras características, não tão dependente do trabalho escravo quanto o Sul. Essa divergência de interesse econômico deu início à Guerra da Secessão (1861-1865). É importante ressaltar que a preocupação com a economia era maior que a preocupação com questões sociais, com as vidas que os negros levavam. Revoltante, mas era essa a realidade.

Assim, iniciou-se uma guerra, liderada pela figura emblemática de Abraham Lincoln, defensor da abolição e alinhado com os estados do Norte. Essa guerra descabida (não seriam todas as guerras?) foi pautada pelas condições precárias a que os soldados eram submetidos (eles não tinham sequer sapatos) e teve no total seiscentos mil mortos. O seu término, em 1865, culminou com a vitória da União (estados do Norte), e o assassinato de Lincoln. Ele foi assassinado após o término da guerra, quando tudo parecia estar resolvido (mas nunca está, não é mesmo?), por um extremista chamado John Wilkes Booth. Booth era contra a abolição, e ficou revoltado quando Lincoln propôs o direito dos negros ao voto. Lincoln morreu, mas manteve-se a abolição da escravidão e o início de um novo período na História.

Novo período? O que parecia o início de uma nova vida para a comunidade negra foi na verdade o início da segregação, dos linchamentos e do surgimento de grupos extremistas como a Ku Klux Klan. No Sul a vida era ainda mais difícil, já que boa parte da população era anti-abolicionista. Por lá, lidar com o preconceito era algo tão impossível que os negros recém libertos começaram a migrar em massa para o Norte, em busca de uma vida melhor. Assim, com a Great Migration (Grande migração), começamos a ver as primeiras inspirações para os artistas de destaque do Renascimento do Harlem. O Renascimento ocorreu apenas cinco décadas, aproximadamente, após a abolição da escravidão. Por isso, é importante ressaltar que os maiores ícones do movimento eram filhos ou netos de escravos. Vejam que preciosidade a canção “The A train”, composição de Duke Ellington, nessa versão cantada por Ella Fitzgerald, que retrata muito bem a Grande migração. Essa versão começa com um som de apito de trem que acho a coisa mais graciosa, e depois vem a letra, que tem muito a nos dizer:

“You must take the “A” train
To go to Sugar Hill way up in Harlem
If you miss the “A” train
You’ll find you missed the quickest way to Harlem
Hurry, get on, now it’s coming
Listen to those rails a-thrumming
All aboard, get on the “A” train
Soon you will be on Sugar Hill in Harlem”

Traduzindo em poucas palavars: você precisa pegar o trem A para chegar até Harlem. Se você o perder, você perderá a maneira mais rápida para chegar até Harlem.

Todos queriam chegar em Harlem, e se embebedar de toda a efervescência cultural que acontecia por lá. O espaço favorito era o icônico Cotton Club, clube de jazz bastante popular que trouxe para destaque grandes compositores e intérpretes como Duke Ellington, Bessie Smith, Billie Holliday, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Nat King Cole, Count Basie, Lena Horne e Thelonious Monk.

O jazz, que a princípio não contava com o piano em sua formação, ganhou essa poderosa aquisição e esse foi o ponto de partida para a elevação de seu status. O piano, além da belíssima sonoridade, também tinha (e até hoje tem) ares de sofisticação. Você já deve ter frequentado alguma casa de gente rica, ou visto em filmes e séries, em que havia um lindo piano de cauda na sala, mesmo que nenhum dos residentes daquela casa soubesse tocar piano. Pois bem. A elite da época (branca, obviamente) começou a se apaixonar pelo jazz, e a abrir espaços em bares e casas noturnas para apresentações desse estilo. Os músicos eram (quase) todos negros, talentosos, brilhantes, e finalmente estavam recebendo o notoriedade que deviam ter tido desde muito antes. Porém, nesses mesmos bares, negros eram proibidos de entrar. Ou seja, os músicos podiam se apresentar, para puro entretenimento da elite branca, mas não podiam oferecer sua arte para os seus semelhantes.

Daí iniciou-se então uma luta por direitos iguais, pelo reconhecimento da arte e da intelectualidade negra. Louisa Layne, da Universidade de Oslo, afirma que “everyone loving their jazz was not enough”, ou seja, todos amando o seu jazz não era o suficiente. Não era mesmo. O jazz trazia inovação e vivacidade, era cheio no improviso, tinha qualidade poética e musical, e não podia ser apreciado pela elite branca sem que, ao mesmo tempo, se admitisse a genialidade daquele tipo de produção. Com muita luta, muito mais lentamente e dificultoso do que deveria ser, a comunidade negra foi se empoderando pouco a pouco. É o que diz essa linda canção, gravada primeiro por Cab Calloway, em 1932, e depois por Louis Armstrong, em 1933.

“I’ve got the world on a string, sittin’ on a rainbow
Got the string around my finger
What a world, what a life, I’m in love!”

Tradução: Eu tenho o mundo numa corda
Estou sentado num arco-íris
Tenho a corda em meu dedo
Que mundo, que vida – Estou apaixonado

As cordas do contrabaixo acústico, instrumento típico do jazz, representava o mundo todo nas mãos do artista. A música abria caminhos, a arte abria espaços, mentes e novas possibilidades e potencialidades a serem reconhecidas e exploradas.

Na parte 2 desse mesmo texto, vou discorrer sobre os principais autores e suas obras dentro desse período tão importante. Por enquanto, deixo para vocês uma playlist no Spotify que organizei com as mais célebres canções e intérpretes do Renascimento.

 


Bruna Stievano é professora do curso de Letras-Inglês da UFR e se divide entre algumas paixões: cantar, cozinhar e estudar Literatura, História e áreas afins.