Falar no direito de ser tratado pelo próprio nome pode parecer algo estranho para uma pessoa cisgênero, ou seja, para uma pessoa que se identifica com o sexo biológico. Porém, esse é um tema muito sério e muito importante para a comunidade trans. Afinal, se um homem nasceu com o sexo biológico feminino e lhe foi atribuído um nome de mulher, esse nome só servirá para lembrá-lo de uma persona com a qual ele não se identifica.

Isso faz parte de um ramo do direito chamado de direitos da personalidade, e, nesse sentido, diz respeito não apenas ao direito de ser tratado pelo chamado nome pelo qual a pessoa se reconhece (nome social), mas também de fazer constar esse nome em registros públicos e privados. 

Direitos da personalidade

O direito civil sempre teve uma preocupação muito maior com o patrimônio das pessoas. Porém, com a Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002, ele ganhou um lado existencial, buscando o “ser”, e não só o “ter”.

É claro que o patrimônio não perdeu a importância dentro desse ramo do direito. A lei ainda tem livros inteiros sobre propriedade, contrato e, no casamento, foca bastante na divisão de bens. Mas essas partes ganharam um temperinho de questões existenciais.

Além disso, temos o acréscimo, bem no comecinho do Código, de direitos da personalidade, como direito à intimidade, à honra, à imagem, à integridade física e psicológica, ao próprio corpo e, a estrela desse texto, o direito ao nome.

Personalidade de quem?

Pra falar a verdade, mesmo os artigos desse lado existencial do direito civil são criados por pessoas como eu: homens brancos héteros e cis.

Isso é fácil de entender. Hoje nós temos apenas 15% do Congresso Nacional de mulheres. Em toda a história brasileira, apenas duas pessoas assumidamente gays e nenhuma pessoa trans foram eleitas para a instituição. Nem precisamos voltar para 2002, quando o Código foi aprovado, ou 1973, quando o projeto do Código, escrito por um homem branco cis, foi enviado ao Congresso.

Não se trata, aqui, de fazer uma crítica ao Congresso daquela época ou ao Miguel Reale, que escreveu o projeto do Código, mas de reconhecer o problema.

Essa dinâmica resulta na falta de algo que a teórica do direito, Ada Facio Montejo, chama de perspectiva de gênero. Em poucas palavras, isso significa que os direitos trazidos pelo Código, ainda que considerassem direitos das mulheres, das pessoas trans ou de outros grupos, o faria a partir de uma perspectiva cis branca masculina.

Apesar disso…

O fato de os direitos de personalidade terem sido pensados originalmente a partir de uma perspectiva cis, não impede que eles sejam utilizados para trazer conquistas para a comunidade trans.

Isso ocorre, principalmente, porque com a Constituição de 1988 começou a se desenvolver uma nova hermenêutica jurídica, ou seja, uma nova forma de interpretar o direito. Essa nova forma acontece, principalmente, porque se passou a ler o direito a partir dos direitos fundamentais e porque tanto as leis quanto os direitos fundamentais passaram a assumir um texto mais aberto, que exige que intérprete olhe para o mundo para construir o sentido do texto.

Então, o direito ao nome, em sua concepção original, não traz uma preocupação com o nome social da pessoa trans. Você pode ver isso nos quatro artigos do Código Civil sobre o tema:

Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.

Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.

Art. 18. Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial.

Art. 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome.

O mesmo ocorre com a lei de registros públicos, que não só não tem uma disposição específica sobre o registro do nome social, como proíbe, como regra, que os cartórios registrem a mudança do primeiro nome.

Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.

Porém, no modelo atual de constitucionalização do direito, esse dispositivo não permanece da mesma forma.

O direito ao nome social

O que o pensamento constitucional atual trouxe é uma visão dos direitos, em especial dos direitos de personalidade, a partir do direito constitucional. Dessa forma os direitos de personalidade devem buscar atender o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, base do nosso Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, da Constituição).

Outro direito fundamental de peso nessa questão é o da não discriminação. A Constituição deu uma importância muito grande a esse direito, trazendo-o em vários momentos.

Em primeiro lugar, a não discriminação é um dos objetivos fundamentais da nossa república (art. 3º da Constituição):

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Em segundo lugar, é um direito que está na base dos direitos fundamentais individuais e coletivos, na cabeça do famoso artigo 5º:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza

Artigo esse que traz disposições mais específicas, como:

XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

Dentro dessa visão, o nome social e, mais ainda, o registro do nome social nas certidões e documentos de identidade, se torna um direito fundamental e um dever do Estado.

É um direito fundamental porque ser reconhecido e tratado pelo nome e pelo gênero com o qual se reconhece é o mínimo para que a pessoa possa determinar a sua própria personalidade, o seu próprio eu.

Sendo assim, não cabe à sociedade ou ao Estado dizer qual é o gênero ou o nome de cada pessoa, mas apenas à própria pessoa.

Reconhecimento do direito ao registro do nome social pelo STF

Tudo isso que eu falei acima não vem da minha cabeça. É algo amplamente defendido na literatura jurídica e já reconhecido pelo STF na ADI (Ação Declaratória de Inconstitucionalidade) nº 4275, que diz que o artigo 58 da lei de registros públicos (aquele que proíbe alterar o primeiro nome) precisa ser interpretado conforme a Constituição.

Vale a pena olhar alguns pontos da ementa (o resumão oficial) da decisão:

1. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero.
2. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la.
3. A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade.

Em resumo, o STF reconhece que as pessoas transgênero têm o direito de registrar em cartório e de fazer constar em registros públicos e privados o nome e o gênero pelo qual se reconhece.

É interessante destacar que essa decisão supera uma ideia de que para se efetuar o registro seria necessário que a pessoa tivesse feito a cirurgia de transgenitalização (popularmente conhecida como cirurgia de mudança de sexo). Com a decisão, basta a pessoa declarar por escrito sua identidade de gênero para alterar o registro do nome e do sexo civil.

Acertou o STF! Até porque cada pessoa trans é única e nem todas podem ou desejam passar por essa cirurgia. Existem pessoas que se sentem bem, por exemplo, em ser uma mulher com pinto. Então não existe motivo para o Estado impedir que essa pessoa se reconheça e seja reconhecida como mulher.

Pode-se ver, portanto, que o direito, ainda que não pensado para essa questão, assegura o direito das pessoas de serem reconhecidas pelo gênero e pelo nome como o qual se identificam, mas…

A realidade não é tão bonita

Seria muito bom terminar o texto falando que o registro do nome já é um direito reconhecido pelo STF e que, portanto, não é preciso lutar mais por isso. Mas a verdade é que ainda restam muitos desafios e obstáculos para que as pessoas trans possam alterar o registro do nome e do sexo civil.

As pesquisas realizadas sobre o assunto tendem a mostrar que pessoas trans que buscam a alteração do registro encontram várias barreiras sociais e burocráticas. As barreiras sociais tendem a vir da família, religião e da sociedade como um todo. As burocráticas vêm dos cartórios e do judiciário que negam, colocam empecilhos ou mesmo atendem com desdém essas demandas, ignorando a decisão do STF.

Portanto, a luta ainda continua! Por isso precisamos lembrar, nesse dia 29 de janeiro e sempre da importância de dar visibilidade à causa trans!

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