Ao longo dos meus textos, eu salientei que existem aspectos da alimentação que ultrapassam a noção nutricional como normalmente conhecemos. Escrevi dois textos falando sobre alguns atos (o ato político e o social), porém não me aprofundei na incrível mitologia que existe no âmbito simbólico da cultura alimentar mundial.

Com este texto, iniciaremos uma série de redações que contam sobre o ato religioso da alimentação, bem como suas próprias mitologias, tabus, valores e significações, de acordo com cada religiosidade em análise. De forma ainda mais especial, este aqui contará sobre a cozinha de santo, desenvolvida no seio das religiões de matriz africana em nosso país!

O valor da cozinha à religiosidade do candomblé foi posta em evidência pelo antropólogo Raul Lody em 1998 com a publicação de seu livro “Santo também come” [1]. A obra demonstra que, assim como católicos acendem velas para manter louvor ao santo protetor, os religiosos de matriz africana trabalham com iguarias que sejam do gosto da entidade amiga.

Religiões como umbanda ou candomblé são pautadas na oralidade e tradicionalidade [2]. Isso significa que o conhecimento é revelado de maneira gradativa, integrando o iniciado para ter repertório simbólico sobre o santo (orixá) ao qual está atrelado. Ele é conhecido como filho de santo nesta etapa.

Iansã (entidade orixá da ventania) é rápida e gosta de comida veloz, adorando um ótimo acarajé [1]. Exú, gente da rua, irá preferir uma comida mais apimentada ou carne grelhada. Um orixá idoso como Oxalá tem sua preferência por milho cozido sem tempero, bem mole.

A comida é observada como um mediador simbólico nesta primeira relação entidade-humano. Por meio das receitas, o iniciado reconhece o prato como definidor de sua identidade perante as entidades e pessoas do grupo.

A comida simboliza as proezas e valores do santo ao qual a pessoa se associa, bem como práticas alimentares que devem ser restringidas para melhorar este relacionamento. Iniciados em Iansã, por exemplo, não podem comer caranguejo pelo resto de suas vidas.

 

O caruru é um prato com base em quiabo e camarão feito para homenagear o orixá Ibeji (sincretizados como São Cosme e Damião) [3]. O prato sintetiza a importância da religiosidade africana e indígena à identidade baiana e as festividades do ano corrente.

A prática afro-gastronômica praticada nestas religiões é reflexo do conturbado período de colonização no Brasil. Muitos escravizados africanos eram buscados na costa do Benin e trazidos ao novo continente pelo porto da Bahia. Estes navios já saiam para a viagem com bruacas de farinha, porém o sarapatel – saco com farinha de mandioca, aipim e milho – foi sendo incorporado aos poucos neste percurso.

A alimentação dos escravizados era escassa e muitas vezes insustentável. A incorporação dos conhecimentos culinários africanos na “comida de branco” pelos escravizados domésticos foi muito importante para a manutenção dos sistemas simbólicos que conectavam sentimentos e desejos. Por meio da culinária, o senso de identidade se manteve, ainda que com ingredientes um pouco diferentes.

Religiões como Candomblé e Tambor de mina surgiram justamente da necessidade de manutenção desse sistema simbólico que estava fragmentado no novo continente. Os praticantes reconhecem que o mundo espiritual e material são indissociáveis, e práticas como a dança e a comensalidade reforçam estes laços.

O conhecimento é passado de maneira gradual para cada pessoa. A prática é a maneira pela qual os participantes abastecem seu repertório simbólico para saber, por exemplo, qual é o alimento favorito de cada tipo de entidade, ou qual refeição se deve evitar de oferecer ao mesmo.

Até mesmo o local correto para deixar as oferendas precisa ser incorporado na prática religiosa [4]. Iemanjá, a rainha do mar, costuma receber suas oferendas pela água. Exú, guardião dos caminhos, tem sua preferência justamente nas encruzilhadas.

 

Na imagem: praticantes de matriz africana usando roupas brancas estão segurando alimentos enquanto entram por uma porta [5]. Reportagem da redação Correio revela o efeito da inflação na ritualística africana, que está ameaçando a prática comensal dos cultos.

Um tópico interessante quando tratamos da comida de santo é o sacrifício animal observado em alguns cultos afro. A prática ganhou alicerce jurídico há relativamente pouco tempo, apesar do cenário de preconceito que ainda circunda os cultos [6]. Muitos grupos fundamentalistas se apegam aos “argumentos ambientalistas” para tentar cercear a liberdade religiosa e garantir a invisibilização da identidade.

A prática é realizada em cultos africanos strictu sensu, uma vez que cultos afrobrasileiros como Umbanda trabalham apenas com itens vegetais [6]. Nestes rituais, os animais são sacralizados em nome de uma entidade. Cada parte do animal é aproveitada para ser comido por todos os membros participantes, inclusive as partes dedicadas aos entes imateriais.  É errado dizer que há o desperdício desses cortes.

Até mesmo o couro do animal volta para ser reciclado pela comunidade, fazendo parte dos atabaques cerimoniais. O animal sacrificado não pode sofrer durante o abate, senão o orixá não aceitará a oferenda.

Esta sacralização dos animais no ritual de matança é um pilar necessário para que ocorra o encontro do espiritual por meio dos itens materiais. Não é muito diferente de receber alimentos fetichizados em corpo e sangue de outras entidades, por exemplo. Existem sacrifícios de animais também em religiões como judaísmo e islamismo, do qual estarei escrevendo textos em breve!

Em ambientes em que a intolerância religiosa ainda reina, muitas pessoas encontraram no ritual de matança uma maneira de condenar a existência daquilo que não compreendem. Um embate muito grande foi feito na justiça para manter a prática, mas o preconceito ainda atravessa cada etapa da vida dos filhos e filhas de santo. Resta-nos espalhar a informação para que todo o escopo dos cultos africanos possa encontrar mais paz!

Os cultos de origem africana possuem tanto material alimentício que eu poderia escrever por horas sobre os mesmos, mas por agora irei ficar aqui! O que acharam deste texto? Alguma informação importante que passou batido? Não deixem de comentar e até o próximo!

 

Referências
[1]: LODY, Raul. Santo também come. Rio de Janeiro: Pallas, 1998.
[2]: SILVA, Camila Spolon; BORELLI, Andrea. Cozinha de Santo: A Relação do Homem com os Alimentos Sagrados nos Terreiros de Candomblé em São Paulo. Revista Pluri Discente, v. 1, n. 3, 2021.
 [3]: CHERMOULA, Aline. Dia dos Ibejis: Receita exclusiva de caruru. Portal VOGUE, 27 SET. 2021.
[4]: LIMA, Samuel. É falso que oferendas nas encruzilhadas tenham surgido como forma de alimentar escravos fugitivos. Portal Estadão, 23 jul. 2021.
[5]: MENEZES, Lais; CERQUEIRA, Carolina. Alta de preços de alimentos dobra custo de festas de candomblé e ameaça rituais. Portal Correio, 29 nov. 2021.
[6]: MACIEL, Matheus Queiroz. Direito fundamental à sacralização de animais no Candomblé à luz do direito brasileiro. Direito constitucional. Artigo Jus.com.br, jun. 2019.