Quando estamos em uma refeição, devemos imaginar que existe muito pouco da sociedade na nossa degustação. É compreensível, afinal nós estamos no meio de um momento só nosso, não existindo todas as mediações que existem para um bando de coisas no cotidiano. A refeição é um dos momentos de maior “liberdade” existente nas nossas vidas, certo? Errado, muito errado!

Com este texto, pretendo demonstrar o quão importante é a presença dos aspectos sociais durante as refeições, bem como porque é impossível separar a alimentação das regras socialmente estabelecidas. Para quem acompanhou meu texto sobre os atos políticos (link aqui) já deve ter notado que irei continuar falando sobre os aspectos alimentares.

Estes aspectos são um desdobramento teórico da Angelina Nascimento [1], que categorizou as vertentes culturais da alimentação em atos – sexual, simbólico, político, social, filosófico, literário, artístico e religioso. Hoje iremos observar este componente social da alimentação durante o texto. Afinal, regras, historiografias e pressões sociais podem estar impressas em ingredientes?

De fato a própria instituição social conhecida como “refeição” surgiu justamente da necessidade de agregação das pessoas que compartilhavam os mesmos valores. Famílias, amigos, adoradores das mesmas divindades… Não há ninguém que não fique mais socialmente aberto depois de dividir uma mesa [1]. O princípio das festas – tanto familiar quanto comunitária – ressalta o papel da união que pode ser facilitada por meio de alimentos e bebidas.

A refeição então possui o que chamamos de impulso doador, uma vez que com ela nós trocamos voluntariamente entes materiais (alimentos) por desejos e apreensões emocionais socialmente desejáveis (felicidade grupal). Em círculos sociais mais elitizados, ela também pode ser usada como manifestação exibicionista do status social, como acontece em festas de personalidades famosas [1]. A própria autora Angelina relembra o caso de atrizes que promovem festas de aniversários de pets (?) como fachada para verdadeiros bacanais alimentícios.

 

A desigualdade social é aparente com os comportamentos alimentares e estabelecimentos/produtos de nicho. Na foto, ditador venezuelano com charuto em uma churrascaria de luxo na Turquia, 2018 [3].

Até mesmo a decisão de não comer, a repulsa ao alimento, está atrelada aos sentimentos gerados socialmente. Michael Pollan, em seu livro “Cozinhar”, salienta o quanto os alimentos submetidos a wild fermentation (fermentação selvagem) estão ligados aos sentimentos grupais [2]. Ele exemplifica o caso dos queijos artesanais franceses, com um cheiro de causar náuseas às pessoas regionalmente afastadas.

O exemplo do queijo camembert francês e do natto japonês (soja fermentada) são capazes de nos lembrar à importância que a repulsa é capaz de trazer para a agregação e repulsão sociais [2]. “Esta comida pode ser feia e mal cheirosa, mas é nossa comida”. Estas sociedades sentem orgulho genuíno do produto final, comentando satisfeitas o cheiro de chulé ou de outras partes do corpo humano no fermentado.

De qualquer forma, a instituição refeição sempre foi importante para a passagem do conhecimento de um adulto para uma criança. Nem todos tiveram a oportunidade de presenciar uma troca de informação saudável de diferentes membros da família na mesma mesa. Quem já teve, sabe a importância deste momento na construção identitária de uma pessoa, com os reforços e discussões sendo postos à mesa.

Para crianças, a refeição familiar reforça os conhecimentos de verbalização, melhora o desempenho escolar e diminui a propensão para problemas relacionados à depressão, ansiedade e distúrbios alimentares [4]. Em adultos, os benefícios incluem ainda a melhora do humor e de ingestão de nutrientes (pais passam melhores exemplos na presença dos filhos). O importante não é nem o alimento em si, mas a prática alimentar!

A refeição é um determinante psicossocial necessário para a manutenção das informações em família, bem como a preservação do equilíbrio alimentar. Não é à toa, mas é também um dos momentos favoritos de muita gente. Com a volatilidade dos tempos modernos e o consumo de alimentos fast food, muitos teóricos ainda não sabem qual instituição poderia ser tão importante para o crescimento dos laços familiares.

 

O hábito da refeição em família retornou fortemente com a quarentena e precisa ser mantido, segundo Anne Fishel para o portal The Conversation [4].

Até agora, nós observamos a importância social somente nas atividades pós-produção. Porém, o valor deste aspecto também está presente nas atividades “pré-porteira”. Entre agricultores familiares e pescadores, observa-se a passagem dos meios técnicos e de subsistência principalmente aos filhos que querem desenvolver a mesma atividade. Nestas estruturas trabalhistas é comum obter papéis sociais diferenciados para cada membro, sendo que a importância dos mesmos é algo bem saliente [5].

Com famílias facilitando a entrada dos filhos e parentes nas atividades produtivas, um maior respeito é observado com o meio sociotécnico e os produtores na circunvizinhança. Não significa que novos membros não serão bem vindos, mas que os mesmos precisarão provar seu valor (ambiental e ético) de forma um pouco mais proeminente, uma vez que os mesmos não possuem pares que lhes facilitam a inserção comunitária.

Desta forma, o aspecto social é um importante mediador sociocultural para a entrada de novos membros no espaço agroindustrial [6]. Este aspecto está subindo na cadeia produtiva, chegando agora no foodtruck. Estamos diante das primeiras gerações de pessoas que herdaram carros de venda dos seus pais, já pensando no serviço aos seus filhos.

O mercolazer – hiperconsumo ligado à vivência cultural momentânea– está ganhando muito com esta manifestação [7]. Receitas diferenciadas e tendências mirabolantes encontram um solo fértil para o desenvolvimento neste espaço de reprodução física e social, uma vez que os novos proprietários possuem uma base tradicional bem consolidada para seus trabalhos, agradando curiosos e clientes antigos.

Redes comunitárias fortalecem a manutenção de cooperativas e associações agroextrativistas, bem como a valoração do desenvolvimento sustentável. Por meio desta reprodução física, as características prestigiantes dos alimentos são mantidas ou reorganizadas. Ao mesmo tempo em que fortalece o sentimento de companheirismo dos produtores locais, o sistema preserva as bases imateriais para a construção da identidade local.

Seja através de festas, agroindústrias, food truck ou de uma boa comilança em família; não podemos negar o papel da alimentação na sociedade contemporânea. E você, já percebeu este paradigma alimentar presente nos grupos sociais? Consegue pensar em outros? Deixe tudo nos comentários e até a próxima!

 

Referências
[1]: NASCIMENTO, A.B. Comida: Prazeres, gozos e transgressões. 2nd. Ed. Rev&Enl. Salvador: EDUFBA, 2006. 290 p.
[2]: POLLAN, Michael. Cozinhar: Uma história natural da transformação. Tradução de Cláudio Ferreira. Editora Intrínseca, 2013.
[3]: REDAÇÃO O POVO. Assim como Bolsonaro, ditador venezuelano Nicolás Maduro comeu churrasco de luxo em meio a uma crise. Portal O Povo, Política, 11 mai. 2021. Disponível aqui.
[4]: FISHEL, Anne. Family meals are good for the grown-ups, too, not just the kids. Anne Fishel is Associate Clinical Professor of Psychology at Harvard Medical School, Harvard University. The conversation: Academic rigor, journalistic flair. Disponível aqui.
[5]: LIMA, Jacob Carlos; CONSERVA, Marinalva de Sousa. Redes sociais e mercado de trabalho: Entre o formal e o informal. Política & trabalho, João Pessoa, v.24, p.73-78, 2006.
[6]: LOPES, Lênin Machado. Cultura alimentar no litoral capixaba. Editora Novas Edições Acadêmicas, Latvia, 2020.
[7]: LIPOVETSKY, G. Tempos hipermodernos. São Paulo, Barcarolla. 2004.