Hello there…

… the angel from my nightmare…

Por maior diálogo que passamos fazer entre a saudade que invade o trio do Blink 182 e um certo saudosismo de tempos não tão distantes manifestado pela classe média brasileira, é uma outra saudade e de uma outra classe média, ex-classe média, o ponto de partida. É nessa confusão que nosso Virgílio se manifesta. Marvin é nosso guia pelos 5 níveis das classes sociais brasileiras, cujo centro é o que se chama classe média e que não guarda a surpresa de uma Beatriz.

Marvin é lançado pelos Titãs em 1984 e pode vir a coincidir com 2021 como o último ano antes do fim de um período que, como diria Rufus Scrimgeour em Harry Potter e as Relíquias da Morte, parte 1, “são tempos sombrios, não há como negar”. Eram os últimos momentos da ditadura, forjada em um pacto civil-militar, que entregava à população tanto o fim do extremo conservadorismo político quanto uma profunda crise econômica, que também não parece mera coincidência com 2021, com um cenário fortemente rural e de desigualdades extremas – o que também não é nenhuma coincidência com a atualidade.

Contudo, deixando o exercício de futurologia de lado, os elos entre os dois períodos ultrapassam as inspirações autoritárias e figuras ignóbeis do antro militar. Escapando dessa obviedade nuclear, é na margem que reside a classe média que cumpre com maestria o papel que denota sua nomenclatura, gozando de um orgulho tão sensível que não lhe é concebível dividir seu espaço.

Resumindo as análises do sociólogo Jessé de Souza sobre a classe média, destacamos os fatos de que ela mantém a essência dos seus primórdios buscando um lugar de importância e reconhecimento junto à Coroa portuguesa entre brasileiros e lusitanos gerando o grupo ligado à burocracia e ao serviço público. Com o tempo, foi se adaptando e adaptando seu desdém pelas classes menos providas, chamadas populares, mas sem se afastar das origens.

O advento do capitalismo bem como o seu desenvolvimento, aliados às transformações do Estados cada vez mais conectados à esfera econômica, foram alimentando essas relações em que a elite se propõe a manter seus privilégios se aproximando (a uma distância segura) da classe média que almeja tal posição em fuga constante das classes populares. Estas, por sua vez, parecem não ter um espaço no campo de batalha das classes socioeconômicas que não seja garantir a existência minimamente digna. Nesse sentido, a elite moderna, constituída pelos grandes senhores de capital, tem na classe média o mesmo “funcionário” que tinham os senhores de engenho nos capitães do mato.

Posto de uma outra forma, trata-se de um embate materializado em preconceitos, violências e afins que exprimem os ideais formulados no campo teórico e imaginário através de existências postas em narrativas com o intuito de formar as identidades de cada grupo no seio da identidade nacional. É nesse contexto que se localizam os mitos modernos que dizem respeito ao Estado, mas também criam sensação de pertencimento e conferem sentido às relações. Isso diz respeito a elementos próprios da natureza humana além de constituir uma espécie de costura do tecido social. Tão importantes são que as narrativas são financiadas e estimuladas pelas elites para servi-las.

Jessé de Souza classifica esse movimento como personalismo e o põe do lado do patrimonialismo e do populismo como as três mentiras contadas pela elite sobre a identidade do brasileiro e que lhe serve de mecanismo arregimentador da classe média em favor da manutenção de seus privilégios e dos recortes socioeconômicos. Mais um representação didática? Magneto em X-Men: o confronto final. Na cena de tentativa de captura do mutante Leech (Sanguessuga), o líder da irmandade alerta a Jugernaut: “no xadrez, os peões vão primeiro”. E quando é surpreendido pelas armas de plástico dos humanos anulando seu front, crava: “é por isso que os peões vão primeiro”.

Assim, se de um lado o mito nacional é uma criação narrativa que conta uma história formadora de identidade, do outro, Marvin é a realidade marginal escancarada em sua tentativa de sobreviver e subsistir face às desmedidas das classes abastadas e às intempéries de seu cotidiano que parece não lhe dar brechas para pensar em “subir de nível”.

“Meu pai não tinha educação
Ainda me lembro era um grande coração
Ganhava a vida com muito suor
mas mesmo assim não podia ser pior
Pouco dinheiro pra poder pagar
Todas as contas e despesas do lar
Mas deus quis vê-lo no chão
Com as mãos levantadas pro céu
Implorando perdão
Chorei meu pai disse boa sorte
Com a mão no meu ombro
Em seu leito de morte”

Marvin é, portanto, um retrato iniciado com as limitações de acesso: renda e educação, que não roubam a afetividade desenvolvida em um contexto não urbano e de família/coletividade distinguindo-se dos desenvolvidos nos grandes centros.

Estendendo essa leitura sobre os primeiros versos e como eles se ligam aos demais versos, podemos trazer à luz uma distinção que tem se mostrado cada vez mais presente justamente na afetividade e representada por um tipo de oposição entre desenvolvimento afetivo e econômico – exceto nas elites. Ou seja, enquanto no estereótipo da classe média não cabe tempo para qualquer coisa que não seja fugir da classe popular e correr na esteira, a história de vida de Marvin mostra as presenças de redes, ainda que em seu caso seja estritamente familiar, e da religiosidade, por exemplo.

Além disso, o choro está presente como um elemento que liga os dois elementos anteriores denotando significado ambivalente mesclando a raiva e a indignação com aquele que poderia fazer tudo diferente em sua infinita bondade e onipotência. O choro é motivado, provavelmente, pelo luto e incertezas, mas também esperança apesar do cenário de perda e despedida. Ou ainda a sobriedade da aceitação do fim oposta à sensação fraqueza. A partir de então, Marvin assume a responsabilidade da família como o primogênito. Sozinho.

A religiosidade se faz presente novamente quando, após o 3º dia de morte, o protagonista espera algo do pai. A fé, ou religiosidade, é um elemento de presença mais essencial entre as camadas mais populares, tendo mais espaço ao sagrado e sendo menos dogmática. É como diz outra canção: “Andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá”. Isso reforça, ainda, o caráter coletivo de ambos os elementos, a classe e a religiosidade, ligando-as também por elementos históricos como violências, perseguições e pobreza. Aliado à memória vívida do pai, Marvin expõe a agora ausência de tempo para os estudos frente ao luto e ao trabalho que aumentara deixando nas entrelinhas uma nova oposição nascente: o aqui e agora vs futuro melhor, de mais possibilidades e menos dificuldades.

A junção das últimas palavras do pai com a realidade prática produzem em Marvin dúvidas sobre a realidade, o caminho e a esperança. Então, fugir é uma ideia fugaz quando deixa de ser uma opção por refletir quem se é e a própria realidade, limitada por aqueles que temem seu desenvolvimento e a perda de seus privilégios. A posição social parece ser uma prisão cujos carcereiros é a realidade socioeconômica que, inclusive, lhes deixa reféns das incertezas que podem ser metaforizadas por uma chuva ou uma crise política, econômica ou sanitária.

A sequência desse contexto é mais uma oposição de forças que dizem respeito à sina da inescapabilidade de sua realidade com a busca por mudança. Além disso, a escolha das palavras permite pensar no quão próximo e ao mesmo tempo distante está de acessar os bens que constituem seu cotidiano. Enquanto esse embate se desenrola no campo ideológico, no campo prático o que se desenvolve é seu caminho trilhando os mesmos passos do pai como arreio de família. Inclusive, na oração da mãe, na certeza do pai e na indignação de Marvin se vê o movimento doloroso de transformação pelos comportamentos, crenças e justificativas do protagonista.

“E toda noite minha mãe orava
Deus era em nome da fome
Que eu roubava
Dez anos passaram, cresceram meus irmãos
E os anjos levaram minha mãe pelas mãos

Chorei, meu pai disse boa sorte
com a mão no meu ombro
Em seu leito de morte
Marvin, agora é só você
E não vai adiantar
Chorar vai me fazer sofrer
Marvin, a vida é pra valer
Eu fiz o meu melhor
E o seu destino eu sei de cor”

A história de vida de Marvin termina de ser narrada cerca de 10 anos após o primeiro evento, a morte do pai. Os irmãos crescem, a mãe falece e a certeza do pai sobre o futuro de Marvin parece estar se sobrepondo aos seus esforços. Pois, a despeito de suas tentativas, os limites que lhes são impostos permanecem muito bem delimitados pelos redesenhos e reescritas vistos em uma perspectiva macro reforçando o abismo que vem se transformando mais um processo de insulanização da pobreza.

Em suma, abismo ou ilha, são apenas linguagem figurada na representação de favelados, pequenas propriedades rurais ou movimentos sociais como os sem terra e sem teto. Ou seja, os maiores riscos à fantasia mítica da identidade social da classe média brasileira sempre foi a realidade.