Olá pessoas, tudo certo com vocês? Enquanto escrevo este texto, estive em quarentena pelo famigerado Covid-19 (comendo mais do que o necessário, por sinal), o que me fez pensar sobre como a relação entre a alimentação e a pandemia/epidemia pode estar bem na nossa cara, apesar de não vermos com facilidade.

Em diversos momentos históricos as pessoas mudaram sua alimentação por motivos de pestes, geralmente diversificando todo um hábito cultural da relação entre o homem e o alimento. Então por que não escrever um texto sobre o assunto, abordando diferentes períodos de epidemia e como a população teve que mudar seu hábito de consumo ao longo dessas épocas?

Separei 4 momentos de mudanças em padrões alimentares por motivos de doenças! Lembrando que será um texto geral de curiosidade, vamos passar por cima de grandes eventos históricos desses períodos, beleza?

O primeiro grande evento da humanidade que destaco foi um dos momentos mais pesados da história, com implicações culturais que refletiram no Renascimento de uma alta cultura (sacou o trocadilho?). A peste bubônica do século XIV foi responsável pela morte de mais de um terço da população europeia, acompanhada da fome (pela diminuição de pessoas trabalhando no campo e no processamento de comida) e das perseguições religiosas [1]. Foi um momento de forte êxodo urbano, em que as pessoas viajavam para longe das aglomerações a fim de evitar “a ira divina”.

Antes da peste, alguns gêneros artesanais eram mais comuns, como as especiarias, sebo, peixes, carneiros, queijos, carne de caça…, mas logo depois a qualidade da alimentação caiu. O desespero fez com que tudo virasse comida, de grama até folhas e raízes não comestíveis, bem como cogumelos [2]. A penitência foi vista como uma forma de salvação, em que buscar uma vida fora das cidades, vivendo de grãos, raízes e frutas era uma forma de mostrar sua devoção monástica a divindade. O evento foi tão marcante que até hoje o europeu tem uma maneira toda diferente de tratar os desperdícios, visto a relação entre Revolução Francesa e a falta de alimentos [2].

Indo mais um pouco pra frente no tempo (aproximadamente 1845) teremos um inconveniente azar na Irlanda. Um fungo havia viajado do México para aquela ilha, o que causou sérios problemas na produção de batatas e no desempenho das áreas agrícolas. A batata representava o triplo da produção de qualquer grão naquelas terras, e não estava dando conta de alimentar a população, pois à medida que as batatas eram colhidas, imediatamente putrefaziam-se.

Crianças esqueléticas e corpos enterrados eram figuras comuns nos campos de trevos. Além disso, a imunidade baixa abriu espaço para epidemias de piolho, cólera, escorbuto e tifo. Quase 1 milhão de irlandeses morreram, com a aparente falta de vontade do governo britânico nas medidas de mitigação. Até hoje existem traços de revanchismo na relação entre irlandeses e ingleses, em parte devido a negligência britânica nas medidas de apoio [3].

Dois milhões de irlandeses preferiram sair de suas terras, indo para outros locais como os Estados Unidos da América. Católicos irlandeses chegavam nos EUA com fome e com fama de bêbados e analfabetos (católico não era muito bem visto em terras protestantes). Conseguindo empregos como operários de fábricas e pedreiros, os irlandeses passaram por muita discriminação, mesmo sendo um dos principais motores da economia americana daquela época [4].

A produção de whisky ganhou um sobressalto interessante nesse período, pois era a bebida preferida dos irlandeses, marcando uma identidade cultural muito conhecida por qualquer americano, a de associar o irlandês ao consumo de whisky [5].

Agora no nosso Brasilzão, tivemos um problema interessante relacionando pestes, só que em suínos! Faxinal pode ser tido como o sistema da criação de animais em espaço comunitário, com respeito aos bens comuns. Na década de 40 em um faxinal de Irati (PR), teve-se um problema pouco usual. Uma peste assolou o rebanho de porcos, colocando em risco o sistema faxinal (muito baseado na subsistência e na criação extensiva desses animais), do qual muitas pessoas pobres retiravam seus alimentos diários e compartilhavam entre seus pares [6].

Com a peste suína, muitas pessoas abatiam os porcos ainda em desenvolvimento, ou mesmo comiam a carne do animal morto e infectado para que não ocorresse desperdício, gerando mais calamidade e pânico entre os populares, que já sentiam a falta da carne no prato.

Logo o porco saiu da mesa do paranaense, em parte devido a dificuldade de criação em tempos de crise e a morte prematura dos animais. A vacina preventiva doada pela república também não surtiu muito efeito, gerando certa incerteza dos faxinalenses com relação as ações do governo federal (“Se eu dou vacina e os bichos morrem, então é melhor nem eu me esforçar”). A criação de conselhos de criação de porcos e a divisão do Paraná em duas linhas de ação diferentes (estadual e federal) foram algumas medidas para tentar conter a peste suína clássica que matava os rebanhos.

 

Figura 1: Sintomas da peste suína clássica observada em rebanho de Alagoas. A peste suína africana (outra doença) tem sido um problema na Ásia e na África e foi responsável por aumentar as nossas exportações em diversos países. O foco da nossa peste se mantém sobre controle, porém o medo de uma calamidade sempre é real [7].

E já que citamos as doenças em animais, por que não podemos falar da famigerada doença da vaca louca? A encefalopatia espongiforme bovina (viu porque prefiro doença da vaca louca?) é provocada por um príon (partícula proteica infectante, quase um vírus) que se desenvolve principalmente nos tecidos neuronais [8].

Com a mudança de processos para fabricar farinha de carne e osso (ingrediente de ração) que visava a diminuição de gastos, os produtores começavam a reciclar o material fonte (isso mesmo, usava-se na ração de boi com pedaços do boi) o que foi responsável pela transmissão de novos casos, debilitando o animal e causando sua morte, com riscos de infecção até mesmo para a carne comercializada.

Em 1986 apareceram os primeiros casos no Reino Unido e, em 1989, o governo britânico proibiu a venda de farinha de carne e osso para os animais, com a posterior diminuição dos casos em 1993 [8]. O período de incubação do príon era de 3 anos, pois ele sobrevivia no solo, então era comum a incineração da carcaça do boi. A doença foi responsável pela diminuição do consumo de carne por medo das consequências, bem como mortes ou problemas neurológicos de pessoas que consumiram o produto.

Figura 2: A encefalopatia espongiforme bovina é responsável pela debilidade do animal, levando a sua morte e a contaminação de sua carne. Frigoríficos de todo o mundo mantém técnicas de análise para evitar a propagação do príon [9].

A doença da vaca louca teve um peso no imaginário popular muito grande, em parte devido a relação de segurança que as redes de distribuição de carne queriam ter (“Nossa carne é muito segura! Só temos uma proteína que pode te matar, acontece”). Apesar da grande queda na procura de carne bovina, as indústrias de processamento tiveram que se reposicionar em medidas de segurança, as quais todo auditor de qualidade acompanha com afinco [9].

Interessante percebermos o quanto um surto pode desestabilizar mercados inteiros, e isso acontece o tempo todo em produções alimentares! Um pouco antes do Covid-19, a peste suína africana dizimou cerca de 40% do rebanho de porcos daquele país, fazendo aumentar a importação de diversas carnes pelo mundo. A medida chinesa impactou no preço da nossa carne bovina, e isso nem faz tanto tempo! Qual será o grande problema com alimentos e epidemias no futuro?

Então ficarei por aqui pessoal, este foi o primeiro texto da série de história alimentar, pretendo voltar com mais textos desta linha em breve. Diga-me o que você achou. Quais outros períodos históricos poderiam entrar facilmente nesta lista? Guerras também podem mudar hábitos de consumo? E períodos de recessão econômica? Deixem ideias e até a próxima!

 

Referências

[1]: QUÍRICO, Tamara. Peste Negra e escatologia: os efeitos da expectativa da morte sobre a religiosidade do século XIV. Mirabilia: electronic journal of antiquity and middle ages, n. 14, p. 135-155, 2012. Disponível em: <https://www.raco.cat/index.php/Mirabilia/article/viewFile/283109/370981> Acesso em 17 mar. 2020;

[2]: SNOW. Pequena história da alimentação. História Hoje, 21 jan. 2014. Disponível em: < https://historiahoje.com/pequena-historia-da-alimentacao/> Acesso em 17 mar. 2020;

[3]: CALANDRELI, Clair. O que teria causado a fome da batata na Irlanda do séc. XIX. GGN, o jornal de todos os Brasis. 9 abr. 2017. Disponível em: <https://jornalggn.com.br/noticia/o-que-teria-causado-a-fome-da-batata-na-irlanda-do-sec-xix/> Acesso em 18 mar. 2020;

[4]: MENDES, Lucas. Irlandeses com teto. BBC BRASIL.COM. 18 mai. 2007. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2007/05/070518_lucasmendes_tp.shtml> Acesso em 18 mar. 2020;

[5]: The Kentucky Encyclopedia. John E. Kleber. 1992. p. 103;

[6]: SOCHODOLAK, Hélio; MANEIRA, Regiane. Os faxinais de Irati-PR na década de 1940: a força de uma cultura tradicional. Diálogos-Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, v. 17, n. 1, p. 15-39, 2013;

[7]: SAMORA, Roberto. Reuters. Brasil relata caso de peste suína clássica; doença não tem relação com peste africana. UOL Agronegócio, 11 out. 2019. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2019/10/11/brasil-relata-peste-suina-classica-doenca-nao-tem-relacao-com-peste-africana.htm> Acesso em 18 mar. 2020;

[8]: COSTA, Ligia Maria Cantarino da; BORGES, José Renato Junqueira. Encefalopatia Espongiforme Bovina-“Doença da Vaca Louca”. UNIRIO, 2009. Disponível em: <http://www.unirio.br/dmp/nutricao-integral/fontes-de-consulta-complementar/Encefalopatia%20Espongiforme%20Bovina.pdf> Acesso em 18 mar. 2020;

[9]: SECOM. PREVENÇÃO: Vigilância contra doença da vaca louca tem que ser constante, alerta Idaron. Rondonia ao vivo, 4 abr. 2019. Disponível em: <http://rondoniaovivo.com/agronegocio/noticia/2019/04/04/prevencao-vigilancia-contra-doenca-da-vaca-louca-tem-que-ser-constante-alerta-idaron.html> Acesso em 18 mar. 2020;

[10]: REUTERS. China alivia ainda mais restrições de importação a carne bovina dos EUA. G1 AGRO, 27 fev. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2020/02/27/china-alivia-ainda-mais-restricoes-de-importacao-a-carne-bovina-dos-eua.ghtml> Acesso em 19 mar. 2020.

 

Nota da Editora:

Aproveito para lembrar a todos da #desafioredatoresdeviante, pelo twitter ou pelo e-mail [email protected], para enviar perguntas para os redatores do Portal responderem!