Estamos no meio de uma pandemia e o que não falta são números e pesquisas científicas sendo compartilhados. Esses dados são absolutamente necessários para acompanharmos a evolução da pandemia e calibrarmos medidas de saúde pública para garantir o melhor atendimento à toda a população. Mas, quando a forma como toda essa informação é processada em nosso cérebro não é tão objetiva quanto imaginamos, há diversas questões que precisam ser observadas, especialmente considerando que o que consumimos na forma de notícias, relatórios e pesquisas científicas forma nosso entendimento da situação, automaticamente calibrando nosso comportamento perante aos riscos ponderados. A questão que eu levando neste texto é que a forma como os dados e fatos são apresentados ao público (e este texto não entra na questão das fake news ou subnotificações) pode nos levar a conclusões e decisões diversas do que faríamos com o mesmo cenário apresentado de forma diferente.

Essas diferentes formas de apresentação dos mesmo dados são conhecidas na economia comportamental como “framing” e este será o fio condutor do texto de hoje.

O que é framing?

Um dos conceitos básicos da área de economia comportamental é a ideia de heurísticas: “erros mentais” que cometemos de forma instintiva e que demonstram que não somos seres tão racionais quanto dizemos e supomos. Há diversos estudos mostrando que nossos cérebros tomam atalhos ou estão pré-condicionados ao risco em determinadas circunstâncias – e essa comprovação de que erramos sistematicamente e de forma consistente vai de encontro às expectativas lógicas da probabilidade, estatística e da suposta racionalidade humana.

Um desses “erros sistemáticos” é conhecido como framing – cuja tradução pode ser algo como enquadramento. Nesse conceito, está provado que, dependendo de como o problema é apresentado às pessoas, as respostas são incoerentes com os cálculos probabilísticos, o que  indica certas reações automáticas do cérebro. Vamos mostrar isso na prática com duas situações hipotéticas:

SITUAÇÃO 1:

Imagina que uma variedade de Covid-19 foi descoberta e há 600 pacientes contaminados. Você é o médico responsável pelo estudo e precisa tomar uma de duas decisões:

Opção A) Aplicar um tratamento que salvará 200 pessoas.

Opção B) Aplicar um tratamento que tem 1/3 de chance de salvar 600 pessoas e 2/3 de chance de não salvar ninguém.

Qual você escolheria?

SITUAÇÃO 2

Em um hospital há 600 pacientes com uma doença que parece Covid-19, você é o médico responsável pela unidade e precisa tomar uma de duas decisões:

Opção C) Aplicar um tratamento que matará 400 pessoas.

Opção D) Aplicar um tratamento que tem 1/3 de não matar ninguém, mas 2/3 de chance de matar todos os 600 pacientes.

E nesse caso, qual escolheria?

Antes de eu revelar o resultado dos estudos, vamos mostrar matematicamente que todas as opções têm o mesmo resultado esperado de salvar 200 vidas.

Opção A: 100% de chance de salvar 200 vidas = 200 (=1×200)

Opção B: 1/3 de chance de salvar de 600 vidas = 200 (=1/3x 600)

Opção C: Matar 400 pessoas = salvar 200 pessoas, logo 100% de 200 vidas = 200 (=1×200)

Opção D: 1/3 de chance de salvar de 600 vidas (não matar ninguém é igual a salvar 600 pessoas)  = 200 (=1/3x 600)

Logo, podemos concluir que todas as opções são probabilisticamente iguais e por isso não deveria fazer diferença qual opção escolhemos. Isto é, se fossemos verdadeiramente racionais.

Meu teste foi adaptado de um estudo de Kahneman e Tversky (1981) que mostrou uma preferência esmagadora pelas opções A e D. Talvez tenha sido a sua escolha também e, além da inconsistência matemática, devemos observar a ironia de um mesmo indivíduo escolher opções A e D: a escolha por A indica uma aversão ao risco de matar todas as 600 pessoa doentes, dando preferência à opção segura de salvar 1/3 dos pacientes – mas a opção D demonstra uma propensão ao risco, na esperança de salvar todos os pacientes. Se toda essa contradição existe, então por que a maioria de nós escolhe a estranha combinação A e D? A resposta está na forma como o problema foi descrito.

Vamos observar as palavras escolhidas nos problemas: Na situacão 1, a aposta com 100% de probabilidade usa a palavra “salvar” enquanto a aposta é colocada em termos de “mortes”. Na situação 2, a ideia é invertida: usamos a palavra “matará” na opção de 100% de probabilidade e colocamos a aposta em termos de “salvamento”. Com isso, naturalmente induzimos as pessoas a tender para os termos com os quais há maior reconhecimento positivo, colocados nas opções A e D.

E o que se pode observar é que a escolha das palavras e da forma como o problema é indicado tem um enorme impacto no subconsciente humano. Talvez você esteja pensando como nunca tenha percebido isso, e essa é parte da mágica do framing: não é que os dados tenham sido distorcidos, mas a maneira na qual eles são indicados causam uma tendência natural no seu cérebro, sem que você perceba. Se pensarmos em algumas das aplicações práticas, encontramos os seguros, as apostas de loteria e as promoções (por exemplo: como compre 1 leve o segundo pela metade do preço ao invés de um desconto de 25%).

Agora que já estamos familiarizados com a ideia de framing e como ela funciona na prática, eu trago alguns questionamentos sobre como a divulgação de algumas informações da Covid-19 no Brasil e no mundo pode “flexibilizar” os dados com essa questão do enquadramento.

“Número de Recuperados”

Confesso que não tenho me envolvido muito com os números da Covid-19, mas, logo que vi o primeiro boletim do Ministério da Saúde, fiquei bastante intrigada com o número de “recuperados”. Ora bolas, se eu tenho o número de casos, número de mortes, eu sei a proporção de recuperados e casos ainda em internação, para que então mostrar esse dado? Pelo mesmo motivo que vimos acima: “recuperado” tem um efeito positivo no nosso cérebro além de o número ser sempre maior que o de mortos – dando uma conotação positiva ao relatório (que, se repararem, começa com morte e deixa recuperados para o final, deixando um “gosto bom na boca” que também é explicado pela economia comportamental). Desta forma, as entidades responsáveis pelos dados alteraram o enquadramento dos números dando-lhes um caráter mais positivo.

“Casos por milhões de habitantes”

Muitos governos (incluindo o brasileiro) vêm tentando se defender de comparações entre os países pedindo que os números sejam comparados em casos por milhões de habitantes. Eu concordo que é preciso fazer as proporções adequadas para países com situações demográficas diferentes, mas vamos observar os efeitos do framing: ao dividir por milhão de habitantes, há uma redução do número absoluto e o impacto do dado é menor. Além disso, não é uma conta intuitiva para a maioria das pessoas pensar na proporção de “milhões de habitantes” fazendo com que o dado seja processado pelo cérebro sem grandes questionamentos. Em muitos casos, nosso consciente passa por cima de números com diferenças muito pequenas ao mesmo tempo em que enaltece mudanças de ordem de grandeza – como é o caso aqui.

“Mortes por cidade/ região”

Aqui o framing acaba tendo dois efeitos distintos: além de reduzir a ordem de grandeza dos números, a principal causa de enquadramento é a comparação automática. Quando olhamos esses dados, os cidadãos das 3 ou 4 cidades mais atingidas terão impacto mais negativo por se enxergarem no topo de uma lista negativa. Mas o restante da população tende a se enxergar de forma positiva e que “as coisas não estão tão ruins quando no lugar X, Y ou Z”, o que pode estimular – por exemplo – o relaxamento do isolamento social.

Se você chegou a este ponto do texto questionando como então pode absorver os dados sobre Covid-19 de forma mais isenta, a única solução é se debruçar sobre os dados usando o que Kahneman chama de o sistema devagar do cérebro – usando a racionalidade deliberadamente, fazendo questionamentos e observando a ordem de grandeza dos números. Mas a verdade é que não existe um mundo livre do framing ou da arquitetura de escolha. Richard Thaler, um economista comportamental laureado com o Prêmio Nobel, disse em seu livro “Nudge” que não existe arquitetura perfeitamente neutra, e que o máximo que podemos aspirar é que as empresas, governos e RHs divulgem dados e opções de escolha de forma que nos favoreçam entender os reais riscos e retornos e nos direcionam à melhor escolha para todos.