(conto anterior)

Poucos meses tinham passado do massacre em Coração Negro, a imagem da ordem estava um pouco arranhada. Hamza estava com alguns paladinos para investigar um grupo de cultistas. Assim que chegaram na cidade, foram emboscados. A situação tinha ficado rapidamente delicada, estava cercado e isolado por dois mercenários. Hamza estava bastante impressionado com a habilidade deles com as adagas e facas.

Uma aura verde envolveu o corpo do jovem paladino que conseguiu temporariamente mais velocidade para atacar. Anulou o primeiro inimigo, repeliu o golpe do segundo que ficou morto transpassado pela espada deixando o aço sagrado banhado por sangue. Na altura das costelas, percebeu dolorosamente o corte de uma adaga, não havia tempo, colocou a mão sobre o ferimento e tentou curar o melhor possível aquilo, seguiu em frente para ajudar os outros. Retornou para onde tinha começado o ataque encontrando uma luta voraz ainda na entrada da cidade.

– Olhe para mim! Vou te derrotar de frente! – desafiou o inimigo que estava de costas.

Quando uma saraivada de flecha de bestas matou boa parte dos inimigos. Os últimos se renderam, mas Donovan não aceitou e executou a todos ignorando as reclamações de Hamza. O velho mestre tinha acabado de chegar.

-Estávamos resolvendo outro problema quando recebemos a ordem de acabar com os cultistas com vocês. Pena não nos encontrarmos no caminho – ergueu o braço para cumprimentar o velho aluno.

-Isso era realmente necessário? Não foi o que o senhor me ensinou! – cumprimentou seu mestre apertando com um pouco mais de força tentando demonstrar reprovação.

-Eles não iram matar vocês? E são criminosos, não são? Quanto mal essas pessoas já fizeram a este lugar? – disse o velho mestre com todo sua autoridade.

-Bem… Não cabe a gente a decidir isso, mas… – tentou dizer Hamza ao ser interrompido.

-Essa conversa não vai a lugar algum – disse o velho mestre.

-E então? Pensou no meu convite? Seria uma honra contar contigo ao nosso lado – indagou.

-Ainda estou pensando a respeito mestre, mas não sei se concordo com a doutrina dos Flamejantes – respondeu de forma não definitiva.

A imagem do mestre começou a ficar distorcida. Hamza acordou de um profundo sonho que trouxe uma memória tão antiga. Pensou por alguns minutos e achou estranho por aquilo ter voltado nesse momento.

O silêncio era estranho, sentiu o cheiro da comida na cozinha, mas Olivia estava em silêncio, as crianças não pareciam estar em casa, coçou a barba e começou a pensar sobre aquele sonho novamente.

Estava sentado em uma boa poltrona no meio da sala em vestes comuns, costumava meditar nesse horário. À sua frente havia uma lareira que mantinha o local confortável, havia um suporte sobre ela com sua espada e adaga. As crianças costumavam passar um tempo encarando elas e a antiga armadura colocada ao lado.

Olivia tinha deixado de lado a vida de sacerdotisa da ordem, optou por cuidar dos filhos e ajudar o marido. Ela ainda ensinava a eles um pouco sobre a doutrina da ordem e os primeiros passos no caminho da magia.

Hamza escutou o começo da “tempestade”, as crianças tinham retornado, suas gargalhadas eram inconfundíveis. A dupla entrou na sala rompendo a tranquilidade, Diego era quase dois anos mais velho que Luan. Assim que entraram na sala, fizeram silêncio e uma reverência ao pai.

-Pai, nós vamos ao lago? – perguntou o jovem Luan.

-Claro que vamos, ele não falou sobre isso ontem? – falou Diego.

-Claro que vamos, um pouco depois desse maravilhoso almoço que a mãe de vocês está preparando – respondeu com um belo sorriso.

-Que tal perguntarem a mãe de vocês se ela precisa de alguma ajuda? – sugeriu levantando de onde estava.

Calmamente foi em direção ao quarto da caçula, entrou com todo o cuidado. Conseguia com bastante concentração perceber a respiração tranquila da pequena Valentina.

Depois de um belo almoço em família, passou um tempo com a pequena enquanto Olivia ensinava um pouco da doutrina da ordem e os primeiros passos na arte mágica. Logo saíram em direção ao lago, as crianças adoravam o local, mas eram proibidas de ir lá sozinhas. Durante a caminhada, Hamza era reverenciado por cada cidadão que encontrava.

-Vocês são privilegiados por terem uma professora tão boa e talentosa – dizia aos filhos rindo.

Caminhavam até o lago, as crianças sempre ficavam contentes ao ver que o pai era reverenciado pelos cidadãos. Já os membros da ordem tinham sentimentos mistos, alguns com a idade do pai ou mais jovens e poucos veteranos ficavam felizes ao encontrar Hamza. Outros olhavam feio ou evitavam falar com ele.

-Pai, o que você fez para deixá-los tão irritados? – perguntou Diego que era incomodado com a situação.

-Bem, percebi que havia algumas coisas que precisavam ser ajustadas na ordem – começou a explicação procurando falar de forma simples – Pedi uma audiência e mostrei algumas coisas. Infelizmente, os anciãos não gostaram do que ouviram. Eu e sua mãe fomos afastados por tempo indeterminado e assim começou uma campanha interna de difamação – falava isso coçando a pequena barba e tentando lembrar de alguns detalhes, além de sempre tentar simplificar a explicação.

Luan escutava perplexo toda a história, enquanto que Diego demonstrava um pouco de decepção.

-Creio que estavam tentando criar uma situação para uma expulsão. Formulei essa doutrina com o apoio de vários membros da ordem Branca. A ideia era espalhar uma outra visão sobre o nosso papel – explicou com orgulho.

-Os esclarecidos, não é? – afirmou Luan todo sorridente.

-Correto, a ideia era acrescentar uma visão a ordem tentando não ofender o círculo interno – explicou com uma expressão um pouco melancólica.

Já tinham saído da cidade e dois jovens membros dos esclarecidos acompanhavam distantes dando privacidade aos três. Diego sempre notava a presença deles.

-Parece que não deu certo, não foi? Você os irritou – disse Diego com ar de reprovação.

-E a visão verdadeira, pai? Como funciona? Explica novamente – Luan perguntou muito animado, mas olhando com reprovação à atitude do irmão. 

Diego deu de ombros, sabia que Luan via o pai como um verdadeiro herói. Diego tinha muito orgulho e nunca gostou das histórias que escutou sobre o pai.

-Outra vez, Luan? A “visão” é um termo exagerado usado pelos primeiros sábios da ordem. Bem, percebo a presença vil com muita sensibilidade a quase o dobro da distância das melhores sacerdotisas da ordem. Eu noto a forma da aura das pessoas, assim sei o tamanho, a proximidade, alguns sentimentos, as tendências para luz ou escuridão. As pessoas de uma aura específica são convidadas para fazer parte dos esclarecidos.

-Outros membros já conseguiram? – perguntaram os dois.

-Ainda não, acho que em breve alguns deles vão entender como funciona, mas já sentem um pouco da intenção. E isso já é o primeiro passo – explicou o pai, mas as crianças fizeram cara de que nada compreenderam.

-Filhos, a ordem não é perfeita, nada é perfeito, sempre existem coisas a melhorar. Nós não podemos deixar de fazer o nosso melhor, a vida de muitas pessoas dependem do que fazemos. A ordem só precisa saber retirar do círculo aqueles que não defendem as suas próprias doutrinas. Aqueles que entraram por vaidade ou por outros interesses, entendem? – perguntou, mas os filhos pareciam perdidos.

-É por isso que sua mãe ensina a vocês. Bem… Que tal praticarmos um pouco aqui no lago? – perguntou o antigo paladino para felicidade das crianças.

(Próximo conto)

Meus agradecimentos ao dedicado revisor, Adriano Schramm.

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