Eu tenho um problema muito grande em ser da Geração Z. Para quem não sabe, a Geração Z são pessoas que atualmente tem entre 11 e 25 anos (nascidos de 1995 a 2010) e que tem como característica serem umbilicalmente conectados1 com a maravilha tecnológica idealizada por Tim Berners-Lee na década de 1990 que é a Rede Mundial de Computadores, ou World Wide Web, ou nossa querida Internet. Também somos conhecidos como nativos digitais, pois, diferentemente da geração anterior a nossa (Geração Y ou Millennials, nascidos de 1980 a 1994), não tivemos que passar por um processo de adaptação e aprendizado quanto a ambientes digitais. Você pode perceber isso quando observa que, por você saber baixar uns torrents no PirateBay e passar o dia inteiro no celular, sua mãe acha que você pode hackear a senha do WiFi do vizinho. A experiência pessoal que adquiri durante a vida fazendo parte dessa geração que agora entra de vez na famigerada “vida adulta” é extremamente ambígua. Entretanto, certas coisas trazem um sentimento de tiozão do pavê em meu coração. Desde o advento das redes sociais em larga escala aqui no Brasil, sempre fui muito participante dos movimentos de conectividade digital, participando de muitas redes.

Entretanto, uma dessas redes sociais que não me pegou foi o TikTok. Acho que seu mecanismo de funcionamento proporciona que o usuário fique preso dentro da plataforma por muito tempo, sem se dar conta dessa passagem pelo curto tamanho dos vídeos e a velocidade de transição entre eles. Isso é ótimo para o aplicativo, mas pra mim que já não tenho muito tempo ocioso, é bem monótono. Mas entendo o apelo que o app tem para essa Geração Z e não julgo, tenho até amigos que usam.

Mas como a vida é uma grande brincalhona, ela dá seu jeito de subverter nossas opiniões da forma mais inesperada possível. Minha namorada, Giseli Dias, a qual já fiz menção em textos anteriores, é uma assídua usuária dessa nova febre. Como ela sabe que eu não uso, frequentemente ela faz uma espécie de “curadoria” de alguns desses vídeos rápidos para me mostrar quando nos encontramos com algumas coisas realmente interessantes e outras que se encaixam ao meu senso de humor extremamente duvidoso. E foi assim que eu descobri um vídeo que fazia divulgação de uma mãe pedindo a colaboração dos usuários para que pudessem ajudá-la a comprar um medicamento para seu filho pequeno que sofria de uma condição médica, chamada de Atrofia Muscular Espinhal (AME). Fiquei muito interessado no assunto e fui em busca de mais informações. Dessa vez você venceu, TikTok.

Segundo o Manual MSD, em sua versão para profissionais da saúde, a Atrofia Muscular Espinhal (AME) tem pelo menos quatro tipos2, mas todos têm sua origem em mutações autossômicas recessivas de um único lócus gênico no braço curto do cromossomo 5. Sintetizando de forma mais simples, é uma mutação no gene que é encontrado no cromossomo 5 nos bracinhos menores do cromossomo, geralmente representado em figuras e desenhos na parte de cima. Além disso, é uma mutação recessiva, logo, é necessário que o indivíduo herde de seus pais duas cópias defeituosas do mesmo gene para que a condição apareça. De forma geral, os sintomas são de perda muscular progressiva e dificuldade em engolir e respirar. A AME do tipo I por exemplo, tem uma mortalidade de até 95% dos casos até os 4 anos de idade.

Apesar de ser um quadro clínico extremamente triste para o paciente e seu entorno familiar, hoje não darei enfoque na doença em si, mas no seu tratamento, o qual aquela heroica mãe estava lutando para conseguir. Via de regra, as AME não possuem cura, apenas medidas de suporte ao paciente como fisioterapia e equipamentos auxiliadores, mas variam conforme a progressão do quadro. Porém, a ciência e tecnologia não são as forças-motrizes do desenvolvimento da civilização à toa, então buscamos um jeito de ajudar as pessoas nessas condições.

Antes de entendermos o medicamento, precisamos entender mais profundamente a gênese desse distúrbio. O gene que sofre a mutação que descrevemos acima é o SMN1, o gene neurônio motor de sobrevivência3 (ou Survivor of Motor Neuron, no original em inglês). A função desse gene é produzir a proteína SMN, que é diretamente responsável pelo bom funcionamento e sobrevivência dos neurônios motores. Com esse gene mutado, é vista uma perda de transmissão de sinais entre o Sistema Nervoso Central e os músculos esqueléticos, que gradativamente vão se atrofiando4.

Entendido esse mecanismo, podemos seguir em frente. O nome do medicamento em questão é Onasemnogene abeparvovec (um nome horrível, eu sei, mas segue diretrizes internacionais), vendido sob a marca Zolgensma (um nome um pouco menos ruim, mas ainda desagradável de se falar), da farmacêutica suíça Novartis. O princípio de ação do mesmo é baseado em uma técnica chamada de terapia gênica, que é tão impressionante que beira a magia. Mas antes de entrarmos de cabeça nesse princípio de ação, vou-lhes apresentar nosso primeiro combatente e o porquê de ele estar aqui: Theodore Friedmann.

Theodore Friedmann é um pesquisador americano que na década de 70, juntamente com seu colaborador Richard Roblin deram o pontapé inicial na área de terapia gênica com o artigo denominado “Gene Therapy for Human Genetic Disease?”5 (“Terapia gênica para doenças genéticas humanas?”, em tradução livre). A partir de então, muitas pesquisas foram desenvolvidas a partir do conceito primordial de substituir um DNA defeituoso por um DNA funcional externo. E o Zolgensma nasce diretamente desse conceito.

O Zolgensma é um biofármaco que consiste em capsídeos (algo como a casca de um ovo cozido) de um vírus chamado AAV9, que foi modificado geneticamente para ser inócuo (não causar doenças) para os seres humanos. Dentro desse capsídeo é inserido uma cópia saudável do gene SMN1, que ao ser administrado nos pacientes produz novamente a proteína SMN6. Uma das enormes vantagens do medicamento é ser administrado em dose única, apenas mantendo o uso de corticosteroides por algum tempo, seguindo a orientação médica. As limitações desse método são que ele deve ser administrado em crianças de até dois anos para uma melhor resposta e os efeitos adversos comuns como o aumento das enzimas hepáticas7.

Agora entendemos o porquê de o Zolgensma ser considerado o medicamento mais caro do mundo certo? Afinal, manipular DNA e vírus por aí não deve ser nada barato, além de ser um tratamento de uma doença extremamente rara, tendo uma prevalência de um a dois indivíduos a cada 100.0008. Podemos até inserir aqui nosso segundo combatente, Adam Smith. O filósofo escocês escreve em seu livro “A Riqueza das Nações”, que sempre que a demanda (necessidade) de um bem é maior que a sua oferta, o valor desse bem sobe, e sempre que a oferta de uma mercadoria supera sua demanda (procura), seu valor cai. Se fizermos um desenvolvimento mais profundo deste pensamento, chegaremos na justificativa usada não somente pela Novartis mas como por todas as grandes farmacêuticas que desenvolvem medicamentos com um custo tão elevado: a procura é baixíssima por conta da raridade do quadro tratado e o investimento em pesquisa e desenvolvimento é altíssimo e demorado, podendo demorar anos para que a empresa possa ver o retorno da sua aposta.

Mas chega de mistério. Afinal, quanto custa esse remédio de nome quase profano? Que pergunta indelicada. Apenas a singela quantia de 2.125 milhões de dólares, ou, corrigindo em valores atuais de quando estou escrevendo este texto, cerca de 12 milhões de reais9. Não, eu não escrevi errado, pode consultar as referências. Com um frasquinho desse você conseguiria comprar 114 Corollas modelo 2021. No final do ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), através da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), estipulou o preço máximo de comercialização em território nacional do Zolgensma em R$ 2,878 milhões, uma redução de 76,6% do valor original. Um descontão pra você poder comprar com o auxílio emergencial.

Tendo em vista estes termos, podemos introduz nosso último gladiador do terceiro milênio. Peter Singer é um professor australiano e filósofo, muito atuante na ética prática. Peter é um grande defensor de uma filosofia chamada de Altruísmo Eficaz, que consiste em adotar medidas realmente impactantes de ajuda entre as pessoas. Observando um pensamento tão nobre como o de Peter, podemos nos perguntar: será que é ético cobrar um valor tão exorbitante por um medicamento que pode mudar toda a trajetória, não somente do paciente, mas também de toda a sua família? Qual o limite do lucro em saúde pública? Se pudéssemos implementar o Altruísmo Eficaz dentro das indústrias farmacêuticas, seria ético também obrigá-las a abrir mão de seu lucro e tempo de investimento para que algumas famílias fossem beneficiadas?

A Novartis também não pode vista como uma vilã inescrupulosa sem coração. No final de 2019, a entidade anunciou que faria uma doação de 100 doses do medicamento para crianças fora dos Estados Unidos, por meio de uma loteria global. Muitos bioeticistas e famílias com a AME viram com maus olhos esse programa, pois traria um desconforto emocional e ansiedade desnecessárias às já fragilizadas famílias participantes10. Todavia, apesar de eticamente questionável, não é melhor que a empresa doe essas 100 doses dentro desses critérios do que não doe nenhuma? A Novartis está se adequando a um Altruísmo Eficaz quando salva 100 vidas?

O que posso dizer é que a discussão não está encerrada, e muito provavelmente não estará por muito tempo. Não apenas em relação ao Zolgensma e a AME, mas com nossos avanços tecnológicos, em breve veremos o mesmo tipo relação entre Theodore, Peter e Smith ocorrerem com outras doenças e outros tratamentos. Enquanto o desenvolvimento científico, a “mão invisível” do mercado e os princípios de ética e dignidade humana não entrarem em concordância, ainda veremos pessoas buscando os meios mais alternativos possíveis para garantir um direito básico constitucional, sua saúde e bem-estar.

(Infelizmente não consegui reencontrar o TikTok da mãe que buscava ajuda em sua jornada. Desejo que consiga arrecadar o valor o mais rápido possível e que seu filho tem uma vida longa e feliz. Para quem quiser mais informações sobre famílias que possam estar precisando de ajuda, existe o Instituto Nacional de Atrofia Muscular Espinhal, o INAME, no seguinte link: https://iname.org.br/)

 

Referências Bibliográficas

 

1 – https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/geracao-z.htm

2 – https://www.msdmanuals.com/pt-pt/profissional/dist%C3%BArbios-neurol%C3%B3gicos/dist%C3%BArbios-do-sistema-nervoso-perif%C3%A9rico-e-da-unidade-motora/atrofias-musculares-espinhais-ames?query=atrofia%20muscular%20espinhal

3 – https://www.orpha.net/consor4.01/www/cgi-bin/Disease_Genes.php?lng=PT&data_id=16671&MISSING%20CONTENT=SMN1&search=Disease_Genes_Simple&title=SMN1

4 – https://rarediseases.info.nih.gov/diseases/7674/spinal-muscular-atrophy

5 – https://science.sciencemag.org/content/175/4025/949.abstract

6 – https://adisinsight.springer.com/drugs/800040414

7 – https://dailymed.nlm.nih.gov/dailymed/drugInfo.cfm?setid=68cd4f06-70e1-40d8-bedb-609ec0afa471

8 – http://www.periodicos.ufc.br/eu/article/view/26241/53328

9 – https://epoca.globo.com/mae-arrecada-12-milhoes-para-salvar-filha-com-remedio-mais-caro-do-mundo-24571515

10 – https://www.reuters.com/article/us-novartis-gene-therapy-idUKKBN1YO2BR?edition-redirect=uk