Se você, leitor, é um ser humano vivo no Século XXI, eu diria que há uma chance de quase 100% de que esteja familiarizado com o conceito de trilhas sonoras. É praticamente impossível que não haja nenhuma melodia que, com poucas notas, não te remeta diretamente ao seu filme, série, videogame ou esporte favorito. Devemos esse mundo em que vivemos, povoado por fragmentos sonoros diretamente associados a elementos extramusicais, ao compositor germânico Richard Wagner, e a seus leitmotivs, sobre os quais falamos em minha última contribuição por aqui. E, para coroar essa conversa, que se iniciou com uma discussão sobre a capacidade da música de expressar significado intrínseco, eu gostaria de analisar uma obra cinematográfica em que a função narrativa da música é particularmente evidente.

 

Vamos falar sobre O Senhor dos Anéis.

Antes de partirmos para o prato principal, no entanto, acredito ser importante pontuarmos algumas relações indiretas – embora inegáveis – entre as obras de Wagner e Tolkien.

Primeiramente, é importante ressaltar que existe uma espécie de convergência espiritual entre o que Wagner buscou fazer com suas óperas e o que Tolkien, muito posteriormente, almejou com sua obra literária. Ambos tinham uma certa obsessão por mitos fundadores e mitologias da criação, e buscaram ativamente, com seus trabalhos artísticos, dar contribuições para a formação e reafirmação da identidade de seus respectivos povos – germânico e britânico. De modo que me parece acertada a decisão que foi tomada de, ao se traduzir a obra de Tolkien para o cinema, envolve-la em uma trilha sonora plenamente wagneriana.

Digo isso pois, muito embora Wagner e seus leitmotivs tenham de fato sido cruciais para o desenvolvimento da arte das trilhas sonoras ao longo do Século XX, com o passar do tempo a lógica de se criar pequenos fragmentos musicais que representassem recorrentemente cada elemento da narrativa deixou de ser tão obrigatória ou onipresente. Diversas trilhas sonoras modernas empregam leitmotivs wagnerianos de forma muito mais sutil e diluída do que era comum no passado, isso quando o fazem. O que não quer dizer que sejam ruins ou pobres musicalmente, apenas que operam em uma lógica distinta. Mas só faço questão de trazer luz a esse ponto para deixar claro que, na trilha sonora de O Senhor do Anéis, composta no início dos anos 2000, nada há de sutil ou diluído em termos do emprego de técnicas wagnerianas.

Não há fã da série de filmes de Peter Jackson que não tenha em mente um catálogo enorme de sons e fragmentos musicais associados diretamente a elementos centrais da narrativa. Há a melodia densa e sombria que representa a influência maléfica de Mordor, a sequência alegre e bucólica que faz menção direta aos Hobbits, bem como o tema imponente da própria Sociedade do Anel, apenas para citar alguns leitmotivs. Nenhum deles, perceba, precisa de muito mais do que 3 ou 4 notas para se tornar imediatamente reconhecível, e evocar as imagens mentais almejadas pelo compositor Howard Shore.

Para entender um pouco melhor sobre a aplicação dessa técnica, vamos analisar uma cena em que diversos elementos narrativos estão contracenando, interagindo e se transformando mutuamente: o Conselho de Elrond.

 

https://www.youtube.com/watch?v=TrJJ6ncp1fc

 

Primeiro, é importante entender o que ocorre nessa cena. Perceba que, em menos de 5 minutos, ela praticamente conta uma história em si, com a proposição inicial de um conflito, o seu acirramento até um ponto de quase violência, o surgimento de esperança por meio de um ato de renúncia, e, por fim, a solução por meio de uma aliança improvável. Tendo isso em mente, é interessante começarmos a dissecar essa micronarrativa em termos musicais.

O primeiro minuto da cena constitui justamente a apresentação do conflito. Em questão de apenas alguns segundos, Elrond estabelece a necessidade de se destruir o Anel, fica provado que esta não é uma tarefa ordinária, e, por fim se postula que aquele a realiza-la deverá ser um dos membros do próprio conselho. Ao longo desse pequeno arco narrativo, existe uma música difusa, que faz menção ao clima sombrio e ameaçador associado a Mordor, mas sem se fazer excessivamente presente. Os personagens ainda estão tentando compreender o tamanho do problema que têm às mãos, e a música reflete essa incerteza, ao mesmo tempo em que aponta o que está por vir.

É interessante notar que esse trecho é cercado por dois momentos de absoluto silêncio musical: as primeiras notas graves só são ouvidas em 0’06’’, após a fala de Elrond sobre a necessidade de se destruir o anel. De forma semelhante, a música cessa por completo em 0’57’’, com a declaração: “um de vocês deve fazê-lo”. Se a música é utilizada para delinear intenções e complementar significados, sua ausência é certamente utilizada como forma de pontuar momentos de tensão e expectativa.

Esse segundo momento de silêncio perdura por longos 20 segundos, dando espaço para que o monólogo de Boromir sobre os perigos de Mordor ganhe destaque. É apenas (e precisamente) quando ele menciona o grande Olho de Sauron, a 1’17’’, que a música torna a aparecer, mais sombria e enérgica que em sua primeira iteração. A partir desse ponto, o problema apresentado começa a ganhar peso e tangibilidade para os personagens presentes, ao mesmo tempo em que começam a brigar entre si. Estamos na fase da intensificação do conflito, em que as intenções do antagonista da narrativa parecem estar mais próximas de se realizar. A música não deixa dúvidas a respeito, com a introdução perfeitamente clara do leitmotiv associado a Mordor, em 1’59’’.

A sequência seguinte é particularmente interessante pois, por duas vezes consecutivas, a música é utilizada para delinear os pensamentos e sentimentos de personagens, antes ou sem que eles os expressem verbalmente. O tema ameaçador de Mordor se encerra bruscamente em 2’22’’, com um tenso crescendo nos metais, que acompanha o entendimento e decisão de Frodo de que ele, em toda sua singeleza e ordinarieadade, deve ser o Portador do Anel. Após uma breve transição, a trilha então claramente pontua a expressão pesarosa e culpada de Gandalf, a 2’32’’, ao finalmente ouvir o posicionamento de Frodo.

A partir desse ponto, dissolve-se o clima de ameaça, e o tom ditado pela música passa a ser a o pesar pelo fato de a missão ter sido entregue a, aparentemente, o mais fraco e incapaz dos membros do conselho. Aqui, é interessante mencionar a troca dos instrumentos predominantes. Se no tema de Mordor há destaque para os trompetes e trombones, com sua sonoridade metálica e agressiva, aqui há predominância das cordas, cujo som mais velado e alongado contribui enormemente para a troca de direcionamento emocional da cena.

Pouco a pouco, os personagens presentes passam a aceitar a decisão de Frodo como uma possível solução para o conflito. E conforme isso acontece, essa mesma música, suave porém melancólica, escala sutilmente, até finalmente se condensar naquele que talvez seja o leitmotiv mais marcante de toda a série: a 2’57’’, quando Gandalf transforma seu pesar em ação e diz “eu o ajudarei a carregar esse fardo”, finalmente se ouve o princípio do tema da Sociedade do Anel. Ainda fraco e difuso, como deve ser, pois se trata da representação musical de algo que está em formação.

Conforme a cena avança, novos membros se juntam à Sociedade, e nesse momento se ouve o mesmo tema sendo repetido, mas ganhando mais dimensão a cada nova iteração: ele se torna mais forte, mais agudo, e passa a ser executado por mais instrumentos além das cordas iniciais. A Sociedade do Anel se torna gradualmente mais sólida e proeminente, e assim o faz a música que a representa.

E logo após a adesão de Boromir à missão, em que há uma espécie de regresso da música a seu estágio mais melancólico e incerto, finalmente há uma virada significativa em 3’42’’, quando a entrada de Sam é justamente pontuada pelo alegre e bucólico tema dos Hobbits. A exemplo do que ocorreu anteriormente com o motivo da Sociedade do Anel, o motivo associado aos Hobbits ganha ainda mais força e proeminência quando mais dois deles – Merry e Pippin – se juntam à cena, em 3’54’’.

E, após um breve momento de alívio representado pelos hobbits e sua música-tema, note que é exatamente no momento em que Pippin diz a palavra “missão”, em 4’07’’, que o tema da Sociedade do Anel volta a soar. Dessa vez, iniciando-se já muito mais forte e presente do que na primeira oportunidade, pronto para assumir sua forma final, imponente, heroica e completa, quando finalmente a formação da Sociedade do Anel é declarada. Note como, apenas pelo uso desse tema – e de sua gradual e sutil escalada até o ápice – a música, de forma quase independente, narrou a formação da Sociedade antes mesmo que ela fosse estabelecida por completo.

Quis escrever esse texto, dissecando passo a passo a forma como leitmotivs podem ser utilizados para narrar a ação de uma cena, como forma de tentar tornar o conceito – tão presente em nossas vidas – um pouco mais claro e acessível. Espero ter ajudado na compreensão do caro leitor, e que na próxima vez que assistir a um filme ou série você possa usar essas ferramentas para se perguntar: o que a música está me dizendo agora?