Você já ouviu que o corpo fala? Sabe o que significa somatizar? Imagina de que maneira o discurso do seu corpo pode estar falando do seu estado de espírito ou do seu humor? Então é sobre isso que vamos falar um pouco aqui nesse diálogo breve entre a História e a Psicologia.

Vamos começar falando da teoria humoral, um dos tratados integrantes do Corpus Hippocraticum, um compêndio também chamado de Coleção hipocrática e cujo nome remete a Hipócrates, considerado o maior médico da Antiguidade, “pai da medicina” e responsável por transformá-la em ciência. O Corpus Hippocraticum reúne tratados de diversos autores que perduraram como base das ciências da saúde desde a Antiguidade até o século XIX abordando o homem e sua constituição física com temas que versam sobre anatomia, medicina e “psicologia”[1]. A teoria humoral é citada nos tratados Da Natureza do Homem, Dos Humores e Das Doenças para o estudo e o entendimento da ocorrência das doenças no homem.

Na escola hipocrática, humor referia-se a uma substância que se encontrava no organismo e cujo nivelamento determinaria o estado de saúde ou de doença do indivíduo. Na Antiguidade, humor também dizia sobre algo fluido ou líquido e que passou de forma gradativa a representar o estado de espírito. Então, o indivíduo saudável apresentaria seus humores equilibrados ao passo que o doente se caracterizaria pelo desarranjo entre eles e, mediante os sintomas apresentados, seria tratada a doença conforme as características determinantes dos humores.

A quantidade de humores era indeterminada, mas consideravam nos tratados quatro: o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a água, substituída posteriormente pela bílis negra. Essa divisão levava em conta os quatro elementos naturais, as quatro estações do ano, a simbologia numérica de Platão na representação da concretude do campo das ideias e as quatro qualidades elementais: quente, frio, úmido e seco. Juntando todos esses fatores temos as seguintes correlações:

  • Ar – quente e úmido – primavera – sangue – sanguíneo;
  • Fogo – quente e seco – verão – bílis amarela – colérico (cholé = bile);
  • Terra – frio e seco – outono – bílis negra – melancólico (mélanos = negro);
  • Água – frio e úmido – inverno – fleuma – fleumático

Essa relação entre o homem e a natureza dá base para expressões como “fulano está enfezado” ou ainda se você está bem ou mal-humorado. E foi a partir dessa associação que o médico grego Cláudio Galeno, conhecido como Galeno de Pérgamo, desenvolveu uma teoria na qual tais combinações eram chamadas “temperos”. Ele detalhou sua teoria em seu tratado De temperamentis, no qual ele identifica nove temperamentos possíveis provenientes dessas interações.

Galeno dividiu os seus “temperos” em: um grupo de quatro de acordo com a predominância das qualidades; um segundo grupo de quatro onde essas qualidades apareciam em duplas; e o ideal, no qual todos os humores se encontram em perfeito equilíbrio. O tratado galênico determinou o que a medicina ocidental considerou os quatro temperamentos básicos: o melancólico, no qual a bílis negra prevalece; o fleumático, em que há excesso da fleuma; o sanguíneo, cujo sangue é predominante; e o bilioso ou colérico, no qual predomina a bílis amarela.

Galeno também acreditava que os temperamentos tinham relação com as capacidades da mente e, estudando Platão, Aristóteles e os estoicos, concluiu que ela poderia ser afetada por determinados aspectos do corpo. E é nesse ponto da estrada que a História descobre a nascente Psicologia, já que o Corpus Hippocraticum serviu de manual básico para a medicina ocidental até o século XIX quando os tratados componentes do compêndio passaram a ser revistos. Maaaaaaas, os tratados hipocrático-galênicos não deixaram de exercer influência sobre os pensadores da época, como é o caso do médico e filósofo Wilhelm Wundt, um dos preceptores da Psicologia científica.

Eis então o diálogo História-Psicologia! Entre os séculos XIX e XX as pesquisas sobre temperamentos se desenvolveram tendo como base os estudos galênicos transformando o conhecimento sobre o temperamento e entendendo a forma como ele, enquanto aspecto construtivo do ser, se relaciona com os demais aspectos do ser como a personalidade, por exemplo. O temperamento exerce, então, influência sobre o comportamento e as relações sociais do indivíduo por ter uma natureza emocional assim como intervém no desenvolvimento psicológico. Hoje, o mais aceitável é que algumas características temperamentais surgem de processos fisiológicos do sistema linfático e de ações hormonais explicando a relação genética e a influência do meio. Ou seja, se fundamenta na noção básica de equilíbrio interior hipocrática-galênica fazendo emergir o conceito de somatização enquanto fruto relacional do indivíduo com o meio assim como de influência e desequilíbrio.

De acordo com a OMS, por meio do CID – 10, o Transtorno de Somatização é classificado sob o código F45.0. A versão disponibilizada pelo Departamento de Informática do SUS, acrescenta que “o curso da doença é crônico e flutuante, e frequentemente se associa a uma alteração do comportamento social, interpessoal e familiar”. Assim, resumidamente, temos que o Transtorno de Somatização consiste em um processo de sinalização física de males de origem emocionais que exercem influência sobre todas as esferas vitais do indivíduo.

A detecção deste transtorno não difere de qualquer patologia clínica. O corpo humano produz sintomas físicos na tentativa de sinalizar desarranjos conduzindo à busca por auxílio médico e a descoberta de eventuais desequilíbrios orgânicos. Um dos primeiros passos é a realização de um exame de sangue, um fluido corporal e uma herança hipocrático-galênica.

Podemos afirmar, portanto, que somatizar é anunciar desequilíbrio entre o orgânico e o psíquico que tende a desencadear sérios desconfortos no cotidiano. Ao somatizar o indivíduo deposita em seu corpo conflitos que desencadeiam diversos tipos de tormentos psíquicos que o impedem de solucioná-los. O fato de apresentar sintomas amplos e similares a outras patologias de quadro clínico dificulta ser diagnosticada demandando comumente um trabalho conjunto entre a medicina e a psicologia. Em decorrência das dificuldades de diagnóstico e excluídas as possibilidades de patologias orgânicas, deve-se considerar a possibilidade de ocorrência de quadros como transtornos depressivos e/ou ansiosos dando-se em associação com Transtornos Somatoformes. Importante ressaltar que somatização e transtorno somatoforme não são equivalentes, tendo em vista a maior amplitude e abrangência do conceito do primeiro.

Portanto, ao sinal de qualquer alteração orgânica, escute o seu corpo. É bem capaz de que ele tenha muito a lhe dizer.

[1] As aspas justificam-se pelo fato de que a Psicologia enquanto área da ciência se principia na segunda metade do século XIX.

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Felipe Figueiredo. Professor de História formado pela UFRJ, especializado em Ensino de História com foco em games pela UCAM e Mestrando em Filosofia e Ensino pelo Cefet-RJ. Apaixonado por música, livros, animes e conhecimento científico. Questionador com imensa facilidade em associações livres, analista do comportamento humano e educador fora da caixinha.