Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da 2ª vara cível da comarca de Deviante City.

Processo nº xxxxxxxxx

Tarik Fernandes, já devidamente qualificado nos autos da ação de indenização por danos morais no processo em epígrafe, que move contra Marcelo Guaxinim, por meio de seu causídico subscrito, vem, mui respeitosamente perante Vossa Excelência requerer a juntada do documento em anexo (foto de uma beterraba).

Nesses termos, pede-se deferimento.

André Trapani

Advogado

 

Se você entendeu o que está escrito aí e, se, mais ainda, você já escreveu (ou copiou e colou) algo parecido, precisamos conversar.

Esse texto é um modelo de uma petição de juntada de documentos, ou seja, um documento em que você pede (petição) para juntar (anexar) um documento. Essa base acima é encontrada em muitos processos, às vezes trocando algumas palavras, às vezes com umas orações a menos, mas não duvido que tenha alguns até com algumas orações a mais, afinal, quanto mais melhor (sqn).

Se trata de um pedido muito simples. O processo já está rolando, no caso, um processo de um guaxaverso alternativo em que o Tarik se revolta com o bullying que sofre no Portal. O autor já fez os seus pedidos principais, mas, por algum motivo, precisa anexar mais um documento ao processo. Porém, ele não pode simplesmente mandar o documento, pois também precisa requerer ao juiz que o documento seja juntado (anexado) ao processo.

Aí você me pergunta: mas pra algo tão simples, precisa de tantas palavras difíceis? A resposta é não, só de algumas. Vamos traduzir o que está escrito aí.


O endereçamento

A primeira frase “Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da __ vara cível da comarca de Deviante City” é chamada endereçamento. Como em uma carta, você inicia o texto falando pra quem a carta é, no caso, para o Juiz de Direito da 2ª vara cível da comarca de Deviante City.

Isso tudo se refere, não à pessoa, mas a uma função específica, ou seja, é uma coisa só. Mas já temos alguns termos técnicos aí.

Antes de explicá-los, é preciso entender que há uma diferença entre o termo técnico (ou jargão) e o que chamamos de juridiquês.

O primeiro é um conceito típico da área que, por carregar uma carga de sentidos muito própria, não pode ser substituído sem uma perda de sentido. O segundo é uma linguagem desnecessariamente prolixa e formal, no caso, utilizada pelos profissionais do direito. Para entender melhor, dá uma conferida no excelente(íssimo) Spin #900, da Debbie (aproveita e ouve o Spin #295 dela, sobre linguística forense).

Nessa frase em específico, temos esses termos técnicos:

  • Juiz de Direito

É um juiz de justiça comum estadual, portanto, não é nem um desembargador ou ministro (que atuam nos tribunais), nem juiz de justiça especial (trabalhista ou eleitoral, por exemplo), nem de justiça comum federal.

  • Comarca de Deviante City

É a jurisdição, a área em que o juiz atua. Não dá pra trocar por município, pois uma comarca pode ser tanto maior que um município, quanto menor.

Será maior, por exemplo, quando abrange, além do município que dá o nome (Deviante City), outros municípios menores ao redor, como a Spin de Notícias Town.

Quanto à comarca menor que o município, ocorre em cidades muito grandes como São Paulo. Como uma comarca teria muitos casos e que ocorreriam muito longe, é mais fácil dividir o município em duas comarcas para facilitar o trabalho dos servidores do judiciário.

  • 2ª Vara

Esse termo, que gera muitas piadinhas, se refere a uma divisão dentro da comarca, seja apenas para organizar, seja para distribuir competências.

Por exemplo, geralmente temos divisão entre as varas cíveis e as varas criminais. Dentro das varas cíveis, podemos ter divisão pelos temas dos processos: responsabilidade civil, famílias, sucessões, etc.

Já o resto da frase: “Excelentíssimo senhor doutor”, é um formalismo, em partes desnecessário.

O Excelentíssimo se relaciona ao pronome de tratamento “Vossa Excelência”. Pessoalmente, eu sou muito contra pronomes de tratamento. Não vejo outra função que não criar uma hierarquia social excludente. Pra mim, o Vossa Excelência não é melhor que os outros pra ter um pronome exclusivo pra ele.

Você poderia argumentar “ah, mas é uma questão de respeito”. Não, não é, ou vai dizer que o Barroso foi respeitoso com o Gilmar Mendes quando disse “Vossa Excelência é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”? (pensando bem, acho que ele até deu uma segurada respeitosa nas palavras).

Outra formalidade bizarra é o “Senhor Doutor”. A gente já tem o Excelência, que traz a ideia de um pronome de tratamento. Aí vem um pronome de tratamento “senhor”, pra depois vir um pseudotítulo “doutor”.

Fora que o doutor é outro “título” que vem como uma forma de forçar uma hierarquia social. A lei que regulamenta isso é tão velha que chama Lei Imperial.

Aliás, na minha opinião, essa lei não foi recepcionada pela Constituição, ou seja, ela não vale mais.

Concluindo, poderia muito bem resumir o endereçamento para: “Excelentíssimo (uma luta de cada vez, vamos deixar um, pelo menos) Juiz de Direito da 2ª Vara da Comarca de Deviante City.

 

Termos desnecessários no corpo do texto

Assim como nenhum juiz vai indeferir (negar) a juntada de documento por não ser chamado por todo o seu título imperial, não o vai fazer caso você não explicite que o pedido é mui respeitoso. Também já está implícito na assinatura que o autor está pedindo por meio de seu causídico, palavra que o pessoal só usa porque advogado já virou uma palavra muito simples.

Aliás, entrando nesse tema, se você escreve petições, ou qualquer outra coisa, entenda: não só você não precisa trocar palavras mais conhecidas por outras mais estranhas, como isso não é muito legal. Afinal, você está escrevendo seu texto para que ele seja entendido ou para mostrar seu conhecimento em palavras que ninguém usa?

Portanto, por favor, use advogado, não causídico; Ministério Público, não parquet, Constituição, não os milhões de nomes usados que não vou listar aqui pra não derrubar o servidor.

Com isso, já melhoramos um pouco nossa petição:

Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da 2ª vara cível da comarca de Deviante City.

Processo nº xxxxxxxxx

Tarik Fernandes, já devidamente qualificado nos autos da ação de indenização por danos morais no processo em epígrafe, que move contra Marcelo Guaxinim, por meio de seu causídico subscrito, vem, mui respeitosamente perante Vossa Excelência requerer a juntada do documento em anexo (foto de uma beterraba).

Nesses termos,pede-se deferimento.

André Trapani

Advogado

 

Já tirei os dados do réu e da natureza da ação, também, porque já tem o número do processo, então não é necessário, é só olhar no processo quais são esses dados que, aliás, são completamente indiferentes pra essa petição.

 

O que poderia ser escrito de outro jeito

Assim como eu já fiz, muita gente deve escrever “processo em epígrafe” sem saber o que diabos é isso. Trata-se do processo cujo número está escrito ali em cima. Já a frase “já devidamente qualificado nos autos do processo em epígrafe” indica que a qualificação do autor já foi feita em outro momento, ou seja, já constam os dados pessoais que são exigidos para integrar o processo (endereço, e-mail, documentos pessoais etc.).

Essa informação não é tão essencial, mas é bom explicitar, pois pode ser que o Tarik não é um autor, mas um terceiro, ou seja, alguém de fora do processo que veio requerer alguma coisa. Mas ela poderia ser colocada assim: “Tarik Fernandes, já qualificado no processo”.

Não precisa falar que foi devidamente qualificado, nem precisa falar que foi no processo em que você está peticionando, pois, se fosse em outro, você teria que qualificar de novo.

Também já tirei “autos”. Essa é outro termo técnico. Existe uma diferença entre autos, processo, procedimento e ação.

Os autos são os papeis, ou os arquivos (em caso de autos digitais), são o que existe fisicamente.

Já o processo, é, com o perdão da redundância, o processo, ou seja, é a sequência de atos que iniciam com a petição inicial, em que o autor pede que o seu direito seja reconhecido e concretizado, até a decisão final, que concede e concretiza (ou não) esse direito. Portanto, você não pode pegar um processo, apenas seus autos.

O procedimento é o caminho que esse processo vai percorrer. Pode ser mais curto, mais longo e pode ter certos passos específicos, dependendo do que está sendo debatido (ex.: ter ou não perícia).

Por fim, a ação é o exercício de um direito pelo autor. É esse exercício que dá início ao processo.

Ainda assim, ainda que seja mais correto dizer autos do processo, podemos utilizar uma metonímia e simplificar para processo.

Vamos ver como ficou?

 

Excelentíssimo Juiz de Direito da 2ª vara cível da comarca de Deviante City.

Processo nº xxxxxxxxx

Tarik Fernandes, já qualificado no processo, requer a juntada do documento em anexo (foto de uma beterraba).

Nesses termos,pede-se deferimento.

André Trapani

Advogado

 

Note que também já troquei “vem requerer” por “requer”, pra dar mais uma enxugada. Agora só falta o fechamento.

 

O fechamento

Eu, sinceramente, não faço ideia do quão necessário é pedir o deferimento do pedido que você está fazendo. Bom, em primeiro lugar, “pedir”, aqui não é o verbo mais adequado, e sim “requerer”, pois, tecnicamente, pedido está relacionado àquilo que o autor realmente quer no final do processo, o mérito (no nosso exemplo, danos morais). Se você já está fazendo um requerimento, não está claro que você quer que ele seja deferido.

O equivalente aqui seria eu te pedir um copo d’água e, em seguida, pedir que você atenda ao meu pedido de um copo d’água. Tá, eu sei que burocracia é meio complicado e você precisa ficar cobrando que seu pedido seja atendido, mas não no mesmo ato do pedido.

Além disso, o “nesses termos” é totalmente redundante. Seria muito estranho pedir deferimento em outros termos que não os que você colocou.

Portanto, isso poderia ser totalmente retirado, mas, para lutar uma luta de cada vez, vou manter só o finalzinho. E aí, me fala qual ficou melhor?

 

Esse:

Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da 2ª vara cível da comarca de Deviante City.

Processo nº xxxxxxxxx

Tarik Fernandes, já devidamente qualificado nos autos da ação de indenização por danos morais no processo em epígrafe, que move contra Marcelo Guaxinim, por meio de seu causídico subscrito, vem, mui respeitosamente perante Vossa Excelência requerer a juntada do documento em anexo (foto de uma beterraba).

Nesses termos,pede-se deferimento.

André Trapani

Advogado

 

Ou esse:

Excelentíssimo Juiz de Direito da 2ª vara cível da comarca de Deviante City

Processo nº xxxxxxxxx

Tarik Fernandes, já qualificado no processo, requer a juntada do documento em anexo (foto de uma beterraba).

Pede-se deferimento.

André Trapani

Advogado

 

Conclusão

Isso tudo está em uma petição das mais simples que existem. Imaginem só uma petição inicial ou uma contestação, os documentos mais importantes do processo em que todos os argumentos do autor e do réu devem ser apresentados.

Agora, se coloque na posição do juiz. Primeiro: você negaria um direito só porque o advogado não pediu “mui respeitosamente”? Segundo: você preferiria ler textos mais próximos de qual modelo?

Não se trata só de uma questão de quebrar um formalismo e um elitismo sem sentido, chegamos a casos em que as petições são tão mal escritas, em grande parte por uma necessidade besta de escrever difícil, de escrever em outras línguas ou de puxações desnecessárias de saco do juiz, que chegam a prejudicar o direito de quem está sendo representado.

Por isso, com a mais que devida vênia dos nobres colegas causídicos que não coadunam com as razões acima apresentadas, devo dizer que vocês não logram com a costumeira justiça ao redigir vossas peças de guisa prolixa. À vista disso, mui respeitosamente rogo-lhes: escrevam como se alguém fosse ler seus textos.