Recentemente fui realizar uma ação social dentro de uma casa de idosos. Para localizar melhor você, meu amigo leitor, sou afiliado de uma Organização Não-Governamental (as famosas ONG’s) que se chama Médicos do Mundo, mais especificamente dentro de um núcleo de ação que se chama “Laboratório de Rua”, onde eu e outros amigos biomédicos realizamos testes rápidos para rastreio de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).

Apenas para esclarecer, a Médicos no Mundo não é composta apenas por biomédicos, temos diversos núcleos que possuem médicos, cirurgiões-dentistas, enfermeiros, psicólogos, advogados, médicos-veterinários e inúmeros outros profissionais que doam um pouco da sua disponibilidade para levar o mínimo de qualidade de atendimento em saúde para a população em situação de rua.

Além de fazer teste de glicemia capilar (também conhecido popularmente como “medir o diabetes”) e o beta-HCG (o teste de gravidez, muito parecido com aquele comprado em farmácia), a gente também realiza orientações gerais quanto ao cuidado com sua própria saúde dentro da realidade em que os atendidos se encontram.

Entretanto, nossa ONG tem um enfoque maior em atendimento de população em situação de rua, normalmente realizada uma vez por mês, nos sábados na região da Praça Júlio Prestes, que infelizmente é conhecida como “cracolândia”, e aos domingos na região do Páteo do Colégio, muito próximo à Praça da Sé, no Centro Histórico de São Paulo.

Mas como bem sabemos, a população em situação de rua não é a única desassistida em diversos aspectos pelo Poder Público. O Brasil é um poço de desigualdades e São Paulo apenas aglutina várias faces da desigualdade socioeconômica em um só lugar. Sendo assim, além desses trabalhos mensais que realizamos através da equipe multidisciplinar e espetacular dos Médicos do Mundo, eu e alguns amigos profissionais realizamos ações esporádicas de forma conjunta, várias pessoas físicas de diversas áreas que se unem para levar atendimento em regiões mais periféricas da cidade. A maior parte do nosso grupo é formada por profissionais da área da saúde mental, como psicólogos e psicanalistas, mas estou lá como representante dos microscópios deixando um pouquinho a bancada de lado pra ir ver gente de verdade, aquela gente que a gente, classe média sofredora on-line e pensadores contemporâneos de 280 caracteres, só vê quando aparece nos programas de tragédias.

Com nossas bases estabelecidas, recentemente nosso grupo independente foi convidado para realizar uma ação social numa casa de idosos, o que conhecemos de forma relativamente pejorativa como “asilo”.

Aqui entra uma personagem importantíssima, sempre recorrente em meus textos, que é minha psicóloga em formação favorita e debatedora constante de madrugadas, chamada pelos pacientes de Dra. Giseli Dias, mas que também é minha namorada, companheira e futura esposa, que sempre me acompanha nas ações independentes que realizamos. Nessas ações, eu fico com a parte clínica dos pacientes e ela com a parte mental, que reconheço humildemente que demanda muito mais energia durante o atendimento. Assim sendo, juntamo-nos aos outros companheiros de ação e fomos em frente nessa casa de repouso que fica na região da Fazenda da Juta, zona leste de São Paulo.

Chegando lá, atendemos diversos idosos com as mais variadas condições que dariam uns 10 textos cada um. Entretanto, hoje escolhi especialmente uma idosa muito gentil a qual chamarei aqui de dona Helena.

Dona Helena é uma senhora muito ativa, com mobilidade muito boa, apesar das dores nos pés e o frio que sente neles, do qual a mesma se queixa e está com seu estado de lucidez plenamente preservado.

Porém, ao conversar com dona Helena, ela me revela uma coisa que sempre a incomodou, mas nunca lhe foi explicada. Desde muito nova, Dona Helena foi informada de que tinha “uma anemia que nunca passa” e que inúmeras vezes precisou de transfusões de sangue. Além de não ter crescido muito e sempre ter sido propensa a se machucar muito por fraquezas que ela sentia e de aparecer diversos pontinhos vermelhos em sua pele ocasionalmente, alguns doloridos e outros não. O enigma estava difícil, até que dona Helena deu uma informação crucial que, pelo menos conceitualmente, matava a charada: ela era filha de italianos.

Todo esse panorama apresentado por dona Helena apontava para uma doença chamada de talassemia, que, pra você que não fugiu das aulas de grego, tem origem na palavra grega thalasso, que significa “do mar” (daí a origem também da denominação que damos para o medo irracional do mar, a talassofobia) e semia, que se significa “doença”. Ela assim foi chamada por ser conhecida como a anemia do Mediterrâneo, pela sua peculiar prevalência nessa região do globo terrestre.

Segundo os Manuais MSD, a talassemia está entre os distúrbios mais comuns hereditários que afetam a produção da hemoglobina. De forma muito simplificada, a hemoglobina é uma proteína que possui como sua principal função transportar o oxigênio pelo organismo. Ela funciona como uma espécie de “ônibus” proteico em que o oxigênio embarca e viaja pelo corpo.

Assim como no nosso “ônibus”, a hemoglobina é formada por quatro partes, que seriam as rodas do busão, que podem ser combinadas de diferentes formas. Apesar de não ser (pessoas que são fanáticas por ônibus, é sério), sabemos que temos vários modelos de ônibus e no nosso corpo não é diferente. Temos três modelos de “ônibus” com rodas diferentes, que são a hemoglobina A1 (HbA1), a A2 (HbA2) e a Fetal (que não abordaremos aqui para não complicarmos demais).

A hemoglobina A1 seria nosso ônibus padrão FIFA, onde cabe todo mundo e todos descem em seus pontos. Tanto que em situações normais representam cerca de 95 a 98% das hemoglobinas em um indivíduos adulto. Já a HbA2 seria aquele ônibus da década de 80, meio capenga, com pneus carecas e um motorista muito louco de rebite. Ela não entrega tão bem seus passageiros quanto a HbA1, mas entrega. As “rodas” do ônibus HbA1 chamamos de combinação alfa e beta, e do ônibus HbA2 são combinações alfa e delta. Essas “rodas” são cadeias polipeptídicas que juntas formam um emaranhado proteico que serve basicamente pra levar nossos passageiros (os oxigênios) por aí.

Se resgatarmos nossa regrinha de ouro lá do ensino médio, lembraremos que toda proteína tem sua origem em algum gene. Logo, pensando que nossa hemoglobina é o ônibus e as rodas seriam essas cadeias quase proteicas. Elas precisam ter sua “fábrica” de rodas em algum local e esse local é no DNA.

Entendendo essas explicação, podemos dizer, de forma absurdamente simplificada, que a talassemia é uma doença que ocorre quando essas rodas do ônibus não são bem produzidas por algum problema na fábrica, fazendo com que nosso ônibus molecular ande mal, igual quando seus parentes marcam de ir pra Praia Grande, mas esquecem de fazer a revisão do carro.

Sendo assim, muitas vezes o organismo é obrigado a recrutar os ônibus da vovozinha pra realizar o trabalho que teria que ser realizado pela Itapemirim e toda sua melhor frota, o que muitas vezes não demonstra o melhor resultado.

Dependendo da talassemia apresentada, o paciente apresenta anemia, esplenomegalia (aumento do baço), icterícia, úlceras, distúrbios do crescimento e predisposição a fraturas patológicas, alguns sintomas desses apresentados pela dona Helena. O diagnóstico dessa condição é sempre laboratorial, dependendo da talassemia pode ser feito via eletroforese de hemoglobina, esfregaço periférico e, para as futuras mamães, alguns locais oferecem exames de DNA que identificam essa condição no pré-natal.

Como disse, existem várias combinações de talassemias, sendo que o prognóstico varia de caso a caso, indo desde uma condição imperceptível até expectativa de vida baixa e necessidade de transfusões regulares, sendo esse o tratamento mais frequente, além da retirada total do baço quando necessário. A retirada de ferro sérico periódica é necessária, e em alguns casos, é aconselhado também o transplante de células-tronco.

Na atual situação, dona Helena não pode se submeter a um transplante, pois os benefícios são superados pelos riscos a meu ver. Entretanto, o fato de poder explicar melhor a condição que ela mesma passava me trouxe muita alegria, pois sou muito adepto da filosofia de que informação sobre si mesmo é uma ferramenta de autoconhecimento e apropriação dos detalhes que fazem de nós únicos.

Dona Helena também ficou muito contente, pois além dessas intempéries que o acaso lhe presenteou, ela relata se sentir muito sozinha e entediada na casa de idosos, pois sua rotina se resume em acordar, comer, assistir a um programa na sala de convivência e voltar a dormir. Ela relata não saber em que dia está de forma exata, pois todos são exatamente iguais, exceto quando ocorrem eventos esporádicos que mudam a rotina do local. Por conta de motivações familiares, dona Helena foi colocada por livre e espontânea pressão nesse ambiente, que apesar de importante para pacientes  mais limitados quanto a sua independência, não é necessário à dona Helena.

Este artigo é uma forma de homenagem à dona Helena e a todos os idosos que estão solitários repetindo todos os dias o fardo de apenas existir, como camundongos presos dentro de rodinhas de exercícios. Muitos deles deixaram de importar, como dona Helena, que possui plenas capacidades de viver o resto dos seus dias da forma que quiser, mas teve sua liberdade tolhida para apenas não ser um estorvo futuro para seus familiares.

Logo, meu amigo leitor, quando for seguro, convido você a visitar um lar de idosos, ou mesmo revisitar algum parente seu que esteja nesse ambiente, sua presença será um sopro de esperança para aqueles que construíram as bases que estamos vivendo. E, além disso, também é um exercício estoico para encarar a efemeridade da vida e repensar melhor como você pretende chegar ao final, seja ele hoje ou no desconhecido.

P.S.: Agradecimento especial a minha querida e amada Giseli Dias, que se submeteu a uma carga psicológica e emocional absurda ao se dispor a escutar histórias e sentimentos daqueles que deixaram de importar. Tenho orgulho da profissional que está se tornando, tenho certeza que será uma das melhores do mundo. Amo você.

Memento mori.

 

Referências Bibliográficas:

https://www.msdmanuals.com/pt-pt/profissional/hematologia-e-oncologia/anemias-causadas-por-hem%C3%B3lise/talassemias?query=talassemia

https://www.biologianet.com/biologia-celular/hemoglobina.htm

https://www.smartlabis.com.br/guia-de-exames-1/hemoglobina-a2

https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29458726/