Não, não foi praga bíblica e nem sinal do apocalipse. O ano de 2020 veio com umas surpresas bem, digamos, interessantes, não é mesmo? Você lembra da tal nuvem de gafanhotos que ameaçou chegar no Brasil? E você sabia que existem várias nuvens desses insetos afetando a África e o Oriente Médio desde 2019 e que ainda não acabaram?

Calma, não por isso. A praga de gafanhotos foi citada na bíblia justamente por já ter ocorrido algumas vezes na época em que ela foi escrita. E é um evento que continua acontecendo vez ou outra até hoje, tendo alguns momentos memoráveis ao longo da história. Por exemplo, em 1874, nos Estados Unidos, quando uma nuvem com milhões de gafanhotos chegou a bloquear a luz do sol por algumas horas; ou em 1958, na Etiópia, em que um enxame de gafanhotos consumiu 167 mil toneladas de grãos, o que seria suficiente para alimentar um milhão de pessoas; ou, ainda, em 2006, em Cancun, no México, pouco tempo depois do país ter sido atingido pelo furacão Wilma. Alguns outros casos estão listados aqui e aqui.

Figura: Nuvem de gafanhotos no Egito, em 2004. Os insetos invadiram a capital, Cairo, bloqueando a vista para as Pirâmides de Gizé. Fonte

Mas, então, por que é que isso acontece? Por que, de uma hora para outra, os gafanhotos se reproduzem loucamente e começam a atacar plantações e, até mesmo, áreas urbanas pelo mundo? Para entender isso, vamos começar falando sobre o ciclo de reprodução do inseto. As fêmeas colocam os ovos no solo. Os ovos, então, absorvem a umidade ao seu redor e eclodem, nascendo as ninfas, que são versões pequenas dos adultos, porém sem as asas. Normalmente, as ninfas já saem pulando por aí, comendo as plantinhas que encontram pelo caminho, mas não fazem muita questão de socializar. Cada gafanhoto cresce meio que sozinho na sua área. A não ser que eles se tornem gregários, que é o que acontece quando eles formam as nuvens.

Nem todas as espécies possuem a característica de formar grandes nuvens, mas as poucas que conseguem já são capazes de fazer bastante estrago. O gafanhoto do deserto (Schistocerca gregaria), inseto que atacou as plantações do leste da África, Oriente Médio e Índia, é um exemplo. Tudo começa quando chove após um período de seca. Os ovos que estavam no solo seco aproveitam a umidade para eclodir e as ninfas recém-nascidas começam a competir pelo alimento presente.  No entanto, se nascem ninfas demais, elas vão acabar esbarrando umas nas outras enquanto estão buscando comida e esses esbarrões estimulam diversas mudanças metabólicas nos organismos dos bichos, que acabam resultando em alteração de cor e tamanho dos insetos, além da liberação de feromônios que atraem uns aos outros. Temos, então, a transformação de gafanhotos solitários em gregários. A transformação inversa, de gregários para solitários, não é tão simples e pode levar algumas gerações para acontecer.

Figura: Gafanhotos do deserto congelados no Centro de Pesquisa Mpala, no Quênia. Quando solitários, os adultos dessa espécie possuem coloração esverdeada, para se misturarem com a vegetação, enquanto os gregários possuem cores mais vibrantes, como rosa, quando ainda imaturos, e amarelo, quando maduros. Fonte

Então, depois de termos uma quantidade enorme de insetos (uma nuvem contém cerca de 40 milhões de insetos por km2, podendo chegar até a 80 milhões, quando muito densa), é que começa o problema. Cada gafanhoto adulto é capaz de comer o seu peso corporal por dia, ou seja, cerca de 2 a 2,5 gramas. Em uma nuvem com vários quilômetros quadrados, uma plantação pode ser devorada em pouquíssimo tempo, trazendo insegurança alimentar para as regiões em que isso acontece.

No leste da África, no primeiro semestre de 2020, os países mais afetados foram Quênia, Etiópia, Somália, Djibouti e Eritréia, em regiões onde a população sobrevive da agricultura e criação de animais (áreas de pastagem também são devoradas pelos insetos). Nessa região, os gafanhotos começaram a aparecer em 2019 como consequência de eventos climáticos de 2018. A FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) publicou uma linha do tempo em seu site oficial que cita ciclones ocorridos em maio e outubro de 2018 como eventos iniciais que propiciaram a proliferação dos insetos. Esses ciclones transformaram as dunas de um deserto ao sul da Península Arábica em um conjunto de pequenos lagos. Com a umidade maior no local, os gafanhotos puderam se reproduzir com sucesso, aumentando significativamente o tamanho da população e dando origem ao surto à medida em que novas gerações de gafanhotos do deserto nasciam, cresciam e se reproduziam.

Em meados de 2019, os insetos migraram para a Etiópia e a Somália, onde se estabeleceram até que, em outubro de 2019, chuvas bastante intensas (o que não é comum para o outono na região) juntamente com mais um ciclone em dezembro, favoreceram novamente a reprodução excessiva dos insetos, que migraram mais uma vez, agora para o Quênia, que sofreu com a maior infestação dos últimos 70 anos no início de 2020. Aliás, falando em início desse ano, foi quando mais países começaram a receber a visita dos gafanhotos famintos, como Uganda e Tanzânia.

O aumento do surto logo em 2020, quando estamos lidando também com a pandemia de COVID-19, dificultou demais a vida dos moradores da região. Não havia como transportar insumos, EPIs e nenhum tipo de tecnologia para auxiliar no controle dos insetos. A ajuda humanitária tem sido importantíssima e se deu através da FAO e do Banco Mundial. Não apenas aporte financeiro, mas também monitoramento, pesquisa e orientação estão sendo oferecidos aos moradores das regiões afetadas. A estimativa da FAO é que, até agora, 2,7 milhões de toneladas de cereais tenham sido salvas de serem comidas pelos gafanhotos, o que é muita coisa.

No início de maio o surto chegou também na Índia, vinda do vizinho Paquistão. Ambos os países se depararam com a maior infestação dos últimos 30 e 25 anos, respectivamente. Os gafanhotos chegaram na Índia para complicar um mês já bastante marcante no país (vídeo da infestação aqui), não só pela COVID-19, mas também pela passagem do ciclone Amphan, que gerou uma forte onda de calor, com temperaturas que chegaram até 50°C em algumas regiões.

Então, a situação não tem sido muito bonita em várias regiões, mas será que isso tem relação com a nuvem de gafanhotos que surgiu na Argentina e chegou pertinho da fronteira com o Brasil em agosto? Bom, a espécie de gafanhotos que apareceu por aqui é outra, a Schistocerca cancellata, mas ela também possui a característica de se modificar em animais gregários dependendo das condições. E foi o que aconteceu na Argentina. Desde 2015 o país vem monitorando as populações desse inseto porque eles não são novidade por aqui. Nas décadas de 30, 40 e 60 do século passado, tanto a Argentina quanto o Brasil foram atacados por esses insetos famintos e, desde então, o ciclo de vida dos gafanhotos é acompanhado de perto.

Assim como seu colega gafanhoto do deserto, o inseto da América do Sul se reproduz com o aumento da umidade e esse ano foi bem propício para ele. Embora estivéssemos entrando no inverno em junho, as temperaturas estavam mais amenas. Além disso o aumento das chuvas não estimulou apenas o nascimento de mais ninfas, mas também o crescimento das plantas, havendo bastante comida à disposição dos insetos, que cresceram e se multiplicaram. Outro fator que deve ser somado foram os ventos favoráveis, que auxiliaram na locomoção do bicho.

Mas, e aí, estamos em uma maré de azar ou será que tem mais alguma coisa acontecendo? Vários ciclones seguidos, chuvas em épocas em que elas não são costumeiras, temperaturas mais amenas em estações mais frias, tudo isso parece sintoma de algo bem maior, como as mudanças climáticas, talvez, você não acha? Pois é isso que especialistas vem alertando. Eventos extremos como enchentes, ciclones, secas prolongadas, são consequências das mudanças climáticas (não acredita? Leia aqui, aqui e aqui). E o que esses eventos proporcionam, como a proliferação de gafanhotos, levam a ainda outras consequências, como uso intensivo de inseticidas nas regiões afetadas, fome e emigração. Lembrando que não é a apenas comida que está sendo consumida. No Paquistão, por exemplo, as plantações de algodão, produto exportado pelo país, foram seriamente comprometidas, afetando diretamente a economia.

Como já citado, a FAO é o órgão que vem trabalhando para minimizar o risco de nuvens de gafanhotos, concentrando esforços, agora em dezembro, na África Oriental e Iêmen (onde já se observam insetos solitários, ao invés de gregários).  A Somália, especiamente, sofre grande risco de novas infestações causadas pelo ciclone Gati, que passou pelo país em novembro, gerando inundações e garantindo boas condições para as as próximas gerações de gafanhotos. Outros países que continuam recebendo atenção são Eritreia, Sudão e Arábia Saudita.

Mapa mais recente da situação das nuvens de gafanhotos. Os países onde se concentram mais esforços no momento são Etiópia, Quênia, Somália e Sudão, sendo Etiópia e Somália (países em vermelho), os que se encontram em maior perigo. Fonte

A FAO estima que mais 3,5 milhões de pessoas ainda possam ser afetadas se novas medidas não forem tomadas e, para isso, são necessários 40 milhões de dólares já no início de 2021. E o pior, não se sabe quando isso vai acabar e quanto de esforço ainda será preciso até lá. Afinal, como comentado anteriormente, são necessárias várias gerações para que esses gafanhotos gregários voltem a ser solitários. Enquanto isso não acontece, a alternativa é usar inseticidas e monitorar condições ambientais para acompanhar a movimentação das nuvens.

E o que podemos tirar de lição de tudo isso? Sem dúvidas, a relação entre a frequência de ciclones, furacões e inundações com o sucesso da proliferação desses insetos.  Uma maior quantidade de eventos extremos traz um maior de número de consequências difíceis de se lidar. Se quisermos prevenir que novos eventos aconteçam e mais milhões de pessoas sejam severamente afetadas, precisamos levar a sério o assunto mudanças climáticas.