Quando eu tinha 21 anos, tive uma briga com meu pai porque achava que eu estava acomodada por ainda não ter escolhido o que queria fazer da vida. Eu já tinha me formado em Relações Internacionais, mas nenhum dos caminhos óbvios me agradava.

O mundo corporativo era rígido demais, a academia, monótona demais, a diplomacia, política demais. Nunca mais vou me esquecer dele gritando que eu poderia ser o que eu quisesse, mas que precisava decidir logo, dedicar sangue, suor e lágrimas e — claro — me tornar a melhor.

O livro que inspirou essa resenha diz que meu pai está completamente alinhado com as expectativas sociais de hiperespecialização dos jovens. Mas que ele também está completamente errado em defender isso como caminho para o sucesso.

O livro “Porque os Generalistas Vencem em um Mundo de Especialistas” de David Epstein argumenta que, em um mundo cada vez mais especializado, indivíduos com habilidades generalistas têm vantagens significativas. A capacidade de adquirir uma ampla gama de conhecimentos e habilidades, em vez de se concentrar exclusivamente em uma área específica, permite uma adaptabilidade maior e uma melhor resolução de problemas em contextos complexos e em rápida evolução. Esses últimos, mais conhecidos como “vida real”.

 

A vida real é generosa ou perversa?

Para exemplificar a diferença de impacto de especialistas e generalistas, Epstein divide o mundo no que ele chama de “domínios generosos” e “domínios perversos”. Os generosos são áreas como o xadrez e o golfe, em que as regras são diretas, claras, nunca mudam e o feedback de erro é imediato. Os perversos são sistemas complexos, muitas vezes sem regras definidas e com feedback atrasado (quando há algum) — representados pela economia e a ciência.

Tiger Woods é o menino prodígio dos domínios generosos: começou a jogar golfe aos 2 anos (literalmente), treinava tacadas em casa durante a infância e aos 18 já se tornava uma estrela do esporte. Tanto que a maioria dos pais e educadores adora usar essa e outras histórias parecidas como modelo: ensine a criança desde muito cedo para que ela se torne um especialista o mais rápido possível. A palavra mágica aqui é prodígio.

É a comemoração de que seu filho começou a andar 3 semanas antes dos colegas de creche. É a menina talentosíssima que toca Mozart no piano aos 6 anos. Ou o jogador de futebol que aos 11 foi chamado para treinar no exterior. É o triunfo dos especialistas!

Epstein também destaca que esse modelo de hiperespecialização precoce não está só enraizado nos pais, mas também na nossa educação. As escolas oferecem cada vez menos espaço para a exploração e mais foco na reprodução de conceitos. Menos cultura e conhecimentos gerais, mais notas 10 no boletim.

Aprendemos desde cedo que, quanto mais competitivo e complicado o mundo fica, mais especializados devemos nos tornar (e mais cedo devemos começar) para navegá-lo. Isso cria especialistas que sabem muito sobre muito pouco. Uma metáfora do livro diz que cavamos trincheiras cada vez mais profundas quando nos especializamos, mas esquecemos de olhar as trincheiras do lado. Isso inibe conexões com outras áreas do conhecimento.

Mas vamos ser sinceros: a vida moderna é esmagadoramente feita de domínios perversos. Precisamos constantemente nos adaptar às mudanças na sociedade e na tecnologia. Nem sempre recebemos feedback, o que dificulta nossas próximas escolhas. A vida não vem com manual de instruções.

 

E tem solução?

Talvez a evolução das inteligências artificiais (IAs) seja uma bênção à espreita. Conforme mais tarefas mecânicas e repetitivas dos “domínios generosos” são absorvidas pelas IAs, a humanidade pode ser naturalmente empurrada para um desenvolvimento mais interdisciplinar e até criativo. Mas não é simples.

Nosso maior desafio é manter a amplitude, a experiência diversificada e o pensamento “fora da caixa” em um mundo que cada vez mais incentiva (e até exige) a hiperespecialização. E ainda mais desafiador é estimular essa ideia de amplitude nos jovens, enquanto escolas e universidades valorizam a especialização.

O cenário fica ainda mais complexo, porque os generalistas frequentemente encontram seu caminho tardiamente. Lidam com muitos interesses em vez de se concentrarem em um único por anos, enquanto a sociedade e o sistema educacional martelam que a especialização e os prodígios são o caminho a seguir. O descompasso entre o desenvolvimento dos generalistas e as expectativas externas pode ser grande demais.

Mas para além de apontar os problemas, este livro apresenta exemplos e conceitos convincentes para virarmos essa chave. Errar é a melhor maneira de aprender. Desistir pode ser a melhor escolha. Experimentar muitas áreas te torna mais criativo.

Contraintuitivo, mas olhando o mundo ao nosso redor, verdade.

A maior virtude dos especialistas é o volume de conhecimento. Mas o aparelho que você está usando para ler este texto é prova de que todo o conhecimento do mundo está na palma das nossas mãos. O que precisamos fazer é interpretar, questionar, pensar, fazer conexões inesperadas, olhar de um ponto de vista diferente. A vida real (e perversa) exige isso.

Pode parecer irônico minha resenha de um livro sobre o triunfo dos generalistas em um site cuja equipe é formada basicamente de especialistas. Contudo, se pararmos para pensar, o Portal Deviante e o SciCast são um ode à exploração horizontal e interdisciplinar. É um espaço de diálogo e troca entre diversas áreas, que ainda tem o desafio de traduzir tudo ao público leigo. São várias trincheiras conectadas.

A verdade é que o mundo exige mais canivetes suíços e menos lentes de aumento. A inovação disruptiva exige criatividade, não repetição. Tanto que a inteligência artificial já aprendeu a jogar xadrez, mas não Imagem e Ação.