Essa resenha é uma parceria do Portal Deviante com a Cia da Letras, que disponibiliza livros do seu catálogo para os nossos redatores escreverem as resenhas. Livro de hoje: “Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas”.

Pinotti, M. C. (org) (2019) Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas. São Paulo: Portfólio-Penguin. 253p.

Ocorrida na Itália na década de 90, a Operação Mani Pulite “se tornou um processo ‘moral’ contra os poderosos e corruptos membros da classe dominante” (Gnisci 1997). Soa familiar? Não é segredo que a Operação Lava Jato se baseou em grande parte na Operação Mãos Limpas. O livro Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas, organizado por Maria Cristina Pinotti, dá continuidade a dois encontros prévios – um seminário no Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP) e um debate na sede do jornal O Estado de São Paulo – que reuniram os responsáveis pelas duas operações. Os cinco capítulos que compõem o livro foram escritos pela própria Pinotti e cinco dos personagens protagonistas na luta contra a corrupção no Brasil e na Itália. Fica claro que o livro tem, portanto, um olhar bem personalista de como se deram as duas operações.

O prefácio, escrito pelo ministro do Superior Tribunal Federal Luís Roberto Barroso é um capítulo à parte. Em um discurso, como sempre, apaixonado, Barroso aponta origens remotas e causas imediatas da corrupção no Brasil. Ele apresenta em que pé está a corrupção hoje no país, incluindo algumas mudanças legislativas e legais decorrentes dessa luta contra a corrupção; perpassa pelo paralelo com a operação italiana e os aspectos econômicos que rodeiam a corrupção; alerta para os perigos da corrupção e para o papel do processo penal em cercear condutas ilícitas. Termina com a esperança em uma “refundação do país” pela tomada de consciência da sociedade civil.

Maria Cristina Pinotti é formada em administração pública pela FGV e tem doutorado em economia pela USP. No primeiro capítulo, intitulado Corrupção, instituições e estagnação econômica: Brasil e Itália, Pinotti delega ao Poder Judiciário a responsabilidade de moldar o comportamento dos cidadãos por meio da aplicação eficiente das leis. Para a autora, as mesmas instituições que são responsáveis por estagnação ou desenvolvimento econômico de um país são também responsáveis por gerar maior ou menor nível de corrupção. Instituições essas que são tanto leis e regras escritas, como valores e crenças.

Enquanto Barroso, no prefácio, menciona a corrupção presente nos últimos 30 anos de democracia, faz referência ao patrimonialismo no reinado que não distinguia o público do privado como uma das origens da corrupção, Pinotti faz questão de tratar a corrupção a partir dos anos 2000 e culpa “o grupo que assumiu o poder e lá pretendia permanecer” (p.30) pela fragilização institucional. Frases do tipo “[a]pesar do tamanho do estrago, há esperança, pois a população acordou de anos de devaneio” (p.30) enfraquecem o argumento proposto pelo livro de um debate a respeito do combate à corrupção de forma geral.

Com relação aos custos econômicos da corrupção, aparte a obviedade de que a corrupção faz com que dirigentes levem em consideração as vantagens para si e não para a sociedade, a autora traz exemplos interessantes de outros países. Infelizmente, a autora incorre em uma falácia maldosa ao apontar a correlação entre índice de percepção de corrupção e PIB per capita: quanto mais rico o país, menor é a corrupção. Mesmo afirmando que a causalidade não pode ser comprovada, ela lança a pergunta “a pobreza causa corrupção ou a corrupção causa pobreza?” (p.36), capciosamente criando uma relação de causalidade nos dados encontrados. Com o uso de vários gráficos, Pinotti apresenta a situação econômica da Itália e justifica a redução da produtividade e do crescimento econômico à reação do sistema político à Mani Pulite. Finalmente, a autora conclui seu capítulo com uma descrição da corrupção e da estagnação econômica no Brasil. Nas últimas 23 páginas, ela aborda a corrupção sistêmica; a proliferação de partidos e a cláusula de barreira; financiamento de campanha; foro privilegiado; prisão a partir de julgamento em segunda instância; estagnação econômica; dívida e impeachment, entre outros tópicos menores.

O segundo capítulo é escrito por Gherardo Colombo, autor de vários livros, ex-juiz e procurador italiano responsável pela investigação sobre crimes de corrupção conhecida como Mãos Limpas. O capítulo, escrito em primeira pessoa, mostra toda a frustração de quem viu anos de trabalho não darem os resultados esperados. O ex-juiz traz números impactantes de mais 5 mil pessoas envolvidas nas investigações, dentre as quais políticos e empresários. Ele descreve vários casos desvelados pela operação e relata como tudo começou, as várias ramificações das investigações ao longo dos anos e a necessidade de uma força-tarefa, já que encontraram muito mais do que esperavam. Inclusive, o autor menciona uma entrevista que teria dado alertando para o fato de que, devido ao volume de processos, muitos poderiam prescrever antes de serem julgados.

Colombo cita exaustivamente sua participação em encontros internacionais à época da investigação cujo sucesso atribuía, dentre outros aspectos, à lealdade da polícia judiciária; aos acordos de colaboração; ao “apoio da opinião pública e da mídia, que sem influenciar nosso comportamento, desarmam o acusado, ressaltando a ilicitude do seu comportamento” (p.84); e à relação entre juízes e procuradores, que na Itália não são carreiras separadas. Este último motivo de sucesso se torna ainda mais interessante depois dos últimos acontecimentos divulgadospelo Intercept Brasil.

Cita também que a queda do muro de Berlim teria sido um dos motivos que levou ao sucesso do início das investigações. Na descrição de artigos da constituição e do código penal italianos para justificar a imparcialidade do juiz, Gherardo Colombo afirma que o “juiz deve ser a terceira parte, e isso significa que não pode julgar aquilo que fez ou tenha ajudado a fazer” (p.86) porque estaria muito envolvido nas próprias teses. Me questiono se isso contradiz um dos aspectos citados como motivo de sucesso da operação, já que ele afirma que juízes e procuradores trabalhavam conjuntamente e não deixa claro se os juízes que julgavam eram diferentes dos juízes que participavam das investigações. Afinal, a constituição italiana parece compartilhar o princípio de imparcialidade do código de ética da magistratura no Brasil.

O autor passa, então, a citar várias manobras do legislativo para descriminalizar o que antes era crime, fazendo com que “muitas pessoas ficassem [sic] livres dos processos com a fórmula “o fato não está mais previsto como crime”” (p.89). Outro aspecto importante para deslegitimar a operação foi que a opinião pública mudou de ‘apoio incondicional’ a ‘aberta hostilidade’. O autor explicita sua frustração ao concluir que, depois de 13 anos de investigação, a corrupção no país não só não desapareceu, como parece ter aumentado.

Essa frustração com o sistema levou o autor a largar a magistratura. O restante do seu capítulo é um desabafo pessoal a respeito do que acredita ser o papel do judiciário, do problema da desigualdade social e dos ataques pessoais que sofreu por ter participado da investigação. Acho válido ressaltar que, apesar da organizadora fazer uma nota posterior de apoio a Sergio Moro, já que o livro já estava sendo editado quando ele decidiu assumir o ministério da justiça do governo Bolsonaro, Gherardo Colombo, em entrevista ao Estadão, condena a decisão do ex-juiz.

O terceiro capítulo Itália: um país resignado? Foi escrito por Piercamillo Davigo, procurador da operação Mão Limpas e hoje juiz da Corte de Cassação, equivalente às supremas cortes. O capítulo trata da corrupção de maneira abrangente e foca, principalmente, em questões políticas. Primeiramente, o autor propõe discutir a “cifra negra” que seria a diferença entre os crimes que são relatados e os que não aparecem nas estatísticas judiciárias. Em um primeiro tópico bem técnico, o autor faz referências à operação Mão Limpas apenas para exemplificar os problemas da corrupção de maneira ampla e sua relação com o crime organizado. Em seguida, o autor descreve brevemente o que foi a operação Mani Pulite. Este capítulo e o anterior se complementam quanto aos fatos decorrentes da operação. Um dos pontos que Davigo levanta como importante para o sucesso inicial da operação foi a crise econômica que assolava o país em 1992. (Does it ring any bells?) Diferentemente do autor do capítulo anterior, Davigo discorda da influência da queda do Muro de Berlim na investigação. Vejo isso como um ponto positivo do livro. Trazer pontos divergentes entre os autores é interessante para podermos ponderar outras perspectivas.

No entanto, a frustração com a política é uma constante entre os dois autores. Davigo se estende em descrever como funciona a política na Itália e a reação do sistema político à operação Mãos Limpas. Enquanto o capítulo anterior passa brevemente sobre o que o legislativo fez para travar a operação, neste terceiro capítulo, o autor entra em detalhes de como delações deixaram de valer como provas em determinado momento e cada uma das alterações legislativas que impediram a investigação.

Os autores do quarto capítulo, Deltan Dallagnol e Roberson Pozzobon, são dois dos promotores do Ministério Público responsáveis pelos processos da Operação Lava Jato. O capítulo começa com uma enxurrada de números. Números assustadores, resultado das investigações. Números perigosos, já que dizer que “investigações implicaram” (p.129) essa e aquela pessoasnão significa que o processo já tenha terminado e as pessoas sido julgadas culpadas. Ainda assim é surpreendente que “quase um terço dos senadores e dos então ministros e quase metade dos governadores” (p.130) tenham sido mencionados nas delações premiadas da Odebrecht.

O principal objetivo do capítulo é fazer uma reflexão a respeito da Lava Jato, já que os autores mostram consciência da sua similaridade com a Operação Mãos Limpas e a possibilidade de que a “operação seja [sic] murchada como sua congênere italiana” (p.130). Esse é um longo capítulo dividido em duas grandes partes: diagnóstico da corrupção e reação à operação. Na primeira, os autores tratam da corrupção na Petrobras e ‘além da Petrobrás’, na segunda, elencam como reações à operação a criação de falsas narrativas; vingança legislativa; e ações do STF.

Apesar de afirmarem não fazer juízo de valor, trechos como “as evidências apontam para uma forma apodrecida de prática política” ou “se forma um círculo vicioso que corrói a democracia e agrilhoa a sociedade à corrupção” (p. 138) ou “como um rato acuado, é natural que o sistema corrupto reaja com toda a sua força” (p.142) evidenciam a escrita apaixonada e o envolvimento dos autores no que veem como a luta contra o maior esquema de corrupção já investigado.

Os autores usam o capítulo para contraporem-se a cada uma do que consideram ser falsas narrativas a respeito da Operação lava Jato: o excesso de prisões para buscar delações, o viés partidário, a divulgação de informações sigilosas. Também descrevem os vários projetos de lei que, se aprovados, teriam atrapalhado a operação e dissertam detalhadamente sobre quais decisões do STF foram favoráveis ou não à Lava Jato.

O quinto e último capítulo é escrito por Sergio Moro, hoje ministro da justiça do governo Bolsonaro, à época juiz da Lava Jato. O autor descreve como se dava a corrupção dentro da Petrobras; expande para os âmbitos nacional e internacional; analisa os custos e consequências da corrupção sistêmica; sugere o que deve ser feito para superar essa corrupção sistêmica; aponta o papel do STF; e refuta críticas feita à Lava Jato. Como é se se esperar pelos temas, os dados e informações deste capítulo são bem parecidos com os do capítulo anterior. Os capítulos são independentes, então, essa repetição pode não ser necessariamente um problema.

Quanto às sugestões sobre como acabar com a corrupção, assim como já citado algumas vezes nos outros capítulos, a principal estratégia é uma justiça que funcione. Crimes de corrupção são difíceis de se conseguir provas e Moro vê a Lava Jato como “um alento e uma oportunidade para mudança da tradição de impunidade” (p.199). A segunda ‘condição de superação’ da corrupção é políticas que reduzam a oportunidade de corrupção. O papel do STF é a parte mais interessante do ponto de vista jurídico. Moro explica detalhadamente algumas das decisões que considera importantes na luta contra a corrupção, em especial o habeas corpus 152752 (do Lula), deduz que a Lava Jato teria influenciado outras decisões do STF e se detém na explicação sobre os problemas do foro privilegiado.

Assim como os procuradores fizeram no capítulo anterior, o ex-juiz usa espaço do seu capítulo para refutar críticas à Operação Lava Jato. Entre as criticas ele menciona que

“Alguns argumentam que a imparcialidade do processo foi afetada porque o juiz do julgamento foi o mesmo que participou das investigações, comprometendo-se dessa forma com as teses de acusação e tornando inviável o julgamento imparcial e crítico das provas. Tal análise, porém, por vezes formulada por estrangeiros, não se aplica especificamente à operação Lava Jato, mas a todo o sistema processual brasileiro. Nele, o juiz que atua na fase de investigação fica prevento para o processo e julgamento da ação penal. Isso ocorre em todos os casos criminais e em todas as instâncias, não se tratando de algo restrito à operação Lava Jato. Pode-se cogitar em alterar o sistema, mas no momento é o que existe” (p.213).

Os vazamentos recentes divulgados pelo Intercept Brasilmostram que tais criticas teriam embasamento. O trecho mostrado aqui, no entanto, não exatamente refuta o que foi dito, e sim justifica as ações tomadas.

Em conclusão, o livro é coeso em assunto e na defesa de operações contra a corrupção com o apoio popular e no ataque enfático a políticas que não punem corrupção. Como são, em sua maioria, autores que são participantes dos eventos (Mãos Limpas e Lava Jato), o ponto de vista é bem apaixonado e defensivo. Como capítulos independentes, as informações são interessantes, mas como livro, pode se tornar repetitivo.

 

Sobre a organizadora

Gnisci, A. (1999) Review of Gigloli PP et al. 1997. Journal of Pragmatics31, pp. 847-850.