Hey, Judes, como estão?

Este texto é uma sequência não planejada do título anterior quando abordei elementos das nossas raízes em cima de canções do norte, nordeste e do sudeste, especialmente por se tratarem de ritmos característicos dessas regiões. Contudo, me pareceu bastante importante que seja abordado esse assunto, tendo em vista a ideia haver ocorrido devido a um post em uma rede social. Nele via-se um grupo de escravizados e uma legenda apresentando o percentual de negros que sabiam ler e escrever no Brasil, de acordo com o Censo de 1872.

Pensando a “consciência” negra

Post com dado do Censo de 1872

O tema em si já renderia ótimos trabalhos. No entanto, a motivação veio de dois comentários que me fizeram pensar sobre a necessidade de ainda voltar os olhos para nossas raízes, nos debruçarmos sobre elas e repensarmos como e para onde nossa árvore social está se lançando.

Ouso dizer que nosso crescimento se torna mais evidentemente doente quanto mais fazemos esse movimento. Inclusive quando se vê os comentários, no post da imagem no Instagram, que falam de “escravos anões” e que questionam o índice afirmando não existir menos de hum humano. Também havia uma afirmação de que “menos de um é zero” e até referências político-partidárias a fim de associar analfabetismo e servidão.

Por fim, abaixo estão os comentários, de mesma autoria, que colocaram as interrogações fundamentais para este escrito:

Comentário 1

Comentário 2

 

 

 

 

Eles demonstram um aspecto pouco debatido quando tratamos da história negra como parte da nossa história, isto é, um negacionismo histórico e indecente motivado por memórias ou verdades distorcidas. Essas se originam em uma narrativa construída que passa muuuuuuuuito longe dos pilares que sustentam nossa formação social como povo. Além disso, tudo se dando durante o Dia Nacional da Consciência Negra me faz pensar que esse dia é bem semelhante a um cometa: breve visibilidade e envolto por mitos e desinformações.

Raízes “comemorativas”

O marco comemorativo a herança, história e memória afro-brasileira é recente, instituído em 10 de novembro de 2011 pela lei federal nº 12.519, apesar de os primeiros movimentos surgirem ainda nos anos 1970 em meio à ditadura e de já haver entrado como feriado no âmbito escolar em 2003, conforme lei federal nº 10.639 de 9 de janeiro. Contudo, não constitui feriado nacional, visto que o Congresso não votou sobre o tema. Muitos estados, por exemplo, não aderiram à lei deixando a cargo das Câmaras de Vereadores a decisão da ocorrência ou não do feriado nos municípios. Sendo mais exato, somente 5 estados têm leis determinando o feriado: Alagoas, Amazonas, Amapá, Mato Grosso e Rio de Janeiro.

Sendo assim, proponho uma pergunta: qual o significado de um marco temático sobre a consciência negra dadas as relações sobre tudo que envolve a parcela africana de nossa identidade histórica?

O dia 20 de novembro foi escolhido em decorrência da morte de Zumbi dos Palmares pelas forças policiais coloniais durante a invasão do quilombo. Essa data foi escolhida em detrimento do dia 13 de maio, uma vez que considera-se que a abolição não trouxe verdadeira liberdade aos ex-cativos. Por outro lado, pensar o assassinato de um ícone da resistência negra pelas mãos do poder público e a consequente manutenção do sistema escravagista pode acabar oferecendo uma ambivalência de significados. Além disso, havia escravos dentro do quilombo de Palmares. Sendo assim, fica evidente que ainda há muito a ser descoberto sobre as dinâmicas afro-brasileiras, o que não exclui a necessidade manifesta de que se traga às luzes a história afro-brasileira e que seja rememorada toda essa herança.

Há de se lembrar para que haja de se conhecer, e há de se conhecer para que haja de se valorizar. Valorizar para que seja reconhecido; reconhecer para que se faça justiça dando o lugar de direito às africanidades na nossa história, na nossa cultura, na nossa memória.

Iniciando o branqueamento memorial

Deve-se recordar, para início de conversa, a fim de que o movimento de branqueamento social iniciado com o nascimento da República outorgada não mais se alastre pela memória coletiva alimentando-se de preconceitos e teorias raciais pseudocientíficas do século XVIII utilizadas para justificar a submissão do negro, do nativo e do asiático – amarelo – pelo branco, considerado superior aos demais. Há de se lembrar para que sejam reconhecidas definitivamente as contribuições impostas ou não do negro africano ao que foi tornando-se Brasil em Estado, povo e nação e não se reproduza mais esse movimento de marginalização do que orbita a África brasileira.

É essa marginalização que reforça o distanciamento entre a favela do asfalto, o erudito e o popular, o requintado e o comum… o que é do negro e o que é do branco como sinônimos de selvageria e civilidade.

Desvendando o branqueamento social

A entrada de imigrantes europeus no início da primeira República carregava muito dessa divisão. O negro era inapto ao trabalho livre, criatura feita para a servidão e, portanto, inadequado ao novo modelo de país que nascia sob o sol do republicanismo e a mão de mais um golpe na história. No entanto, a herança da relação estabelecida com o trabalho era e continua sendo ibérica.

Isso significa que, nutridos pelo catolicismo, não se entregavam às relações comerciais como os protestantes demonstrando certa aversão ao trabalho, uma vez que ele não acrescenta nada à figura, natureza ou essência de Deus. Por consequência, falta em capacidade de organização social e renuncia-se a personalidade pelo bem maior elevando a obediência ao status de virtude suprema. Logo, demonstram uma imensa propensão a mandar e obedecer. Solução para tal propensão é selecionar, de acordo com as demandas, quem deve cumprir a obediência. Fora o nativo, vinha sendo o negro.

Construindo uma memória “branca”

Sendo assim, o melhor a ser feito é apagar o negro e tudo que remeta à sua existência: dos arquivos, da sociedade, da cultura e da memória! Afastai-o para fora dos grandes centros relegando-os às margens, aos morros. O europeu, acostumado ao trabalho, em duas ou três gerações teria diminuído consideravelmente a mestiçagem e dado ao novo país a cor que lhe era merecida: branco. A negritude em suas escalas de cor não seria nada mais que uma incômoda lembrança, um pequeno problema abandonado nos arredores e nas regiões mais distantes da capital e dos centros comerciais. Sonhavam assim com uma ascensão brasileira a um status europeu ignorando suas raízes mestiças, cativas, trabalhadoras, resistentes e resistência assim como seus congêneres americanos. Do sul. Ignorando suas raízes e seus semelhantes pelo sonho de Ícaro de ser uma Europa fora do Velho Mundo.

Há de se lembrar! Todos os dias que nessas veias nacionais correm sangue africano, nativo e europeu e que os frutos dessa terra foram regados com água, suor e sangue dos dois primeiros. Seja por meio da memória da resistência simbolizada por Zumbi, seja pela abolição de um regime cruel e infame. E, acima de qualquer coisa, pela memória viva de todos os povos africanos e nativos sacrificados no altar da civilidade ao deus progresso.

 

REFERÊNCIAS:

CÂMARA dos Deputados. Datas comemorativas e outras datas significativas [recurso eletrônico]. Brasília, Edições Câmara, 2012;

CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil: o longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002;

FULGÊNCIO, R. F. O paradigma racista da política de imigração brasileira e os debates sobre a “Questão Chinesa” nos primeiros anos da República. Brasília. Revista de Informação Legislativa: Senado Federal, n. 202, abr./jun. 2014;

HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. Org.: Pedro Meira Monteiro e Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo, Companhia das Letras, 2016;

https://www.bemparana.com.br/noticia/correcao-consciencia-negra-e-feriado-em-apenas-15-dos-municipios-brasileiros-663#.XdnC_OhKi00;

http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/temas/sao-paulo/consciencia-negra-em-sao-paulo.php;

https://ceert.org.br/noticias/historia-cultura-arte/14292/dia-da-consciencia-negra-conheca-a-historia-completa;