A informação está ao alcance de uma grande parte da população mundial.

As discussões de amigos em bares, antes da pandemia, sobre qualquer assunto, eram resolvidas, caso necessário, usando um celular e uma rede de dados móveis. Contudo, apesar dessa facilidade, o fato de procurarmos algo no Google não nos torna expert em algum assunto.

Ao sairmos do mundo virtual, com suas discussões que, normalmente, não levam a lugar algum, nos deparamos com a necessidade de especialistas em assuntos, os quais normalmente são bem formados e com conhecimento construído de forma técnica e científica.

Mas hoje há uma proliferação de profissionais nas mais diversas áreas do conhecimento. Esses, por sua vez, tendem a usar as redes sociais para atrair um público com o objetivo de vender algum produto, por exemplo. E, muitas vezes, os quais não apresentam nenhuma comprovação científica ou se colocam como uma autoridade no assunto, com a finalidade de demonstrar a “qualidade” de tal mercadoria.

Ao se tratar de ciências médicas, normalmente, quando você ou algum familiar tem algum problema de saúde e nenhuma receita de família funcionou – tal qual aquele chá milagroso de gengibre de autoria da sua avó – a próxima escolha é marcar uma consulta médica.

Apesar de irmos em um profissional que conhecemos ou confiamos, em muitos casos, até chegar ao diagnóstico correto, muitos exames são necessários. Ainda, mesmo que o diagnóstico esteja correto, dependendo da doença, não há muito o que se fazer.

Agora, imagine você, mãe ou pai de uma criança (em torno de 6 anos) com uma doença rara e incurável, e os profissionais que seriam os detentores do conhecimento revelam que não há nada o que se possa fazer, a não ser confortar a criança até seu falecimento em, no máximo, 2 anos. Imagino que, nessa situação, você iria até o fim do mundo para descobrir alguma receita mágica para salvar seu filho deste futuro desolador e inevitável.

Esse pequeno trecho não tão imaginativo ocorreu na vida da família Odone. Lorenzo, filho de um economista e sua mãe, a qual dedicara todo seu tempo aos seus cuidados, é diagnosticado sendo portador de uma doença rara, degenerativa e extremamente agressiva, levando o paciente à morte em pouco tempo. Nesta época, a adrenoleucodistrofia (ALD) era uma doença que não se tinha muitas pesquisas sendo realizadas e nem incentivos financeiros para tal, principalmente devido a sua raridade. Caso essa pequena sinopse trouxe-lhe alguma recordação, ela é representada no filme “O óleo de Lorenzo” (figura 01), lançado ao final do ano de 1992.

 

Figura 01: Filme O óleo de Lorenzo?

 

Eu me lembro de assistir esse filme em minha escola. À época, então com 13 anos, não entendi muito bem a importância dos eventos que se sucederam no decorrer desta obra cinematográfica. Contudo, no decorrer dos anos, assisti a esse filme, no mínimo, mais duas vezes e outra para escrever este texto.

Para quem nunca o assistiu, eu recomendo. Não há muito spoiler agora, pois o próprio nome do filme já demonstra que, ao final, um óleo irá ser apresentado. O importante, além do final, é a jornada dos pais de Lorenzo, Augusto Odone e Michaela Odone. Após o diagnóstico feito, o médico, que, como falei anteriormente, é quem detêm o conhecimento e o respaldo científico. O profissional, após ser questionado pela mãe,responde, baseado na literatura científica da época, que, com certeza, não há nenhuma chance de cura ou tratamento para Lorenzo.

Claro que, para pais desesperados em achar a resposta para cura de seu filho, um argumento de autoridade não é o suficiente. Desse modo, os Odone procuram por especialistas em ALD. Vale lembrar, ainda, que está doença, além de rara, era nova, visto que o filme se passara no início dos anos 80.

Mas, afinal, o que é a adrenoleucodistrofia?

Hoje, apesar da internet, eu posso fazer essa pesquisa on-line, pois cientistas fizeram, anteriormente, descobertas sobre a doença e entenderam a sua problemática, qual gene afetado, como é a evolução, diagnóstico e tratamento. Porém, esse processo é lento.

Como tudo na ciência, desde o primeiro diagnóstico de uma doença até seu tratamento mais efetivo, há um caminho longo e tortuoso a ser percorrido. No caso da ALD, o primeiro caso descrito foi no século XIX e descrições de casos semelhantes ao longo das décadas. O nome conhecido hoje, adrenoleucodistrofia, foi dado apenas em 1970 e observou-se a sua ligação com o cromossomo “X”, o que acarreta uma doença mais frequente em meninos. Esse fato se dá, pois, enquanto meninas apresentam dois “X”s, elas necessitam de duas cópias defeituosas, enquanto meninos, que apresentam apenas um “X”, necessita de uma cópia com a alteração genética para desencadear a doença.

Porém, esses achados não evoluíram muito, inclusive ao longo da história de Lorenzo, à época sabia-se apenas que era uma doença genética e causava um distúrbio metabólico. Após o filme ser lançado, já em 1993, o gene para a ALD foi descoberto no cromossomo “X” e foi identificado como o gene ABCD1.

Ao nascer, paciente com essa mutação no gene é assintomático e, ao longo da vida, desenvolve insuficiência adrenocortical. Essa acarreta uma menor quantidade de hormônios esteroides e leva à pressão arterial baixa, anorexia, cansaço, dentre outros sinais e sintomas.

Em alguns casos ocorre uma desmielinização cerebral. Ou seja, a capa de mielina que enovela os axônios dos neurônios são destruídos, o que resulta em um problema de sinalização e uma menor velocidade na transmissão de sinais ao longo do neurônio. Nesses casos, os primeiros sintomas são com relação ao declínio escolar e problemas comportamentais. Posteriormente, outras alterações neurológicas se manifestam, tais como problemas visuais, auditivos, motores e disfagia (dificuldade na deglutição). Na figura 02 observa-se a evolução da doença ao longo dos anos.

 

Figura 02: Evolução da ALD. Disponível em: Engelen, 2014.

 

Um importante fato que se sabia na época de Lorenzo era que havia um acúmulo de ácidos graxos de cadeia muito longa (AGCML). Inclusive, esse se tornara um biomarcador para estabelecer o diagnóstico da ALD. Apesar desse fato, ainda não se sabe exatamente o motivo pelo qual esse acúmulo causa tantos danos ao paciente. Desse modo, o gene ABCD1 está relacionado com o transporte dos AGCML para dentro de células, quando não ocorre o processo, há um acúmulo desses ácidos graxos nos neurônios adjacentes.

Voltando ao caso dos Odone, Michaela e Augusto sabiam que deveriam impedir o acúmulo de AGCML. Entretanto, devido a falta de pesquisas, nenhum avanço fora feito de forma significativa. Portanto, apesar de nunca terem lido sobre biologia ou química, o casal estudou.

Apesar de analfabetos científicos, a ciência não escolhe e não julga ninguém, ela apenas quer que o método científico seja seguido. Desse modo, indivíduos que apresentam uma postura analítica a todo o processo que se segue, além de seguir as questões éticas, é claro, o conhecimento científico estará aberto a todos.

Além disso, quando alguém não é vacinado pela ciência, e até quem o é, falácias de lógica e retórica podem ser encontradas no caminho. Um exemplo é o famoso argumento de autoridade (o qual citei anteriormente), em que alguém de “alto gabarito” se manifesta com argumentos sem sustentação científica. Esse exemplo que vou citar ocorre no início da pandemia, em que um ganhador do Nobel de Medicina afirmou que o vírus SARS-CoV-2 foi fabricado em laboratório. Outras falácias podem ser encontradas e explicadas no livro do Carl Sagan “O mundo assombrado pelos demônios”.

Voltando ao filme, ao longo processo de diagnóstico inicial e e após as frustações que apareceram ao longo do caminho, principalmente pela falta de pesquisas para essa doença, os Odone resolveram não depender mais das opiniões de especialistas. Pois, apesar do uso de termos menos técnicos pelos profissionais, a doença em questão era pouco conhecida e difícil de compreender. Por esse motivo, há necessidade de voltar à base e estudar química, biologia, bioquímica, genética, fisiologia, dentre outras matérias básicas. Enquanto a doença agravava o caso de Lorenzo, seus pais foram à biblioteca para iniciar este processo de aprendizagem.

Para seguir o método científico, portanto, Augusto tivera que usar seu filho como cobaia. Desse modo, ele conseguira observar, formular, testar e refutar hipóteses, mas com o uso da experimentação. Como os Odone não tiveram uma visão mais científica, ao iniciarem seus estudos, suas observações eram mais didáticas e ingênuas. Mas, veja bem, essa ingenuidade não é uma característica ruim (visto que é muito observado em crianças), pois, ao analisarem a doença de seu filho com olhos menos técnicos e viciados, conseguiram ser mais abertos e flexíveis à condição clínica.

Enquanto Michaela estava na biblioteca, lendo artigos científicos, um chamara sua atenção.  Ela encontrara uma pesquisa feita por poloneses, os quais conseguiram manipular e diminuir os níveis de AGCML em ratos. Nesse caso, como em portadores de ALD um acúmulo desses ácidos graxos eram acumulados, uma substituição na dieta, por outro ácido graxo poderia substituir e minimizar a toxicidade que o AGCML causava.

Por esse motivo eu falo que a construção do conhecimento científico é feito de pequenas peças, até que pesquisadores rearranjem essas, com objetivo de criar uma visão única do mesmo evento, com a finalidade de agregar a seus interesses científicos (fato que pode ser usado para o “mal ou bem”). Agora, esse processo ocorrera devido a uma visão mais inocente e com a mente mais aberta de Michaela.

Ao longo do filme, ocorrera o primeiro simpósio internacional de ALD, dia 10 de novembro de 1984, organizado, principalmente, pelos pais de Lorenzo. Esse evento, por sua vez, levou os maiores especialistas em ALD para discutir formas de terapias e alternativas a serem pesquisadas. A ideia que despertara os Odone foi referente ao ácido oleico, porém sua manipulação deveria ser realizada por uma indústria química e, além disso, era um processo caro de ser feito.

Apesar disso, obtiveram uma amostra desse óleo para ser usado em Lorenzo, pela dieta, e seus níveis de AGCML começaram a diminuir de forma consistente ao longo do tempo. Apesar desses avanços, nada se pode concluir a respeito do óleo, pois, pesquisas maiores e com maior número de voluntários seriam necessárias. Pois, logo após as quedas iniciais, os níveis de AGCML se estabilizaram, mas ainda elevados.

Augusto retorna às suas pesquisas. Como a bioquímica é um campo complexo, muita leitura precisa ser feita. Assim, após mais de 12 meses ao diagnóstico, outro composto entra na jogada, chamado de ácido erúcico, presente nas sementes de colza e mostarda, mas, em pesquisas anteriores, demonstrara, em ratos, problemas cardíacos.

Setembro de 1986 o ácido erúcico fora extraído e, antes de dar essa mistura de óleos para Lorenzo, a irmã de Michaela servira de cobaia, para analisar os efeitos sob seus níveis lipêmicos. Contudo, é evidente que uma voluntária não é suficiente, mas era o que tinham, pois nenhum comitê de ética iria aprovar tal pesquisa. Desse modo, logo Lorenzo iniciara a ingestão de ambos os óleos e seus níveis de AGCML voltaram ao normal em pouco tempo, 32 meses após o diagnóstico inicial.

O caso de Lorenzo era extremamente grave e muita bainha de mielina fora destruída ao longo desse processo. Apesar disso, Lorenzo vivera até os 30 anos de idade e faleceu um dia após seu aniversário (lembrando que a média de sobrevida é de 2 anos após o diagnóstico). Ao final da produção do filme médicos já ofereciam o Óleo de Lorenzo para pacientes com ALD.

Mesmo com a luta para chegar até o óleo e os resultados positivos, muitas pesquisas eram necessárias. Inclusive, alguns estudos demonstraram que o Óleo de Lorenzo é ineficaz para inibir a progressão da doença. Um desses estudos, publicado em 1999, analisou o óleo em 22 pacientes, e concluiu que não havia melhora neurológica e endócrina dos pacientes. Além disso, alguns efeitos colaterais foram encontrados, tais como problemas hepáticas, gastrointestinais e de coagulação.

Pesquisando por  “Lorenzo’s oil” em uma base de dados de artigos científicos nos últimos 5 anos, apenas 11 resultados foram encontrados. Ou seja, as pesquisas referentes ao uso do óleo caíram por terra.

Meu objetivo com esse texto não é falar do óleo em si, mas mostrar o processo de aprendizagem e persistência, seguindo o método científico e, inclusive, rejeitando a hipótese, largando-a de lado. Logo, após a leitura deste texto, me pergunto, quem detém o conhecimento científico? Há um grupo de indivíduos apenas? Ou qualquer um pode desenvolver ciência, caso siga o método científico?

 

 

Referências:

 

Matos FRN, et al. Estudo observacional das relações de poder no filme O Óleo de Lorenzo. Cadernos EBAPE. 2011.

Engelen M, et al. X-Linked Adrenoleukodystrophy: Pathogenesis and treatment. Curr Neurol Neurosci Rep. 2014.

Cohen C. A verdade científica e o mito dogmático. Revista da Associação Médica Brasileira. 2008.