No meu último texto publicado comentei que a COVID-19, assim como foi com a AIDS/HIV nos anos 80, é uma doença nova e que provavelmente teremos que lidar com ela, e suas diversas variações, nos próximos anos. E não pára só na COVID-19, novas questões de saúde pública irão surgir em um futuro próximo, decorrentes principalmente das mudanças climáticas, que irão impactar todo o mundo. E com isso em vista é importante colocar o debate sobre uma Saúde Universal e Global.

No texto de hoje vamos passar pela Inglaterra para falar um pouco da história da universalidade em saúde, entender o contexto das vacinas para a COVID-19 no mundo nesse momento e introduzir o tema da Saúde Global. 

  

A universalidade como um marco civilizatório 

Aos que nunca tiveram contato com o tema, uma Saúde Universal é o que garante a todos os indivíduos o acesso a serviços de saúde, de modo a não ser uma preocupação financeira e sim um direito básico. Esse modelo de sistema é considerado um marco civilizatório do Século XX, que teve seus primeiros passos dados nas revoluções trabalhistas, com as quais teve a expansão dos sistemas de proteção social favorecendo a implementação dos Sistemas de Saúde Universal (1).

Trazendo o exemplo para o presente, é por a Universalidade ser um dos princípios basilares do SUS que é garantido a você, ou qualquer outro cidadão em território brasileiro, que quebrar um braço, ter ao alcance uma gama de recursos essenciais, que vão desde o transporte, insumos usados no hospital, medicamentos, serviços de recuperação e reabilitação, tudo isso de forma gratuita (Lei 8080/90). E quando não se tem a universalidade acontece como nos EUA, onde pra se ter acesso a uma ambulância teria que desembolsar em torno de US $224 (R $1132,00) e US $2.204 (R $11.142), de acordo com The New York Times, isso sem citar outros serviços de saúde necessários.

A história da universalidade em saúde no mundo passou por muitos altos e baixos e atualmente países em desenvolvimento não possuem ampla cobertura em saúde, por exemplo, Argentina, Chile e Índia. Já os países desenvolvidos têm melhor relação com seus sistemas, ex: Portugal, Canadá e Inglaterra. Quando se fala em Brasil e nos EUA são dois pontos fora da curva, enquanto nosso país, não há muito tempo, foi exemplo em saúde pública, graças ao SUS, em terras Norte americanas o oposto ocorre, um local no qual trata saúde como mercadoria. 

Como falo bastante em meu texto “Saúde Universal e Democracia: a melhor dupla”, sistemas autoritários tendem a enfraquecer a saúde pública, com uma visão neoliberal. Foi assim no Brasil, Chile e em tantos outros países latino americanos, durante o período da ditadura militar. Tal tendência manteve-se na Europa, países como Espanha, Grécia e Itália só conseguiram regulamentar os seus sistemas de saúde pública na década de 70. Em especial a Itália, com os líderes fascistas à frente de seu governo, teve enfraquecida sua saúde pública e, mesmo após a Segunda Guerra, só conseguiu implementar a saúde como um direito no ano de 1978 (2). 

Indo para a Inglaterra no ano de 2012, na abertura dos jogos Olímpicos, gigante no ginásio da cerimônia se encontra a sigla NHS (National Health System), o equivalente britânico ao SUS, um dos sistemas Universais de Saúde mais velhos do mundo.

Sua criação data do ano de 1948, sendo conhecido como o modelo ideal de saúde, e um dos maiores orgulhos dos ingleses. “O NHS é a joia da coroa no Estado de Bem-Estar britânico e oferece para todos os cidadãos um sistema de saúde amplo, do qual o Estado é proprietário e garantindo o mais extraordinário exemplo de programa de Estado de Bem-Estar institucional” (3). 

Embora a discussão da criação de um sistema público de saúde inglês venha desde 1909, a concretização do NHS deu-se apenas após o final da Segunda Guerra mundial, em 1942. Nesse momento a discussão sobre os direitos humanos ganha destaque, quando entende-se que a saúde é um direito fundamental, por ela – a saúde – ser um dos condicionantes de vida. Ou seja, o direito à vida está ligada diretamente ao direito à saúde (3).

E aqui apresento a vocês o Padrinho da saúde universal da Inglaterra Aneurin Beva (1897/1960), parlamentar inglês, vindo de família mineradora. Foi ele que trouxe princípios basilares que estão presentes até hoje na saúde pública. São esses:

  • Que a saúde atenda a necessidade de todos;
  • que seja gratuita;
  • e que o acesso seja medido pela necessidade do paciente e não por condições sociais ou financeiras.      

As ideias de Beva não param por aí, pro parlamentar o NHS vinha pra ser algo muito maior, permitindo que as pessoas vivessem sua vida sem se preocupar com gastos financeiros inesperados na saúde. De acordo com ele, “A sociedade se torna mais serena e espiritualmente mais saudável, se souber que seus cidadãos têm no fundo de suas consciências o conhecimento de que não apenas eles próprios, mas todos os seus semelhantes, tenham acesso, quando doente, ao melhor que a habilidade médica pode fornecer.” (4) 

(o NHS vai durar muito tempo, desde que haja gente com fé para lutar por ele; fonte)

Apesar de não possuir nenhuma formação em saúde, Aneurin Beva foi, e seu legado continua sendo, um dos exemplos na defesa da Saúde Pública, ele entendeu que serviços de saúde não podem ser tratados como uma mercadoria. Exemplificadamente: ao precisar de uma sapato você pode escolher qual comprar, aquele que tem uma cor legal, que se encaixa melhor ao seu pé e principalmente ao seu orçamento, agora ao receber um diagnóstico de qualquer doença não existe a probabilidade de trocar a uma que fique mais confortável no seu orçamento, cabe ao Estado fornecer o melhor atendimento possível em um momento de provável fragilidade. 

Beva também entendeu que em governos futuros, com ideias mais conservadoras, os direitos à saúde podem ser postos em risco, por isso a conversa deve ser mantida acima de qualquer aspecto político de direita ou de esquerda. Essa influência permanece até hoje, que mesmo sob um governo conservador o NHS continua sendo defendido e fortalecido por todos os cidadãos. Em Abril de 2020 Boris Johnson disse que deve sua vida ao NHS.

E mesmo assim o sistema de saúde inglês já sofreu vários ataques da iniciativa privada, que hoje tem um papel pequeno na saúde no país, e de profissionais médicos, que entendiam que ter um grande sistema de saúde público ameaçava a sua “autonomia médica”. Também sofre constantes ataques aos conselhos de saúde cuja criação foi celebrada nos anos 70, extinta nos anos 80, para assim voltar nos anos 90 e ter uma maior dissolução por volta de 2010 (5).

(manifestação em 2018 em defesa do NHS, fonte The Telegraph site)

Tudo isso mostra que o NHS, considerado o maior orgulho do país por mais da metade dos adultos ingleses (58%), sendo defendida por todos os âmbitos políticos, servindo como o exemplo de saúde pública para o mundo, não os exime de ataques seja da iniciativa privada ou de profissionais, que entendem saúde como mercadoria.

Embora na teoria existam algumas diferenças, o SUS foi inspirado no NHS, lembro de certa vez ouvi que “ter um sistema de saúde pública na Inglaterra, um país de primeiro mundo é fácil. Agora ter um sistema de saúde pública no Brasil, um país de tamanho continental, onde a desigualdade é gigante, isso sim é difícil.Drauzio Varella fala que “até hoje, nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes ousou tanto quanto o Brasil, o SUS tem uma abrangência maior que o NHS.”

Porém, não é hoje que falarei do futuro do SUS esse texto vai ficar para depois, agora vamos nos voltar para um olhar mais global em um mundo pandêmico há mais de um ano. As vacinas chegaram, as formas de combate ao Coronavírus estão postas à mesa. Sim ainda existem muitas questões, mais… um segundo, vamos para próxima parte do texto.

Existe equidade na vacinação?

Uma pergunta muito comum agora que estamos caminhando para o final do ano de 2021 é “o próximo ano vai ser seguro ter Carnaval?” A resposta é complicada por ser impossível de prever os caminhos da pandemia, usando a OMS como base, eles afirmam que “ninguém está seguro até que todos estejam seguros.”  Talvez já esteja cansado de saber mas vivemos uma pandemia Global, as ações feitas ao seu combate devem ser coordenadas de forma global ou seja de nada adianta por exemplo – o País X está com a população 100% vacinada e seu vizinho país Y com apenas 15% da população completamente imunizada. 

Ao analisar hoje os dados da distribuição de vacinas ao redor do mundo, vemos como isso não ocorre de forma equitativa e em meio aos debates da necessidade de uma terceira dose da vacina, acaba por dificultar o acesso a países mais pobres. Vale a pena uma no site ‘World Our in Data’ no qual mostra o avanço da vacinação no mundo, por exemplo o Canadá encontra-se com 66,28% da sua população completamente vacinada, enquanto a Nigéria tem somente 0,69% da população (dados esses de 26/08/21). 

A OMS já colocou ressalvas sobre a possível aplicação de uma terceira doseA prioridade deve ser salvar vidas. Não estamos no momento de recomendar doses extras. Não temos um abastecimento sem limites.” Ainda recomenda que, para se aplicar a D3, no mínimo 10% da população de todos os países já estejam com a sua imunização completa, tal proposta vem sendo fortemente ignorada.   

Existem inúmeras questões éticas e filosóficas que envolvem a aplicação de novas doses na população já imunizada, sim provavelmente é necessário principalmente para idosos e pessoas imunossuprimidas, porém é justo que em regiões mais ricas tomem 3 doses enquanto em outras partes do planeta não conseguem nenhuma? A vacina é um bem público Global, é um direito básico todos os cidadãos terem acesso a ela, como muito já foi falado diversas vezes a pandemia colocou uma lupa nas desigualdades do mundo e com a vacinação não é diferente. 

No dia 8 de Dezembro de 2020 a Inglaterra tornou-se o primeiro país a aplicar a vacina contra a COVID-19, em paralelo a isso no dia 07 de agosto de 2021 o Haiti até então não tinha recebido nenhuma vacina de COVID-19. Como já comentado no decorrer do texto, saúde é um direito básico, o fato de eu ter ou não condições financeiras não deveria ser um impeditivo de ter acesso a esse bem, porém observando a distribuição de vacinas no mundo isso não é bem o que vem acontecendo. E aqui chegamos na Saúde Global.

Essa tal de Saúde Global

(fonte pogonici/ Shutterstock)

A saúde global foi criada com o objetivo de fornecer o acesso equitativo à saúde para todos e em todos os lugares, agregando a pesquisa, educação e prática, de modo a haver a colaboração de diversas áreas em busca de melhores formas de se antecipar, combater e solucionar as questões em saúde (6).

Dentro dela entende-se que a saúde é um bem público e, principalmente, não excludente, ou seja “ninguém ou nenhuma coletividade seja excluída de seu acesso ou consumo e os benefícios estejam disponíveis a todos.” Também é consenso que não pode haver rivalidade e concorrência “a saúde de um indivíduo não pode se dá a expensa exclusão da outra”(7). 

A saúde global é coletiva, usando da interdisciplinaridade e multi profissionalismos, seja das biológicas, exatas ou humanas, para encontrar as melhores formas de lidar com os problemas de saúde mundialmente. Por exemplo, ao enfrentar uma pandemia devem ser levadas em consideração além das questões biológicas da doença, questões sociais, culturais e da diversidade humana (7), não só a de COVID-19, inclui-se também a de hipertensão, dores lombares, AIDS/HIV e até mesmo epidemias que aparentemente não tem haver com a saúde, como a violência,

A educação também está incluída na saúde global, o conhecimento, a prática, o ensino e a forma de como comunicamos essas questões (7). Usando um exemplo recente a cada medição de temperatura feita no pulso, a cada pessoa que se nega a receber a vacina, a cada indivíduo que acredita que está vacinado pode frequentar lugares sem máscaras, a educação em saúde falhou. Basta observar os EUA, país desenvolvido e que não consegue avançar na vacinação devido aos negacionistas, algo que coloca o mundo inteiro em risco, dado a probabilidade de novas variantes.

Acredito já ter colocado muitos pontos que ressalta a Saúde Global, implementá-la é uma estrada longa em um caminho dificílimo, porém esse é o momento de ser feito. Uma visão que foge um pouco mais da COVID-19, a saúde global tem avanços importantes doenças já foram erradicadas como a varíola, outras controladas como: Sarampo, Meningite, poliomielite. Tudo graças a vacinas, colaboração mundial e principalmente acreditando na ciência.

Muitas questões sobre saúde global pretendo abordar em textos futuros como financiamento, caminhos para equidade, distribuição de medicamentos, políticas públicas implementadas mundialmente, enfim são vários assuntos. Mas o que quero colocar nesse texto é que saúde é um bem coletivo que para funcionar deve ser Global e Universal.   

Fonte da imagem da capa:  JancickaL

REFERÊNCIAS:

  1. PAIM, J. S. Os sistemas universais de saúde e o futuro do Sistema Único de Saúde (SUS), ENSAIO  Saúde debate 43 (spe5) 19 Jun 2020 Dez 2019. link 
  2. LIMA, R. C;  SEVERO, D. O. Construção do Direito à saúde na Itália e no Brasil na perspectiva Bioética cotidiana.  Artigos • Saúde soc. 18 (1) • Mar 2009.  link  
  3. GARCIA, M. S; GONÇALVES, A. M. O modelo de Saúde Pública no Reino Unido. Edição 19 – Junho 2020. link
  4. Artigo do “Independent” por Nick Thomas-Symonds sobre os 70 anos do NHS. link  
  5. AMORIM, M.C; PERILLO, E. O Sistema de Saúde na Inglaterra. 2014. Link 
  6. OLUFEDEWA, I; ADESINA, M; AYORINE, T. Global health in low-income and middle-income countries: a framework for action. The Lancet Global Health. 2021. link  
  7.  FORTES, P. A; RIBEIRO, H. Saúde Global em Tempos de globalização. Saúde soc. 23 (2) • apr-jun 2014. link