Mudanças costumam causar certo rebuliço. Mas quando o assunto é a língua, isso não deveria ser assim tão polêmico. No texto de hoje eu quero conversar sobre as constantes mudanças da língua, o preconceito social que motiva o rebuliço, a importância de respeitarmos o pronome das pessoas trans e como podemos ajudar a normalizar essa prática.

As mudanças linguísticas sempre existiram

Os argumentos contra mudanças (ou variações) linguísticas costumam se basear em regras gramaticais ou simplesmente no apego pelo conhecido. O que é preciso entender é que a gramática não ensinou a gente a falar. Nunca foi ela que ditou a regra, e sim, o contrário. Tanto é que as mudanças que ocorrem na língua são lentamente acatadas pela gramática, simplesmente porque não dá para evitar as mudanças. Elas estão aí e vão acontecer, queiram as pessoas ou não.

Em inglês, algumas pessoas argumentam que se sentem incomodadas de usar ‘they’ (plural neutro) em vez de ‘he’ ou ‘she’ (singular masculino e feminino). Mas a mudança já está acontecendo e toma conta sem mesmo que as pessoas se deem conta

Tweet de alguém reclamando do uso do ‘they’ para o singular e logo em seguida usando ‘they’ para o singular sem perceber

Essas mesmas pessoas nunca reclamaram de usar ‘you’ (você) e ‘you’ (vocês) para segunda pessoa singular e plural. O que me traz ao próprio ‘você’, em português, que originalmente não era equivalente a ‘tu’ (segunda pessoa do singular – a pessoa a qual nos dirigimos quando estamos falando), mas que o uso massivo dele nesse sentido fez com que mesmo as gramáticas mencionem essa função (apesar de ainda não darem o nome de ‘pronome pessoal’). Outro exemplo é o ‘a gente’, que é usado como ‘nós’, muito mais frequentemente do que o ‘nós’, inclusive, mas ainda não ganhou o status de pronome pessoal.

O rebuliço é social

Mas não vemos pessoas raivosas na internet brigando para não usemos ‘você’ ou ‘a gente’. Por quê? Porque a grande questão aqui é de quem está vindo a demanda de mudança. Respeitar o uso do pronome das pessoas trans significa reconhecê-las socialmente. Significa acolher alguém que você conhecia como ‘ele’ agora se identifica como ‘ela’ ou alguém que não se identifica com o gênero masculino ou feminino. O rebuliço ao redor dos pronomes é uma questão social, e não linguística.

Usar o pronome certo é reconhecer que aquela pessoa existe e você a respeita. Isso é mais importante do que pode parecer para pessoas que nunca foram invisibilizadas. Da mesma forma que temos que, ativa e constantemente, lutar contra atitudes machistas que estão enraizadas em nosso cérebro e, consequentemente, permeiam nossas falas e atitudes, precisamos entender e lutar ativamente contra a ideia de que só existem dois gêneros (feminino e masculino) e que eles estão necessariamente atrelados à vagina e ao pênis.

O que podemos fazer

Assim como a sociedade molda a forma como usamos a língua, a língua também pode ajudar a moldar formas de pensar na sociedade (para quem quiser entender isso melhor, sugiro o livro do van Dijk nas referências). As mudanças conscientes que fazemos de deixar de usar certas expressões, deixar de fazer certos tipos de piada, ajudam a construir um futuro um pouco melhor (vide programas de comédia da década de 90 que hoje são inaceitáveis por gerações mais novas).

O uso do pronome ‘they’ para o singular não-binário não foi exatamente um processo fácil ou mesmo a primeira opção. Houve uma tentativa em 2016 de criar outros pronomes para se referir ao singular não binário, como o ‘ze’ (Airton 2018). Paralelamente, o ‘they’, que já tinha certa aceitação para identificar o singular quando não se sabia o gênero de um autor, por exemplo, começou a ser usado especificamente para referenciar pessoas não-binárias. O que faz com que uma variante permaneça e outra desapareça é o uso dela por uma quantidade maior de pessoas, mas também de pessoas que não sejam invisíveis e instituições. O The Washington Post nos Estados Unidos e o The Globe e Mail no Canadá incluíram o ‘they’ para o singular em seus manuais de redação. Essa ‘oficialização’ pelo uso vem com um esforço consciente de como usamos a língua.

Apesar de toda essa minha insistência em ‘esforço’ e ‘luta’, fazer essas mudanças não é assim tão difícil. É um esforço extra, mas não um esforço excessivo (Airton 2018). Então aqui trago duas dicas fáceis para tentarmos implementar no dia a dia:

1. Sempre que você se apresentar para um grupo novo, indique seus pronomes.

“Oi, Eu sou a Debbie Cabral, a guardiã do Portal, uso os pronomes ela/dela”. Mesmo que eu tenha usado os artigos femininos que já indicam a minha identidade de gênero, tornar essa prática comum (“normal”), ajudamos a abrir um espaço para que pessoas trans nos digam como se identificam. Principalmente (reforçando aqui) porque nomes e looks não são determinantes de identidades de gênero.

2. Respeite o pronome que a pessoa escolheu para si e o use.

Começar a usar todEs, por exemplo. Pode demorar um pouco, pela falta de familiaridade. O uso de ‘e’ para identificar o gênero não-binário parece hoje ser o que tem tido predominância e até a estranheza pode ser uma oportunidade de trazer o tópico à tona e dar visibilidade à questão de identidades trans (Lau 2019).

Espero ter trazido uma sementinha de reflexão a respeito da identidade trans e que vocês consigam exercitar se apresentar usando seus pronomes.

Até a próxima, queridas, queridos e querides!

Referências

Airton, L. 2018. The de/politicization of pronouns: implications of the No Big Deal Campaign for gender-expansive educational policy and practice. Gender and Education 30(6), 780-810.

Lau, H. D. 2019. A Linguagem Não-Binária na Língua Portuguesa: Possibilidades e Reflexões Making Herstory. Revista X 14(4), 87-106. Disponível (21/01/2022) aqui