Em meu último texto aqui, explorei um pouco do conceito de liveness, a qualidade fundamental que define eventos ao vivo como tais. Utilizei como ponto de partida a recente discussão acerca de shows musicais em ambientes virtuais, como os que tem ocorrido dentro de videogames online nos últimos anos.
Naquele texto, toquei brevemente na noção de que o potencial de liveness desses eventos virtuais é tamanho que isso pode inclusive afetar seu potencial para promover inclusão social. Desta vez, gostaria começar uma discussão mais a fundo sobre este ponto em específico, tendo como foco um evento virtual que se tornou um divisor de águas na integração entre tecnologia, arte e sociabilidade: o show da cantora Aurora, lançado em dezembro de 2022 no MMORPG Sky: Children of the Light.
Para que entendamos o impacto desse evento em específico, é importante deixar claro algumas características fundamentais de shows musicais in-game. A maioria dos shows in-game comerciais, como os que passaram a atrair milhões de pessoas nos últimos anos em plataformas como Fortnite e Roblox, são baseados em performances pré-gravadas dos artistas. Isso significa que o áudio e participações em vídeo dos artistas são normalmente pré-gravados, assim como eventuais avatares são totalmente pré-programados. Para ter uma noção do que estou me referindo, confira o vídeo abaixo do show de Travis Scott no Fortnite:
No último texto, eu ressaltei esse ponto, e fiz menção ao fato de que, mesmo tendo isso em vista, a maioria dos frequentadores desses shows não deixa de trata-los como eventos ao vivo. Isso, então, nos levou à ideia de que a liveness desses eventos não estaria emergindo das relações artista-público, mas sim das relações entre os membros do público: se, enquanto eu ouço a música, eu posso fazer meu personagem correr, pular e até mesmo dançar com outros jogadores que estão fazendo o mesmo em tempo real, então a nossa interação ganha liveness e se assemelha a interações que ocorrem entre membros do público em um evento tradicional.
Ocorre que, por mais que tenham atraído milhões de pessoas, as plataformas que organizaram os primeiros shows in-game de massa não estavam preparadas para otimizar essas interações público-público a ponto de assemelha-las totalmente às suas contrapartes não-virtuais. Os shows no Fortnite, por exemplo, tradicionalmente permitem apenas até 40 jogadores por servidor. Isso significa que mesmo um show massivo como o do DJ Marshmellow (2019), que atraiu mais de 10 milhões de pessoas, na verdade foi experienciado por dezenas de milhares de servidores, com apenas até 40 pessoas cada.
Esses eventos foram motivo de reações mistas por parte de Jenova Chen, presidente e diretor criativo da ThatGameCompany, uma desenvolvedora independente, responsável pelo MMORPG Sky: Children of the Light.
Ao longo de diversas entrevistas concedidas nos últimos anos, Chen se mostrou simultaneamente inspirado pelo potencial social desses eventos virtuais, e decepcionado pelo fato de que suas aparentes limitações técnicas os impediam de realizar esse potencial em sua totalidade. Em uma dessas entrevistas, o desenvolvedor menciona a ida a um show lotado da cantora Taylor Swift, e reforça o quanto a experiência de estar em meio a uma multidão de milhares de pessoas cantando e se movendo em uníssono foi emocional e socialmente impactante para ele como indivíduo.
Ele argumenta que os shows in-game até aquele momento não tinham conseguido replicar uma sensação semelhante, a despeito de seus números astronômicos de espectadores. Como resposta a isso, a ThatGameCompany lança, em dezembro de 2022, o show virtual da cantora Aurora, com a promessa de suprir exatamente as falhas identificadas em seus antecessores.
A principal inovação provida por esse evento foi uma tecnologia que permitia que até 4000 pessoas interagissem simultaneamente em um mesmo servidor. Ao comprimir e simplificar os dados emitidos pelo avatar de cada jogador, a ThatGameCompany conquistou seu objetivo inicial de criar uma multidão virtual dentro de seu evento, multiplicando por 100 a capacidade dos servidores de Fortnite. Em seus primeiros dias, o show de Aurora foi experienciado por cerca de 1.6 milhões de pessoas. E por mais que elas não tenham sido todas incluídas em um mesmo servidor, é inegável o salto quantitativo obtido pelos desenvolvedores.
Cada um dos ‘fantasminhas’ que você vê é um avatar sendo controlado em tempo real por um jogador. Definitivamente há muito mais de 40.
A questão que fica, então, é até que ponto as inovações tecnológicas promovidas pelos desenvolvedores desse concerto conseguiram ser traduzidas em mais liveness e mais integração social entre os participantes. Essa foi a principal pergunta que guiou minha imersão nesse evento e comunidade, e será o tema do meu próximo texto por aqui.