Este é o último texto da série sobre urbanismo no Brasil que escrevi ao longo de 2021 para comemorar os 20 anos da lei do Estatuto da Cidade, celebrado em 10 de julho de 2021. Nesta série de 4 textos eu descrevo algumas experiências de Planos elaborados para algumas cidades como Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre, os acertos e erros de cada um deles. 

Os outros textos, caso você não tenha lido ou queira relembrar estão parte 1 aqui, parte 2 aqui e parte 3 aqui. 

Ao longo da série eu tentei mostrar que, nos anos do século XX no Brasil, houve várias intenções de propor textos que buscavam o ordenamento urbano e a resolução dos problemas ali presentes nas cidades, mas todos os documentos eram elaborados sob encomenda dos prefeitos ou governantes da época e tinham sempre a intenção de agradar algum setor da sociedade. 

Por isso, os Planos elaborados ignoravam a população que estava à margem da sociedade e mais precisando de ações do Estado e/ou tinham a clara intenção de favorecer os ricos, a elite ou algum setor econômico. Isso quando quando não apareciam ideias positivas cujo plano não era colocado totalmente em prática. 

O fato é que o Brasil chegou à Constituição de 1988 sem que houvesse alguma diretriz urbana estabelecida em nível federal para guiar o processo de desenvolvimento territorial e gestão urbana. 

História da Política Urbana no Brasil 

Durante os anos de ditadura militar no Brasil as discussões que já vinham acontecendo nos anos 60 a 80 foram interditadas pelo período de repressão. Ainda assim aconteceram eventos populares com vários setores da sociedade em que a política urbana vinha sendo discutida com muita luta dos movimentos sociais e de vários setores engajados na questão. 

Houve um projeto de lei editado em 1987, a Emenda Popular de Reforma Urbana, que acabou servindo de base para os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, os que tratam da Política Urbana. A expectativa era que esses artigos em si fossem diretamente aplicáveis e que resolvessem a questão. 

No entanto, os artigos 182 e 183 são bem enxutos, apenas descrevendo que municípios com mais de 20 mil habitantes são obrigados a elaborar Plano Diretor, definindo que a propriedade urbana mantenha sua função social dentro dos limites estabelecidos no Plano Diretor, estabelecendo o usucapião especial urbano e dando algumas outras diretrizes. Se você nunca leu, te convido a dar uma lida nos artigos, que são bem curtinhos, estão disponíveis aqui

Como na Constituição não coube o detalhamento que as diretrizes da Política Urbana precisavam, um projeto de lei partindo do senado, de autoria do senador Pompeu de Souza, já em 1989, colocou em uma lei completa, pronta para ser aplicada .

A lei ficou conhecida como Estatuto da Cidade. Após o falecimento do Senador Pompeu de Souza, em 1991, e 11 anos de tramitação, já com a condução do Senador Inácio Arruda, o Estatuto da Cidade foi aprovado por unanimidade no congresso nacional em 10 de julho de 2001. 

Tá, mas por que esse tal de Estatuto da Cidade é tão importante? Eu te explico.

Primeiro porque ele é resultado de pedidos e reivindicações de movimentos sociais e populares que pensaram a política urbana anos antes e que através de organização social conseguiram colocar em uma lei. 

Depois porque é a primeira vez que temos no Brasil uma lei que dá as diretrizes que o município precisa para se aplicar o planejamento e ordenamento urbanos, e mais ainda,  levando em consideração a participação popular sem esquecer que todas as pessoas têm direito a cidade de forma justa, equilibrada e sustentável. 

Na imagem temos um desenho que representa participação popular em uma consulta. Tem pessoas de todos os tipos, PCD, idosos, adultos e uma criança, alguns com o braço levantado, opinando sim ou não a uma consulta.
Fonte

Planos Diretores mais Eficientes! 

A partir dessa lei, não tem mais essa de aprovar projeto de Plano Diretor que só considera uma parte da cidade (a parte rica) ou que faz planejamento das vias de tráfego considerando apenas transporte individual e todas as coisas que a gente cansou de ver antes de 2001. 

O Plano Diretor da cidade precisa ser sério. Ele é um documento muito importante e que dá a direção que a cidade vai seguir na política urbana. É através do Plano Diretor que ficam estabelecidas as áreas da cidade onde podem funcionar as atividades, é nele que ficam definidos como vai ser a ocupação, quais são as áreas que precisam de intervenção, onde precisa de regularização, enfim é lá que tudo vai estar descrito. 

O Plano Diretor tem que ser elaborado de forma pública e com participação popular, qualquer cidadão tem o direito de participar das audiências públicas para decidir o que vai entrar ou não no Plano Diretor. 

Você leitor sabia que pode opinar sobre o seu bairro? Sabia que é possível decidir em conjunto com outros setores da sociedade se uma área da cidade pode servir para a instalação de  grandes empreendimentos? 

O Plano Diretor é um documento que tem que ser revisto e atualizado a cada 10 anos, sempre de forma pública e com participação popular. 

Na imagem temos um desenho de várias pessoas, homens, mulheres, idosos e crianças brancos e pretos olhando para uma lousa bem grande na frente deles onde está escrito: pavimentação, saúde, habitação, segurança e cultura. Todos estão com a mão no queixo pensativos sobre o que leem na lousa. Fonte

EIA/EIV 

Uma outra ferramenta muito importante estabelecida no Estatuto da Cidade foi a elaboração do EIA e/ou do EIV antes da construção de grandes empreendimentos. O EIA é o Estudo de Impacto Ambiental e o EIV é o Estudo de Impacto de Vizinhança. Basicamente, são elaborados quando se pretende instalar um empreendimento ou fazer uma obra de grande porte e que tenha potencial para mudar muito as características de uma área. 

Imagina que em um bairro residencial e bem tranquilo vai ter a construção de uma escola grande em que vai ter aula o dia todo. Vai mudar a realidade dos vizinhos da escola, certo? Vai ter barulho, vai ter muita gente andando na rua, trânsito. Ou então pensa em uma fábrica que vai precisar de muita água na produção e depois pode descartar um efluente líquido todo poluído no único rio de onde a cidade tira água para consumo. É essencial para essa cidade discutir se essa fábrica pode ou não se implantar, não é? 

Por conta do Estatuto da Cidade, esses empreendimentos não podem ser aprovados para começar a funcionar antes da aprovação dos documentos EIA e EIV. Esse processo vai ser discutido com a sociedade, vão ser avaliados os impactos sociais, econômicos e ambientais, assim como todos os pontos positivos e negativos. Tudo o que for impacto negativo precisa ser eliminado e se não for possível precisa ser diminuído para que os prejuízos sejam os menores possíveis. 

Função Social da Propriedade e fim da Especulação Imobiliária 

Além disso, o Estatuto da Cidade instituiu como obrigatória a função social da propriedade urbana. Essa talvez tenha sido a mais importante conquista para a política urbana que tivemos. A função social da propriedade basicamente descreve que uma propriedade urbana precisa ter uma função. Ela precisa servir para alguma coisa, seja moradia, seja indústria, comércio, lazer ou o que for. 

Qualquer propriedade urbana precisa ter uma função definida. Isso pode parecer estranho, mas evita que pessoas com grandes extensões de terras contribuam para especulação imobiliária. 

Especulação imobiliária ocorre quando os proprietários de imóveis urbanos (pode acontecer com áreas rurais também, ok?) os deixam parados, sem função social alguma, sem ninguém morando e nem nada funcionando no local por 10, 20 às vezes 30 anos, aguardando que aquela área seja valorizada por algum equipamento público implantado e seu imóvel possa ser vendido por um valor maior do que foi comprado. Ah, e tudo isso sem pagar os impostos como IPTU. 

Na imagem é possível ver um desenho que representa a especulação imobiliária. Temos uma concentração grande de prédios bem altos em uma pequena área. Do meio dos prédios sai um pé chutando uma casa que ficava na área ocupada agora por prédios. Fonte

Isso ocorre bastante em grandes cidades, mas no centro de São Paulo é comum existirem imóveis urbanos com dívidas de IPTU às vezes maiores do que o valor do imóvel e que os proprietários só estão aguardando alguma obra na região para poder vender esse imóvel por um valor bem mais alto do que foi pago. 

Isso pode parecer inofensivo, mas essa prática muito comum prejudica toda a sociedade, porque aquele imóvel no centro tá sem uso de nada há anos, sem pagar imposto, mas tem asfalto na rua, iluminação na rede elétrica, sistema de água e esgoto e internet disponíveis. Essa infraestrutura custa caro para que aquele imóvel não seja usado. 

Além disso, pensa que cada vez que um bairro novo precisa ser aberto dá um trabalhão para construir tudo do zero para as pessoas morarem enquanto tem um monte de lugar vazio e que poderia ter gente morando. Esses custos todos são pagos por todo mundo nos impostos, enquanto o proprietário, além de não pagar nada de imposto do imóvel fica só esperando a hora de vender por um valor bem alto. Injusto, né? 

Para isso o Estatuto da Cidade criou o IPTU progressivo no tempo. Essa modalidade de cobrança do IPTU pode ser aplicada nestes casos em que os imóveis não cumprem a função social descrita na Constituição e detalhada no Estatuto da Cidade. 

Motivos para Comemorar 

Para encerrar, não pense que a aprovação do Estatuto da Cidade salvou todo mundo de injustiças e de coisas erradas na política urbana. É só dar uma volta no centro de São Paulo ou outra cidade grande para ver a quantidade de imóvel vazio sem cumprir a lei. Ainda tem especulação imobiliária, ainda tem plano diretor que não é implementado e um monte de problema urbano para resolver. 

Mas meu objetivo com essa série e as razões que eu acho que a gente tem sim o que comemorar nestes 20 anos do Estatuto da Cidade, é que desde a Proclamação da República em 1889 até a  Constituição de 1988 a gente nunca tinha tido nenhuma lei com esse nível de engajamento popular e com o tanto de oportunidade de resolver os problemas urbanos como a gente teve e  tem com o Estatuto da Cidade. É um marco de participação popular que deve ser exaltado. 

Espero ter conseguido plantar em você leitor uma curiosidade para ir atrás de como funcionam essas audiências públicas de discussão popular que acontecem sempre que o Plano Diretor precisa ser atualizado.

E além disso, 20 anos é ainda um período muito pequeno de tempo para que a gente resolva todas as distorções causadas pela ausência de políticas urbanas durante décadas da história do Brasil.

Mas começamos, e com certeza muita coisa já mudou. 

Então: Viva o Estatuto da Cidade! 

 

Até a próxima! 

 

Imagem de Capa: Planta Baixa com desenhos arquitetônicos, dois compassos e uma lapiseira deitados no papel.

 

Referências Bibliográficas

Breve Histórico Estatuto da Cidade. Disponível aqui

10 anos estatuto da cidade. Senado Federal. Disponível aqui

Nunca Fomos Tão Participativos. Ermínia Maricato. Revista Sem Terra, nº 43, Jan/Fev 2008. Disponível aqui

Política Urbana na Constituição Federal de 1988 e além: Implementação da Agenda da Reforma Urbana no Brasil.

Edésio Fernandes. Senado Federal. Disponível aqui

Os Planos Diretores Municipais Pós Estatuto da Cidade: Balanço Crítico e Perpectivas. Organizadores: Orlando Alves dos Santos Junior e Daniel Todtmann Montandon. Observatório das Metrópoles. Letra Capital 2011.