Em 2021 o Estatuto da Cidade (Lei 10257/2001) completa 20 anos e, para comemorar esse marco do urbanismo no Brasil, eu pensei em trazer alguns textos com temas relacionados aos desafios urbanos, histórico do urbanismo no Brasil e como chegamos até aqui. Se você nunca ouvi falar em Estatuto da Cidade, não faz ideia do que seja Planejamento Urbano e por que isso é tão importante, não se preocupe. A gente vai juntinho, passo a passo, ao longo de alguns dos textos desse ano entender tin tin por tin tin tudo o que é importante e saber porque devemos comemorar os 20 anos do Estatuto da Cidade e se temos motivos para isso.

Em linhas gerais o Estatuto da Cidade é uma lei federal que foi promulgada em 2001 e que regulamenta os artigos relacionados a Política Urbana descritos na nossa Constituição Federal de 1988. Essa lei pretende direcionar como os municípios do Brasil precisam se organizar para elaborar suas próprias leis relacionadas ao Planejamento Urbano. Foi uma conquista muito grande das políticas públicas do urbanismo pois o Estatuto da Cidade dá as diretrizes para todos os municípios do Brasil de forma sistematizada em uma lei, mas até chegarmos em 2001 percorremos um longo caminho.

Essa história começa lááá atrás, no início dos anos 1900, quando havia muita mudança no Brasil, que tinha se tornado uma república há não muito tempo e que, com a também recente abolição da escravatura, vivia momentos de muitas mudanças sociais. O ambiente urbano se tornava cada vez mais ocupado e o êxodo rural era crescente. Muitas pessoas que viviam escravizadas até poucos anos antes saíram de seus trabalhos forçados e se mudaram para as cidades para tentar alguma forma de subsistência. 

Acontece que as elites (como sempre) não queriam que os escravizados recém libertos tivessem muitas possibilidades de ascensão social e as ocupações urbanas que estavam disponíveis para essas pessoas que eram libertas, mas sem nenhum apoio do estado ou de qualquer ajuda, eram as piores possíveis. Nessa época era muito comum as pessoas empobrecidas e também as que não tinham muitas posses financeiras se amontoarem em cortiços. Nessas ocupações urbanas, as pessoas coabitam ambientes que em geral são: pequenos, sem muita ventilação e incidência solar, as portas são umas muito próximas às outras e muitas famílias dividem o mesmo banheiro. Enfim, um prato cheio para propagação de doenças pela falta de condições de higiene adequadas. Essa era uma situação muito degradante, mas infelizmente fazia parte da realidade de muita gente de classes mais baixas e  trabalhadores de todos os tipos. Foi nessa época que surgiram as primeiras epidemias de doenças que se tornaram grandes problemas sanitários e causaram até revoltas populares, como a Revolta da Vacina

Esse era o cenário do começo do século passado no Brasil, em especial nas cidades maiores, onde a ocupação urbana foi se iniciando primeiro. O Rio de Janeiro foi a capital do Brasil até 1960, quando a capital foi transferida para o Distrito Federal, e no começo do século XX o Rio de Janeiro queria se modernizar. Aquela cara de capital meio antigona que ainda tinha ares de império e escravocrata não combinava mais com o Rio de Janeiro e com o Brasil que já naquela época tinha a pretensão de ser o país do futuro (hahaha, eu conto ou vocês contam?). 

Foi nessa época que surgiram as primeiras intervenções para melhorar a paisagem urbana, como aberturas de ruas, construções de praças e espaços mais abertos que pudessem propiciar a ventilação e a incidência solar, pensando em deixar os espaços urbanos mais modernos e evitar doenças. Falei um pouco disso no meu texto Urbanismo e Saúde Pública

Os primeiros anos do século XX foram marcados por essas ações que os prefeitos do Rio de Janeiro tomaram para modernizar a cidade, mas foi na gestão do prefeito Antônio Prado Júnior (16 de novembro de 1926 e 24 de outubro de 1930) que podemos dizer que o urbanismo foi inaugurado no Brasil. Havia um movimento de urbanistas que estava fervilhando na Europa, em especial na França. O Urbanismo era considerado uma ciência e uma arte e é claro que um país e cidade que queriam ser modernos tinham que estar por dentro de todas as tendências, não é mesmo? O prefeito Antônio Prado que estava já fazendo obras de aberturas de vias, calçamentos, e obras de saneamento achou que tava fazendo pouco e resolveu chamar o urbanista francês Alfred Agache para elaborar o Plano de Remodelação, Extensão e Embelezamento da Cidade do Rio de Janeiro

Imagem da capa do documento original do Plano Agache. Está descrito como título no centro Cidade do Rio de Janeiro em letras maiores e mais abaixo com letras menores está escrito Remodelação, Extensão e Embelezamento. Mais abaixo é possível ver o brazão timbrado no papel que está com aspecto de papel bem envelhecido.

A intenção era fazer com que a capital do país crescesse de forma ordenada com ações planejadas, e de forma bonita, porque não? 

O projeto desenvolvido ficou conhecido como Plano Agache e inaugurou o Urbanismo no Brasil. Publicado em 1930, o Plano Agache trouxe modernidade para o espaço urbano com soluções que nunca haviam sido adotadas no Brasil, como planejamento de transporte de massas e abastecimento de águas públicas. A cidade grande começava a ter problemas que antes não existiam por conta do adensamento populacional muito acelerado, dados mostram que a população do Rio de Janeiro passa de 1,1 milhão de habitantes em 1920 para 2,3 milhões de habitantes em 1930.

Era a primeira vez que se tinha uma cidade de milhões de habitantes no Brasil e os desafios para o planejamento eram enormes e também inéditos. 

O Agache foi um arquiteto que viveu entre 1875 e 1959 e que foi fundador da Sociedade Francesa de Urbanistas. Alguns atribuem a ele a criação do termo urbanismo e como sua formação era da escola francesa influenciado pelas tendências de arte da época. O Plano Agache também tinha muita influência disso. Ele fez uma analogia muito interessante em que a cidade é representada por um corpo humano, com 3 sistemas: circulatório, que são as vias de trânsito, digestivo, que é toda a rede de esgoto e o respiratório, representado pelas áreas livres e espaços abertos.  

É importante ressaltar que o Agache, responsável pelo plano, e toda a equipe que o auxiliou eram estrangeiros. Eles tinham um olhar um pouco idealizado da cidade com todas as suas belezas, e essa tônica incentivou que as belezas naturais fossem preservadas e salientadas para que pudessem encantar os turistas e visitantes. 

Como a gente já podia prever se tratando de Brasil, o Plano Agache não era toda essa maravilha porque o contexto da época já era de muita desigualdade social e isso tudo foi transferido para o Plano. Como o Rio de Janeiro era a Capital do Brasil, o prefeito do Rio era uma indicação do Presidente da República, como uma espécie de cargo de confiança. O presidente na época, Washington Luiz, indicou o Antônio Prado porque sabia que os interesses do governo federal estariam contemplados também na prefeitura do Rio de Janeiro. Nessa época vigorava a Política do Café com Leite em que os presidentes no Brasil se revezavam entre um paulista e um mineiro. Ter sempre dois estados grandes produtores de café, que era o motor da nossa economia, garantia que os interesses desses produtores de café fossem considerados. Esse contexto histórico da época foi impresso também no Plano Agache. Para que os interesses da burguesia cafeeira fossem atendidos, a cidade foi dividida em duas zonas, a zona Político-administrativa onde estavam localizados os prédios oficiais da capital e a zona Econômica (porto e mercado comercial e industrial) pois havia uma intenção de industrialização. 

Todo esse planejamento urbano previsto privilegiou muito mais a burguesia e elite do que as camadas populares. Algumas zonas urbanas foram protegidas de usos não previstos para que a ocupação não fosse realizada por grupos socioeconômicos difusos. A verdade é que os problemas urbanos que atingiam já naquela época as camadas mais populares se aprofundaram pois o Plano Agache acabou negligenciando problemas de moradia, transporte e demais demandas, para tratar do embelezamento do Rio de Janeiro para agradar a burguesia e os visitantes. É importante ressaltar que, por conta da transição entre os prefeitos do Rio de Janeiro e também por ser muito custoso, o Plano Agache nunca foi totalmente posto em prática, apesar de toda sua relevância como documento primordial que inaugurou uma tendência de urbanismo e planejamento urbano no Brasil. 

As leis de ordenamento e planejamento urbano eram ainda inexistentes no Brasil e o Plano Agache foi uma espécie de estopim para que outros municípios começassem a realizar seus projetos de planejamento urbano, alguns deles desenhados também pelo Agache para os  municípios de Porto Alegre, Goiânia, Curitiba, Campos, Cabo Frio, Araruama, Atafona, S. João da Barra, Petrópolis, Vitória, São Paulo e Araxá. Apesar de todas as ressalvas, o Plano Agache foi sim um marco importante. 

O caminho que percorremos desde o Plano Agache em 1930 até 2001 com o Estatuto da Cidade nós vamos ir destrinchando nos próximos textos, mas vou deixar um spoiler de leve. Apesar de todas as distorções que temos, causadas pela nossa imensa desigualdade social, a legislação de ordenamento urbano foi avançando para que problemas urbanos pudessem ser tratados de forma menos desigual e com participação popular nas decisões, mas isso é para os próximos textos. 

Até a próxima.

Imagem de Capa: Planta Baixa com desenhos arquitetônicos, dois compassos e uma lapiseira deitados no papel.

Referências Bibliográficas 

de Almeida, D.V. Plano Agache: A cidade do Rio de Janeiro como palco do 1º plano diretor do país e a consolidação do urbanismo no Brasil. Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo. Disponível aqui

Planos Urbanos do Rio de Janeiro. Plano Agache. Centro de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro. Disponível aqui 

Acervo Jornal O Globo. No fim dos anos 20, Plano Agache pretendia organizar o crescimento do Rio. 17 de Outubro de 2013. Disponível aqui

Estatuto da Cidade. Lei 10257/ 2001. Disponível aqui