A ciência mais antiga, a astronomia, hoje possui uma capacidade ampla de estudar o céu. Pensando apenas no desenvolvimento deste conhecimento do século XV até hoje, houve uma mudança que foi do modelo geocêntrico até a compreensão de um universo observável com 93 bilhões de anos-luz de diâmetro.
Nessa imensa escuridão circundante o nosso olhar se depara com inúmeros pontinhos. Das estrelas fixas aos errantes (que hoje entendemos ser os planetas), essas que formavam o antigo “firmamento” foram estudadas com afinco – hoje sabemos como elas se formam e evoluem, até a sua morte.
As diferentes formas de estudar as estrelas nos permitem descobrir muitas informações sobre elas – temperatura, raio, massa, luminosidade, composição química, rotação, formato e idade –, mas elas não se restringem a isso.

O desenvolvimento do conhecimento

À medida que o conhecimento científico cresce, os instrumentos (ferramental físico) e modelos (ferramental teórico) que o formam seguem o mesmo caminho, numa dependência mútua. Cada área da ciência acaba se especializando em aspectos cada vez mais específicos e aprofundados do real.
É compreensível que cada meio utilizado – instrumento ou modelo – produza informações guiadas por suas determinadas variáveis. Em suma, eles constituem um campo simbólico que representa certas características da realidade que são, a priori, incomunicáveis devido ao seu isolamento teórico.
Vemos surgir, assim, uma problemática; seria possível existir diálogo entre as informações provenientes de cada “meio” se elas necessitam de um “distanciamento do mundo” para que possam ser devidamente analisadas? Antes de tentar responder essa questão, vamos observemos alguns exemplos.

A lente pela qual enxergamos

A fim de compreender quão limitada pode ser a nossa visão do real, o olho é um ótimo ponto de partida. Ele se especializou com a evolução, se tornando sensível, dentro de um amplo espectro possível, a uma “forma de luz” específica.

Espectro eletromagnético completo [1]

Fora dessa pequena “janela” tudo nos é invisível, na melhor utilização do termo. Mas, algo que é invisível aos nossos olhos não inexiste, necessariamente. E, sem desespero! Basta pensar no ar que você está respirando agora e você vai se acalmar.
Observe abaixo, por exemplo, a imagem dessa nebulosa planetária bem conhecida, a Nebulosa do Anel, obtida em duas frequências distintas do espectro eletromagnético:

Infrared/visible light comparison view of the Helix Nebula [2]

A visão infravermelha do VISTA revela estruturas frias que são “obscurecidas” na imagem do espectro visível. Essa nova “janela” – no infravermelho –, além de nos permitir enxergar uma nova característica dessa nebulosa, dá informações antes desconhecidas sobre esse objeto.
Uma nebulosa, entre tantos outros exemplos de corpos celestes, não radia apenas na faixa de luz que o nosso olho consegue ver. Para tanto, vale lembrar a primeira vez em que foi possível capturar a assinatura eletromagnética de um evento de ondas gravitacionais, em 17 de agosto de 2017 [3].
Com eventos desse tipo surge a astrofísica multimensageira [4], ampliando a nossa visão da óptica para as ondas gravitacionais, até aos neutrinos.

O diálogo do incomunicável

Somente através da tradução é que se chega a algum conhecimento. – FLUSSER

De todas essas informações que obtemos surge uma questão, não em relação ao fóton, a gravidade ou ao neutrino, mais aos diálogos entre os modelos que os explicam de forma isolada; é possível existir uma comunicação, e em última instância a elaboração de conhecimento, partindo de modelos distintos?
O filósofo naturalizado brasileiro, Vilém Flusser (1920-1991), pode nos ajudar a responder isso. Em sua obra ele desenvolve uma teoria da comunicação ampla, onde a linguagem – que utilizo como analogia – possui um papel central para definição das possibilidades de apreensão e expressão daquilo que experienciamos.
Em sua obra Flusser “chega ao ponto de igualar a realidade à língua, ou melhor, as diversas realidades às diversas línguas. Não porque a realidade esteja “dentro” da língua, mas porque aparece exclusivamente em forma de língua.” Como diz Debora Pazetto Ferreira, para ele “os seres humanos enxergam e tocam as coisas, quando elas passam a adquirir significado, pois ver e tocar já são modos de gerar significado – são nossos modos de apreender as coisas. […] Toda percepção sensível acontece em um âmbito de significados, que é língua ou língua nascente.” [5]
As diferentes línguas, assim, precisam de algo para criar conhecimento; a tradução. Bento Prado Jr resenha para a Folha de S. Paulo que “Flusser considerava a tradução como “o problema central da filosofia”: Não apenas, como muitos filósofos, como um problema entre outros, mas como uma nova versão da questão kantiana sobre os limites da Razão, como o problema “crítico” por excelência.” [6]

A tradução enquanto diálogo

A compreensão dessas “informações isoladas”, para que sejam compreendidas em um contexto amplo, devem partir de um referencial em comum. Somando explicações, como em um grande Lego dialético que busca encaixes – referências – comuns àquelas já conhecidas, elas passam a fazer parte de um corpo de conhecimento mais confiável.
Para que um modelo negue a validade do outro é necessário que ele explique melhor ou de forma mais resumida (Navalha de Occam) as propriedades abarcadas pelo seu oponente. E, acima de tudo, para ser aceito como científico, de ser falseável.
Cada modelo constitui uma espécie de dialeto – para brincar com o termo dialética – capaz de comunicar uma determinada representação. Cabem a esses discursos, assim, comunicar sendo meio de comunicação que, dentro da sua limitação, ilumina um espaço de articulação em comum aos demais.

A ciência afirmadora da vida

Se o conhecimento pode criar problemas, não é através da ignorância que podemos solucioná-los. – ASIMOV

O objetivo por trás de cada enunciação proporcionada pelo resultado de cada estudo, apesar da ausência de uma Verdade objetiva, pode ser medido de forma ética de seus fins práticos. E, nesse sentido, uma enunciação ilusória que não afirme a vida – na minha leitura – só pode ter um fim; a morte.
Hoje em dia vemos surgir muitos discursos, alguns deles patéticos como o terraplanismo – que pode matar, aviso com antecedência, caso a pessoa o leve às últimas consequências [7] – mas outros criminosos, como os movimento antivacina.
A ciência e a filosofia, por fim, não possuem uma resposta verdadeira, com “v” maiúsculo, mas ainda assim constituem o melhor, mais completo e complexo meio de interpretação, em seu diálogo com a realidade. Elas possuem uma capacidade de afirmar – ou exterminar – a vida, como a história vem nos ensinando.
Que possamos dar, por fim, o devido valor e atenção para essas ferramentas tão poderosas.

 

Referências

[1] Wikipédia – Espectro eletromagnético completo, através do link.
[2] ESO – Infrared/visible light comparison view of the Helix Nebula, através do link.
[3] Physical Review Letters – Observation of Gravitational Waves from a Binary Neutron Star Inspiral, através do link.
[4] Pesquisa Fapesp – Uma nova era para a astrofísica, através do link.
[5] Debora Pazetto Ferreira – Vilém Flusser, um filósofo da linguagem brasileiro, através do link.
[6] Cláudia Santana Martins – Vilém Flusser: a tradução como superação de fronteiras, através do link.
[7] Veja – Terraplanista morre em queda de foguete caseiro, através do link.