SPOILER ALERT: Sim, o desmatamento é cultural. Mas culturas mudam, pois não são totalidades estáticas e homogêneas. Modos de vida podem ser mantidos e incentivados, mas também desconstruídos, mudados e reconstruídos.

Choques de culturas

Conversando com gringos, você já ouviu que brasileiro adora um cafezinho? Já ouviu reclamarem do nosso “jeitinho” de pagar um cafezinho pro policial ou pro flanelinha? Ou que só falamos no diminutivo? E aquele seu colega de trabalho carioca te irrita quando marca reuniões importantíssimas às 8h, mas chega às 9h sem nem se desculpar – ou culpa o previsível trânsito de todo dia? Aquele amigo paulista te deixa louca toda vez que fala “meu”?

Você já se surpreendeu quando sua bisavó, como a minha saudosa bisa, te contou que teve que aprender a ler sozinha porque na época dela só os homens seguiam na escola? Ou quando te contaram que seus bisavós negros foram escravizados? E se te contassem que sua bisavó indígena foi “pega no laço pelo bivô branco”?

Reparou como contrastei práticas consideradas típicas dos brasileiros frente a estrangeiros? E de cariocas e paulistas frente a quem não é carioca nem paulista? E notou que depois contrastei práticas do passado (nada distantes) com a surpresa que expressamos no presente ao ouvir histórias de nossos antepassados?

Como o antropólogo Roy Wagner (1938-2018) enfatizou, tradições como essas só são percebidas como específicas (não mais pensadas como universais) no encontro entre “culturas”. É esse choque que “inventa as culturas”, permitindo o estranhamento do familiar (“por que vivemos assim?”) e a familiarização do que era estranho (“como o Outro vive?”). É a tal da alteridade.

Culturas são feitas pela ação humana em sociedade

Portanto, é nesse choque que tomamos ciência das diferentes maneiras compartilhadas de agir, sentir e pensar. Para um dos fundadores da sociologia, Émile Durkheim (1858-1917), essas maneiras (que chama de “fatos sociais”) deveriam ser analisadas pelas Ciências Sociais. Por isso, em texto para o Deviante, Raquel Oscar e Thiago Brandão chamam a atenção para o fato de que os brasileiros – assim como qualquer sociedade ou grupo – já estão sendo estudados pelos cientistas sociais (e pelas Humanas em geral).

 

Meme “o brasileiro precisa ser estudado”

 

Como muitos teóricos mostraram, as maneiras de agir, pensar e sentir são construídas histórica e socialmente. Daí o título do livro que se tornou referência em Ciências Sociais: “A Construção Social da Realidade”, publicado pelos sociólogos Peter Berger e Thomas Luckman em 1966. Como argumentaram, definições da realidade tanto podem legitimar tradições já existentes, contribuindo para sua contínua transmissão às novas gerações, quanto provocar sua modificação, de modo a encontrarem maior legitimidade – isto é, serem explicáveis (compreensíveis) e justificáveis (moralmente aceitas). Por isso essas definições estão em constante disputa – inclusive aqui, escrevendo e lendo no Deviante. Afinal, elas têm um “poder autorrealizador” de produção da realidade, como Berger e Luckman concluem.

Os efeitos dessa disputa de definições da realidade, por sua vez, dependem do jogo de forças existente em cada sociedade em determinado momento, ou seja, da força relativa de cada jogador em disputa, como o sociólogo Norbert Elias (1897-1990) argumentou. Isto é, a força de um time de futebol depende da força de seus adversários, é relacional. E, como sabemos, o placar pode mudar nos minutos finais do segundo tempo (!)

Logo, culturas NÃO são totalidades estáticas e homogêneas. Modos de vida podem ser mantidos e incentivados pela forma de legitimação predominante, mas também podem ser desconstruídos, mudados e reconstruídos quando outras legitimações ganham espaço.

Não à toa denunciamos a “cultura do estupro” no sentido de prática histórica legitimada na nossa sociedade com comentários do tipo “ela estava com uma saia curta” ou “ela deveria saber que não se anda sozinha naquela rua” – sendo que a maioria dos estupros ocorrem DENTRO DE CASA! [1]. É importante lembrar ainda que a prática de estupro, como qualquer outra, é reproduzida de forma desigual. Práticas sociais como essa (e o próprio desmatamento) são atravessadas por marcadores de gênero, raça (no sentido de racismo e não de raça biológica), idade, região etc.

Em termos de raça, por exemplo, a tradição colonialista tornou mulheres negras e indígenas mais vulneráveis a serem violentadas e “pegas no laço”, por serem entendidas como não humanas ou menos humanas do que mulheres brancas (“essa é pra casar, aquela não…”, argh). Nessa concepção, estuprar uma branca é retratado como violência, enquanto estuprar “Outras” mulheres não é colocado em xeque [2].

Eis que, em pleno 2019, frente a dados governamentais [3] que enterraram qualquer justificativa que negue o aumento das taxas de desmatamento ilegal ou que responsabilize “ONGs ambientalistas”, o presidente Jair Bolsonaro afirmou: por serem culturais, as queimadas e o desmatamento nunca vão acabar. Se lutamos para acabar com a cultura do estupro e a desigualdade que a atravessa, não podemos acabar ou ao menos modificar essa tal “cultura do desmatamento”?

Entender para mudar

Se culturas não pudessem ser modificadas, não só teriam me proibido de estudar por eu ser mulher, como esse próprio horizonte de possibilidade não seria apresentado a mim. A minha concepção da realidade, bem como as justificativas que eu daria a ela, seriam outras. Digo mais: se culturas não mudassem, a vida em sociedade seria impossível (fica a dica prum episódio do Contrafactual, risos).

Diante do fato de que o ato de desmatar e fazer queimadas é cultural, precisamos de mais pesquisa científica para entender quais desmatamentos são problemáticos e quais as suas causas. Só assim poderemos atuar nas raízes da questão.

Mesmo com o atual desmonte de políticas de meio ambiente (ouça o maravilhoso SciCast “Preservação Ambiental” sobre isso!) e do ataque às universidades não mercantilizadas (que o Chutando a Escada explicou bem), já sabemos cientificamente que indígenas e pequenos agricultores não são os responsáveis pela intensificação das queimadas – pelo contrário, são bastante prejudicados pelo desmatamento em larga escala. E esse será o tema do próximo texto.

Por fim, como já dizia o poeta:

 

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.

Bertolt Brecht (1898-1956)

 

Fica a dica de indireta pro colega carioca que chega atrasado. Por sinal, sou carioca, porém pontual ;)

 

Notas

[1] Segundo levantamento da revista Piauí acerca dos dados de 2018 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública: “Dos estupros contra mulheres com 20 anos ou mais5 a cada 10 ocorreram na residência da vítima. Na faixa etária de 0 a 19 anos, de cada 10 estupros, 6 ocorreram em casa.”.

[2] Penso no resgate histórico de Angela Davis ao mostrar que nos Estados Unidos o estupro contra brancas era (ou ainda é) não só criminalizado, mas atribuído sistematicamente aos homens negros (sem provas, mas com convicção), que estariam supostamente infringindo o que seria “propriedade” dos homens brancos. Por outro lado, não eram criminalizados nem mesmo questionados publicamente os estupros cotidianos de mulheres negras pelos homens brancos.

[3] Me refiro aos dados do Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite) divulgados dia 18 de novembro para o período de agosto de 2018 a julho de 2019. O Prodes é realizado pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), subordinado ao MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações).

 

Referências pra saber mais 😉

BERGER, Peter; LUCKMAN, Thomas [1966]. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1985.

BRECHT, Bertolt. Poemas: 1913-1956. Paulo César de Souza (Trad.). São Paulo: Ed. 34, 2012.

DAVIS, Angela [1981]. Mulheres, Raça e Classe. Djamila Ribeiro (Trad,). São Paulo: Boitempo, 2016.

DURKHEIM, Émile [1893]. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 1980.

WAGNER, Roy [1975]. The Invention of Culture. Chicago: The University of Chicago Press, 1981.