Deficiências da imunidade são doenças que podem ser divididas em dois tipos, as adquiridas e as congênitas. Com relação à primeira, um exemplo fácil de compreender é a AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). Por outro lado, temos uma ampla variedade de doenças congênitas que pode afetar o sistema imunológico de forma direta ou indiretamente.

Na época em que eu fazia faculdade, minha professora de imunologia contou a seguinte história: “enquanto eu fazia estágio em um hospital, uma mulher deu à luz ao terceiro filho, que já nasceu morto, assim como os outros dois anteriores. Ela já tinha duas meninas, mas nenhum menino. Contudo, ao ficar grávida novamente, os médicos tentaram algo diferente. Assim, após o nascimento do quarto menino, a criança foi levada até um berço climatizado e estéril. Dessa forma a criança ficou protegida de qualquer microrganismo e sobreviveu. Contudo, após algumas semanas o bebê foi encontrado sem vida. Depois, ao contar o que aconteceu para a mãe, ela com lágrimas aos olhos comentou: ainda bem que eu consegui dar um último beijo nele.”

Bom, os médicos descobriram que esses quatro meninos desenvolveram uma imunodeficiência congênita muito grave, conhecida como Imunodeficiência Combinada Grave ligado ao X (no inglês, X-linked severe combined immunodeficiency, SCID-X). O que não foi dito para a mãe do recém-nascido e pela ignorância dela com relação à condição do filho fez com que abrisse o berço estéril e o beijasse, fazendo com que a criança se contaminasse com as bactérias do beijo da mãe.

Fora essa história, um filme baseado em um caso real, lançado em 1976, em que uma criança chamada de “O menino da bolha de plástico” (não o “Jimmy bolha” de 2001) relata a vida de David Phillip Vetter, um menino que nasceu no Texas e sofria de SCID-X. Assim, para que ele sobrevivesse, os cientistas criaram um ambiente estéril para seu desenvolvimento e passou a ser conhecido como “menino bolha”. Permaneceu no hospital até o ano de 1981 e foi transferido para a casa de seus pais, os quais cuidaram dele até seu falecimento em 22 de fevereiro de 1984.

 

Fotos de David Vetter em sua bolha

Essa condição era passível de cura por meio de um transplante de medula óssea. Porém, não havia ninguém compatível, mesmo com a filha mais velha do casal, que não tinha uma compatibilidade com o garoto para se submeter ao procedimento.

Enquanto no filme, o menino acaba saindo da bolha (interpretado por John Travolta) por vontade própria para seguir sua paixão da infância. Ele a vê penteando um cavalo, vai até ela, a toca, se beijam e andam de cavalo, enquanto a câmera sobe entre as árvores e os créditos finais começam a descer. Nesse caso, sequer houve transplante e provavelmente o rapaz, então após andar de cavalo, provavelmente começou a sentir febre, vômitos e diarreia – o que não mostra, devido aos créditos.

Na história real, os pais e a equipe médica, tentaram utilizar a medula óssea da irmã mais velha – como única solução para o caso -, mesmo não sendo compatível. Assim foi feito. A operação foi realizada em 1984 e durante alguns meses tudo ocorreu bem. Entretanto, logo alguns sinais e sintomas de infecção começaram a surgir. David ficou doente. Apresentou diarreia, febre e vômitos sanguinolentos.

Para começar o tratamento desses sintomas e devido a gravidade da infecção, o menino teve que ser retirado de sua bolha. Contudo, como o sistema imunológico não estava totalmente recuperado do transplante de medula, seu corpo não respondeu ao tratamento, logo entrou em coma e faleceu. Assim, esse momento foi a única vez em que sua mãe tocou em seu rosto.

Infelizmente, a medula óssea de sua irmã apresentava traços de um vírus chamado de Epstein-Barr, o qual não foi detectado antes do transplante. Mas, como seu sistema imunológico estava debilitado, o vírus começou a se multiplicar e David faleceu devido a um linfoma de Burkitt.

Mesmo que a cura não tenha chegado até David e que o final não tenha sido igual ao do filme, com o conhecimento adquirido, foi possível ajudar outras pessoas. Em sua lápide consta a seguinte frase: “Ele nunca tocou o mundo. Mas o mundo foi tocado por ele”.

Mas, enfim, o que é SCID?

Basicamente, há uma ausência completa de um tipo de leucócito, o linfócito T. Dessa forma, sem essa célula, o sistema como um todo se torna inutilizável, pois as outras células de defesa (macrófagos, neutrófilos, linfócitos B) precisam do linfócito T (um subtipo chamado de T helper) para que realizem suas funções da melhor forma possível. Então, além da falta de linfócitos T, há um mal funcionamento dos linfócitos B (células que produzem anticorpos).

Contudo, há diversas formas do desenvolvimento da SCID em diversos genes. Outro exemplo é que, além de não ter linfócitos T, o individuo não apresenta a célula NK (Natural Killer, que também é um tipo de linfócito), que é de extrema importância ao combate de células tumorais e células infectadas por vírus.

Desse modo, dependendo do gene afetado, um tipo de SCID pode ser caracterizado, e para realizar o “conserto”, um transplante de medula óssea é necessário.

Porém, algumas pesquisas utilizam a gene terapia para realizar o tratamento, assim como já comentei anteriormente no texto “podemos extinguir doenças hereditárias?”, também podemos utilizar essa técnica para tratar a SCID.

Um exemplo é de um artigo publicado em 2008 em que 10 pacientes com SCID-X e sem doador de medula compatível foram submetidos a um tratamento gênico. Outro artigo, publicado em 2019 se utilizou da mesma técnica para curar a SCID em pacientes sem doadores. Nesse caso foram submetidas ao tratamento oito crianças (entre 3 até 11 meses).

Em ambos os artigos, o tratamento foi considerado um sucesso. Contudo, no primeiro caso, 4 pacientes desenvolveram um linfoma proliferativo, os quais foram eliminados em 3 deles com a quimioterapia. Já no segundo artigo, os 8 pacientes apresentaram uma melhora nos níveis de células de defesa, mesmo que um dos pacientes tenha tido que receber um “boost” da medicação de geneterapia.

Uma das diferenças dos dois tratamentos foi que o segundo utilizou também um composto antineoplásico chamado de bussulfano, o qual ajudou a diminuir os efeitos tóxicos do tratamento inicial.

Infelizmente, esse tipo de tratamento está crescendo apenas no século XXI, o que poderia evitar o falecimento de milhares de crianças, inclusive do bebê no caso da minha professora e de David Vetter.

 

Para mais informações, seguem as referências:

Le Deist, F., et al. Combined T and B cell immunodeficiencies. Primary Immunodeficiency Diseases. 2008.

Hacein-Bey-Abina, S., et al. Insertional Oncogenesis in 4 patients after retrovirus-mediated gene therapy of SCID-X1. The Journal of Clinical Investigation. 2008.

Mamcarz, E., et al. Lentiviral gene therapy combined with low-dose busulfan in infants with SCID-X1. The New England Journal of Medicine. 2019.