Vou iniciar o texto com duas perguntas para você que se identifica como homem: nesses tempos de quarentena/pandemia, o quanto você pensou no significado da masculinidade? Independente de sua resposta, como os exemplos masculinos que temos influênciam, seja positiva ou negativamente, os tempos difíceis que estamos vivendo? 

As formas de masculinidades é um tema que pode ser debatido em inúmeros contextos, seja em filmes, na educação sexual, nas formas de estrutura familiares, entre outros. A pouco mais de um ano escrevi um dos textos que mais gosto aqui no Portal Deviante sobre Masculinidade e saúde comentando como o entendimento de ser homem influencia prejudicialmente no bem-estar. No texto de hoje vou trazer esse debate no contexto da COVID-19, partindo de algumas manchetes que surgiram durante esse período. 

Uma construção patriarcal em guerra contra o Corona

Dia 29 de Março de 2020, o Presidente Bolsonaro fala “temos que enfrentar o vírus como homem e não como moleque”. Frases como essa são comuns na criação de qualquer menino, por vezes têm um caráter inocente, como “homem não chora”, ou ameaçador, “vamos resolver isso como homens”. 

A ideia de Masculinidade que temos atualmente é uma construção social. Dificilmente paramos para pensar o motivo de ser “normal” homens brigarem de forma violenta para resolver determinado assunto ou ser comum um homem resolver qualquer tarefa manual (ex: trocar uma lâmpada, pintar uma parede).  Se Masculinidade é um construto social, uma definição que englobe todas suas possíveis formas não é plausível. A construção que eu tenho  é diferente de um homem trans, de um afrodescendente e assim por diante. São visões que devem ser levadas em consideração e tais perspectivas têm bastante a somar. 

“Um conceito de Masculinidade não nos permite ver questões relacionadas ao poder, violência e desigualdade (…) também não nos permite ver a complexidade do assunto em suas múltiplas formas” (1).  

 

Quando se fala do homem, evocado no primeiro parágrafo, é trazida uma masculinidade patriarcal (ou tóxica). Uma sociedade patriarcal, na qual vivemos atualmente, pode ser entendida como uma forma de organização social em que suas relações são regidas por dois princípios basilares (2):

  1. as mulheres são hierarquicamente subordinadas aos homens;
  2. os jovens estão subordinados hierarquicamente aos homens mais velhos, patriarcas da comunidade.

O patriarcado tem origem na Roma Antiga e, apesar de eventuais mudanças socioculturais causadas pela globalização, guerras e revoluções tecnológicas, o sistema patriarcal sobreviveu e passou por uma evolução. O chamado ‘patriarcado contemporâneo’ continua herdando muitas características desiguais, mas estas agora se encontram em menor evidência, ainda assim presentes tanto em meio social, profissional e familiar, influenciando o modelo ideal feminino contemporâneo (3).

As citações de uma “guerra” contra o vírus também são reflexo do patriarcado. Lembra dos filmes nos anos 80/90 que tinham como tema guerra, muitas vezes estrelados por Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone? Lá havia uma demonstração do ideal do homem que reflete até hoje. Uma lógica que de colocar  à frente o valor masculino, como ser forte, reprodutor, ativo, corajoso, entre outras características.

Rambo (1982)

Os discursos masculinos têm dominado o contexto da pandemia ao redor do mundo, e as várias abordagens e propostas globais são moldadas por políticas masculinizadas. O uso da palavra ‘guerra’ para falar da pandemia traz uma conotação equivocada, pois a crise vem nos mostrando uma ideia oposta a do “combate” – o cuidado com o próximo, a coletividade e solidariedade social (4).

“Estes discursos patriarcais podem ter consequências sérias nas políticas nacionais e globais, incentivando abordagens militarizadas e autoritárias e dando prioridade a setores econômicos e sociais dominados por homens, negligenciando os setores vitais onde as mulheres estão mais presentes” (4).

A sociedade patriarcal gera uma masculinidade tóxica com políticas que muitas vezes excluem os que não se beneficiam dentro do próprio patriarcado. Tendo isso em vista o texto se dividirá em dois tópicos: como a prevenção em saúde não é considerado “coisa de homem”, e o aumento da violência doméstica em meio a pandemia.

Sem se cuidar e sem máscara pois não é coisa de homem

Protesto em Harrisburg, Pensilvânia, manifestante com cartaz com uma máscara diz: novo símbolo da tirania. AFP – Mark Makela

Dia 08 de julho de 2020, a frase “usar máscara é coisa de v***o” foi dita por Bolsonaro em um evento ao se negar colocar o acessório de proteção. Agora no início de outubro a frase “não tenho medo do Covid” foi dita pelo Donald Trump após ter tido alta do hospital. Já foi comprovado cientificamente que o uso de máscara é de grande importância como forma de proteção da COVID-19. Da não prevenção a uma suposta “coragem” de lidar com a saúde, o que essas duas frases no dizem sobre ser homem?

Voltamos aqui a falar do patriarcado, existe uma naturalização construída historicamente dos espaços que homens e mulheres devem ocupar.

“Vivemos em uma sociedade estruturada pela ideologia do patriarcado que legitima a ‘superioridade’ do homem, este é influenciado pelas ideias hegemônicas de que deve ser forte, dominador, invencíveis por esse fato cuidam pouco da saúde e demoram a procurar médicos, uma vez que o cuidado com a saúde pode ser visto como sinal de fragilidade” (5). 

Extensamente é relatado em artigos científicos que homens frequentam menos os serviços de saúde, principalmente em atenção primária (serviços de prevenção e promoção). Como consequência disso, temos o aumento no público masculino de patologias do coração, hipertensão arterial, neoplasias, diabetes, hipercolesterolêmica, além de doenças agudas como acidente vascular cerebral (AVC), infarto agudo do miocárdio (IAM), colelitíase dentre outras (6). 

Protesto anti-máscara em Columbus, Ohio, em 18 de julho (Jeff Dean/Agence France-Presse/Getty Images)

Quando esse debate vem pra 2020, se vê que o uso de máscara entre homens é menor, muito devido a desinformação e ao desconforto de usá-la, porém essa questão passa também pela masculinidade patriarcal. Alguns tópicos do artigo postado ainda no mês de maio sobre a intenção do uso de máscara: “[H]omens acreditam menos na possibilidade de ser seriamente afetados pela covid-19 em comparação às mulheres e caso aconteça com eles serão capazes de se recuperar facilmente (…) [H]omens concordaram com as afirmações de que o uso da máscara é vergonhoso, estigmatizante, não é legal e é um sinal de fraqueza” (7). Ainda sobre o não uso de máscaras, os homens associam seu uso “a emoções negativas” até proteger sua imagem pública de machos

Logo no início da pandemia notou-se que os homens eram mais acometidos pela Covid-19, tal tendência foi notada na China, Itália, Espanha e também no Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde cerca de 58% das mortes em nosso país são do sexo masculino. Esse número é mais alarmante quando sabe-se que a maior parte da população brasileira acima dos 60 anos é feminina, em torno de 4 milhões a mais. 

Em uma revisão de estudos publicado no final de abril já notava-se que, apesar de homens e mulheres terem a mesma probabilidade de contrair o vírus, os homens tinham maior chance de morrer – em algumas pesquisas citadas tal risco dobrava. Uma das principais causas são os fatores comportamentais:

  • Homens fumam mais: de acordo com o Ministério da Saúde no Brasil em 2019, dentre os indivíduos com mais de 18 anos  12,3% são homens contra 7.7% mulheres.
  • Procuram menos os serviços de saúde: em pesquisa de 2019 publicada pela revista SAÚDE cujo tema era “Um novo Olhar para Saúde do Homem” chegou aos seguintes resultados: cerca de 45% acham frequentar o médico regularmente essencial, 47% acham que devem ir ao médico ao menos uma vez por ano, 21% acham essencial não consumir bebidas alcoólicas, 26% relatam só ir ao médico quando se sentem muito mal, 15% dizem seguir somente algumas orientações médicas. Sobre o SUS 27% considera o sistema pouco preparado para lidar com a saúde do Homem ( link). 

Essa ideia de ser invencível e não ter medo quando se coloca sobre a perspectiva das evidências científicas é totalmente ignorante, precisamos de uma compreensão desses debates pois estamos morrendo por causa de visões distorcidas do que é ser homem.

Violência doméstica na Quarentena

 

No dia 27 de junho, em um programa discutindo uma possível volta do futebol, o ex-técnico, hoje comentarista, René Simões falou a seguinte frase “Vamos discutir o futebol como fator social para ajudar as pessoas que estão em casa enlouquecendo. Tenho amigos aqui que já se separaram, outros já bateram na mulher, outros batem nos filhos…”

essa adfirmação nos leva a outro dado alarmante do início da quarentena: o  aumento da violência doméstica. Em uma sociedade patriarcal  existe uma normalização da violência por parte do homens e, principalmente dentro das estruturas familiares, tem-se uma ligação direta da demonstração de agressividade a virilidade masculina (8).  

Para falar de violência doméstica, é importante sempre trazer questões de gênero, pois ambas estão totalmente vinculadas. Gênero é um elemento construtivo da sociedade, que tem como base o contraste entre o sexo, considerado uma forma estática e categórica do “masculino x feminino” (8).

Trazendo o debate de gênero para dentro do sistema patriarcal, entende-se que as relações são hierarquizadas, que o masculino é superior ao feminino, por este ter uma suposta função principal de provedor. Ao longo da pandemia tais desigualdade são expostas quando organizações internacionais apontam para o aumento da violência doméstica durante esse período.

O patriarcado é apontado como principal responsável pela violência doméstica, variando desde um sentimento de propriedade do homem sobre a mulher até a naturalização e invisibilização da agressão, seja física ou psicológica. Na maioria das vezes esse sistema estabelece funções sociais às mulheres de submissão aos homens. Tais violências são comparada com uma pandemia por envolver um grande número de casos e estar espalhada por todo o mundo há muitos anos (8, 9). 

“O isolamento social imposto pela pandemia da COVID-19 traz à tona, de forma potencializada, alguns indicadores preocupantes acerca da violência doméstica e familiar contra a mulher. As organizações voltadas ao enfrentamento da violência doméstica observaram o seu aumento por causa da coexistência forçada, do estresse econômico e de temores sobre o coronavírus” (9).

No Brasil de acordo com os dados oficiais do Governo o aumento foi em torno de 18% de casos relatados.  Para citar outros países foi descrito também o aumento de casos de violência doméstica na Itália, as queixas relatadas nos primeiros dias de março foram de 1.157 (no ano anterior no mesmo período esse número era de 652); na França com o aumento de 30% já nas primeiras semanas de isolamento, na Colômbia registrando aumento de 50%.

 

As dificuldades econômicas potencializadas pela pandemia fazem com que o homem perca o seu poder de provedor, ferindo aquilo que ele entende como o papel identitário de “macho”, servindo assim de gatilho para a agressividade (9). Porém esse é somente um dos fatores de aumento da violência doméstica, que não é novidade no Brasil. O isolamento social trouxe consequências, mas é apenas um agravante e não causa primária.

“Vivemos a exacerbação de problemas que nos acompanham, reforçados por modelos de pensamentos retrógrados, misóginos e de ataque ao papel do Estado, encolhendo políticas públicas que seriam fundamentais para enfrentarmos de maneira mais justa o contexto da pandemia” (9).

Sim, todo o texto é sobre derrubar o patriarcado

FOTO: NICK BOLTON/UNSPLASH

Como vimos no decorrer do texto, os problemas já existentes relacionados à masculinidade tóxica foram potencializados com a COVID-19, uma doença nova cujo enfrentamento é dificultado por questões antigas. Talvez precisemos de uma perspectiva histórica para ter noção do momento que estamos vivendo, de como políticas que se estabeleceram com valores patriarcais concebem ideias que há muito deviam ter sido superados. Repito, tais problemas já existiam, só foram expostos no contexto de quarentena.

É um fato que países governados por mulheres vem se saindo melhor durante a pandemia, entre os fatores estão: uma melhor comunicação (ferramenta importante para lidar com crises) e mais diversidade de opiniões dentro do governo Isso traz melhores decisões, porque você tem a visão tanto de homens quanto de mulheres.”

Superar o patriarcado tem que ser prioridade na nossa sociedade em um mundo pós 2020. Essa deve sim ser uma pauta de nós homens, não é normal morremos por acreditarmos que ter medo e se cuidar significa fraqueza ou agredimos nossas companheiras por ter um falso sentimento de posse.  

Por hoje é isso. Sempre vale uma olhada nas referências e links no decorrer do texto, paz! 

Referências:

(1). CONNEL, R. W, Políticas de Masculinidades, Educação e Realidade, 1995. 

(2). SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20, 71-99.1995.

(3). MACHADO, L.Z. Perspectivas em confronto: relações de gênero ou patriarcado contemporâneo? In: Sociedade Brasileira de Sociologia (Ed.) Simpósio Relações de Gênero ou Patriarcado Contemporâneo, 52ª Reunião Brasileira para o Progresso da Ciência. Brasília: SBP. (2000).

(4). MOURA, T. Patriarcado, Masculinidades e Pandemia. Palavras para lá da Pandemia: Cem lados de uma Crise. 2020.

(5). RANGEL. E, M. CASTRO, B.G. MORAES, L. P. “PORQUE EU SOU É HOME!”: UMA ANÁLISE DOS IMPACTOS DA CONSTRUÇÃO SOCIAL DA MASCULINIDADE NO CUIDADO COM A SAÚDE. Interfaces Científicas – Humanas e Sociais • Aracaju • V.6 • N.2 • p. 243 – 252 • Out. 2017. 

(6). PEREIRA, A. K. SAÚDE DO HOMEM: ATÉ ONDE A MASCULINIDADE INTERFERE. Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. 2010. 

(7). CAPRARO, V. BARCELO, H. The effect of messaging and gender on intentions to wear a face covering to slow down COVID-19 transmission. Middlesex University London, UK. 2020. 

(8). GOMES, K. S. Violência contra a mulher e Covid-19: dupla pandemia. Revista Espaço Acadêmico – n. 224 – set/out 2020. 

(9). VIEIRA. P, R. et. al. Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela? REV BRAS EPIDEMIOL 2020. 

 

Textos, podcasts e vídeos complementares:

Texto no Portal Deviante sobre Masculinidades: Parte I e Parte II

Podcast Tricô de Pais #105 Masculinidade Tóxica feat Rita Von Hunty e #115 Grito da Masculinidade

Livro Saúde do Homem em Debate link

Vídeo Redefinindo os Filmes de Guerra Link