O tema da COVID-19 tomou conta de todo o debate da Saúde pública nos últimos anos por ser uma doença nova que se tornou pandêmica e até hoje não ter seus impactos totalmente esclarecidos. Porém, em meio a esse turbilhão que vem sendo a pandemia, outra doença já conhecida volta a ser destaque pelo seus números altos de casos, pela negligência por parte do governo federal e pelo avanço tecnológico. O que faz ressurgir a importância do seu debate, vamos de mais um texto sobre HIV/AIDS.

Já tenho duas publicações abordando esse tema. A primeira é do início de 2020 (texto I), comentando sobre o seu retorno naquele ano e como as políticas conservadores do atual governo Bolsonaro prejudicavam o combate. A segunda, já no meio de 2021 (texto II), usando o auge do HIV/AIDS como exemplo para o combate à COVID. No texto de hoje trago de volta o tema que, sob a sombra da pandemia, sofreu inúmeros retrocessos, porém com esperanças no futuro próximo.

A realidade frente a um governo negacionista

No final de outubro de 2021, Jair Bolsonaro, em sua live semanal, fez uma declaração mentirosa na qual associava a vacina contra a covid com o HIV. A fala usava como base ideias distorcidas e já rebatidas. A live em questão foi removida das redes sociais e atualmente Bolsonaro responde a um inquérito no STF por disseminação de notícias falsas sobre vacinas. 

Não foi a primeira vez na qual o Presidente usou de falas preconceituosas ao tratar da doença. Em fevereiro de 2020 ele disse que pessoas portadoras do HIV eram “despesas a todo o Brasil.”

Acho que essas duas manchetes já servem para deixar claro os rumos no qual o governo brasileiro trata o tema do HIV/AIDS, essas declarações refletem e muito nas políticas públicas adotadas nos últimos anos. 

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No ano de 2020 o Brasil diagnosticou mais de 32.000 novos casos de HIV (boletim epidemiológico HIV 2021), além de já ser sabido que em meio à pandemia da COVID-19 realizou-se menos testes de HIV e atualmente temos 920 mil pessoas nessas condições. De acordo com o Ministério da Saúde, 81% fazem o tratamento pelo sistema público e 95% já não transmitem o vírus por estarem com a carga viral suprimida. Porém esses dados não levam em consideração a subnotificação. De acordo com a OPAS (Organização pan-americana de Saúde) estima-se que, na América Latina, por volta de 23% das pessoas que estão com a doença, não têm conhecimento disto.

Apesar de hoje a AIDS ser uma doença totalmente tratável, ela matou cerca de 10.417 pessoas em 2020 só aqui no Brasil. Mesmo representando uma queda de 2,5% em relação ao ano anterior, esse número continua alto, logo temos muito o que caminhar no combate ao HIV. Sim, o tratamento e os meios de diagnóstico estão cada vez mais evoluídos, porém o Brasil sofre um retrocesso nas políticas públicas de saúde e na desigualdade, sendo esse um dos principais fatores que levam ao elevado número de óbitos.

Em primeiro de dezembro de 2021, data do dia mundial no Combate à AIDS, a Deputada federal Luciana Genro (PSOL) em audiência no Rio Grande do Sul falou que:

o Estado vive uma epidemia de HIV/Aids. Os indicadores superam a média nacional e nos colocam infelizmente na vanguarda dos casos de HIV e outras ISTs no país […]. No ano passado foram identificados 3.405 novos casos de HIV e 3.224 casos de Aids em nosso estado, com uma taxa de detecção de 28,3 para cada 100 mil habitantes, totalizando 99.616 casos de Aids, no período de 1980 a junho de 2020.

Na audiência ainda são destacadas as diversas dificuldades enfrentadas pelos pacientes de HIV nesse período de pandemia , desde a falta de medicamentos que deveriam estar disponíveis no SUS até a falta de políticas públicas específicas para essa população no combate à pandemia da COVID-19.

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Em outra audiência pública, nesse mesmo dia, desta vez em Brasília, nas várias falas de representantes de organizações no combate ao HIV no Brasil, se destacaram: a falta de vontade política por parte do governo federal ao encarar o tema, o preconceito que ainda rodeia a doença, a desigualdade no tratamento e a busca por meios que garantam o acesso ao atendimento para esse pacientes através do SUS.  

O representante da Rede Nacional de Pessoas que Vivem com Aids, Moyses Toniolo, lamentou que, apesar dos avanços jurídicos e tecnológicos de prevenção e tratamento da doença, o estigma ainda leva à morte de muitas pessoas. “Nós ainda temos a necessidade de muita evolução em diálogo, na construção coletiva dos planejamentos que nós precisamos ter para as ações em nível federal, estadual e municipal no Brasil inteiro”, disse.

Todos esses pontos importantíssimos que foram colocados têm como origem o desmonte das políticas públicas do SUS para o combate do HIV, que vem desde de 2016 e teve considerável piora em 2019, quando ficamos sob um governo conservador que trata temas de saúde e educação sexual como algo abominável, e tais desmontes permaneceram em meio a pandemia.  

Sobre sucateamento do SUS

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Desde a redemocratização do Brasil, o acesso à saúde é considerado um direito do cidadão e um dever do Estado (Lei 8080). Fato no qual possibilitou diversos avanços no campo da saúde pública. Não estou dizendo que é perfeita, temos muito o que melhorar. Um dos maiores entraves é o seu financiamento, que foi diminuído e dificultado com o teto de gastos de 2016.

De forma bastante resumida, o Teto de Gastos foi uma proposta do ex-presidente Michel Temer que limitava o gasto público do governo federal nos próximos 20 anos, estabelecendo um limite de gastos para a União. Isso significa que a Emenda Constitucional definiu que o crescimento dos gastos públicos seria totalmente controlado por lei, o que atinge diretamente áreas como educação e saúde. 

Usando de exemplo o caso da saúde pública, o artigo da Carta Capital  fala que:

A instituição do Teto de Gastos (EC 95/2016) foi um golpe profundo no já fragilizado direito à saúde, pois impede o crescimento real dos gastos do governo por até vinte anos […]. Sobre a saúde o efeito é forte, pois o Teto de gastos desvincula os gastos com saúde de percentuais progressivos da receita do governo, de modo que o montante direcionado ao financiamento do SUS não acompanhará o crescimento do produto e da renda, e nem as transformações demográficas. A medida, além de afetar o financiamento da saúde pública, claramente estimula o consumo de saúde privada.

Agora trazendo esse debate para dentro da área do HIV/AIDS, já em 2018 o então futuro ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, falou que “as políticas de prevenção não podem ofender as famílias”, e ainda sob o seu mandato as políticas públicas de combate a AIDS foram extintas, precarizadas e algumas perderam o foco na prevenção e promoção de saúde.

O exemplo mais claro foi o sucateamento do departamento de Doenças e condições crônicas e doenças sexualmente transmissíveis, que antigamente era chamado de “Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais”. Isso fez com que a já conhecida referência mundial no combate ao HIV, passasse a englobar outras patologias como tuberculose e hanseníase. Algumas ONGs que combatem a doença no Brasil desde os anos 80 afirmaram que “parece que querem tornar o HIV invisível.” 

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Segundo a ABRASCO, em 2021, com o ministro da Saúde Marcelo Queiroga, houve uma grande queda no número de testes realizados de HIV, o que dificulta o real entendimento sobre a situação da doença no país. Existe, também, uma diminuição na distribuição de preservativos ao SUS desde 2018, além de um boicote na distribuição de medicamentos e as campanhas de HIV por parte do governo de Jair Bolsonaro já eram raras mesmo antes da pandemia. 

O que era entendido inicialmente por parte considerável do governo federal como um corte para economizar o dinheiro da saúde, quando se analisa a realidade não é bem assim. De acordo com a ex diretora do departamento de HIV/AIDS, Adele Benzaken:

O custo de internação para o SUS é muito maior do que o valor que, hoje, o Ministério da Saúde gasta com o tratamento, com a distribuição de preservativos masculinos e femininos, com o PrEP e com outros insumos para que as pessoas se previnam do vírus e não o transmitir. (…) diagnosticar e tratar pessoas vivendo com HIV é uma economia para a nação, porque assim as pessoas não transmitem o vírus, não adoecem e não são internadas.

Ainda de acordo com Benzaken, a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis não é algo simples de ser analisado, pois varia de diversos fatores sociais desde a desigualdade social até questões de gênero e educação em saúde. Por isso, os mais atingidos pelos cortes aqui citados no texto são da população em maior vulnerabilidade.

Em artigo recente da Folha do Conrado Hubner, intitulado “21 técnicas de matar em silêncio”, o autor faz uma associação entre as negligências das políticas públicas em saúde e a morte, a chamada Necropolítica, que, no governo Bolsonaro, em plena pandemia, chegou em um nível jamais visto

Bolsonaro alçou esses dispositivos letais a outro patamar. E também os revestiu, como ninguém antes, de verniz ideológico composto por uma versão delinquente da liberdade – a liberdade sem sociedade, sem solidariedade e sem responsabilidade. A liberdade sem outros direitos constitucionais, a liberdade para quem pode, tem força e tem sorte.

Apenas para citar algumas das técnicas destacadas no texto acima: oposição a medidas sanitárias, incentivo a aglomeração com o objetivo da imunidade coletiva, campanha por tratamento alternativos ineficazes, atraso deliberado na compra de vacinas, atraso e falha na distribuição de vacinas, encerramento do programa Mais Médicos e fechamento do departamento de AIDS.    

Recentemente o Ministro da saúde, Marcelo Queiroga, fez um paralelo do uso de preservativos com o uso de máscaras, alegando que “Preservativos diminuem doenças sexualmente transmissíveis, mas vou fazer uma lei para obrigar as pessoas a usá-los?”  Quando na verdade tanto no caso da COVID como no do HIV a educação em saúde é o mais importante. Talvez não seja necessário criar leis que obriguem o uso, mas é extremamente necessário que o ministério da saúde seja fonte segura de informações, algo que não ocorre nessa gestão.

Em todo texto sobre HIV/AIDS gosto de deixar bem claro que o Brasil já foi modelo para o mundo no combate à doença. Em diversas vezes estivemos na vanguarda em diagnóstico, acompanhamento, e distribuição de medicamentos, tudo de forma gratuita e seguindo as diretrizes e princípios do SUS. Importante destacar também que isso está acima de qualquer aspecto ideológico ou religioso. O negacionismo que rodeia todos os âmbitos desse governo, não só na saúde como na educação, na crise climática e em diversos outros pontos, está ligado à incompetência de entender a realidade de ideias e pensamentos preconceituosos que há muito tempo já deveriam ter sido superados. 

Aliás, o nosso SUS se estruturou e se organizou de modo a lidar com a pandemia de HIV no final dos anos 80, quando superamos a ditadura militar e pensamentos que infelizmente repercutem até hoje, como por exemplo o de que a AIDS é um espécie de punição divina. A nossa saúde pública é muito maior que qualquer pessoa que esteja ocupando o cargo do ministério da saúde ou da presidência, eles passarão e o SUS (passarinho) ficará.   

Pequenas doses de esperança no futuro

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Temos pequenas doses de esperança para um futuro próximo no enfrentamento do HIV/AIDS. Pra falar a verdade, muita coisa já mudou em relação à doença desde os anos 80. Hoje pessoas com esse diagnóstico vivem suas vidas naturalmente e, com o controle da doença, não transmitem o vírus. Desde novos medicamentos até uma possível vacina testada em território brasileiro, temos novas perspectivas e espero que as políticas públicas em saúde andem ao seu lado.

Vacinas

O desenvolvimento das vacinas contra o HIV passou por diversas dificuldades, desde a falta de interesse público, por ser uma doença estigmatizada e negligenciada, até o vírus extremamente complexo. Só agora, com a tecnologia desenvolvida contra a COVID-19, que temos resultados promissores. Depois de 40 anos podemos estar diante do primeiro passo para o final do HIV. 

A vacina experimental da moderna usa a tecnologia de RNA mensageiro, um produto que estimula as células B do nosso sistema imunológico a gerar anticorpos capazes de neutralizar o vírus. Essa está na sua primeira fase de testes e a primeira aplicação ocorreu no dia 27/01/2022. Já a vacina do estudo Mosaico entra na sua fase 3 de testes que engloba cerca de 3800 pessoas no mundo inteiro, incluindo o Brasil. Essa vacina usa uma proteína encontrada na membrana do vírus, chamada GP140, e a partir disso o nosso sistema Imune aprende a reconhecer o vírus e impedindo que ele se espalhe.

Medicamentos

Em novembro de 2021 foi aprovado pela ANVISA um novo medicamento no combate ao HIV, o qual combina duas substâncias, a lamivudina e o dolutegravir sódico, em um único comprimido. A agência entende que esse novo medicamento representa um grande avanço no tratamento ao HIV. Com isso é possível reduzir a quantidade do vírus no organismo e aumentar o número de células CD4, que têm fundamental importância no sistema imune.

Na Inglaterra, outro novo medicamento injetável vem sendo utilizado no combate ao HIV com o objetivo de uma longa duração após duas aplicações, ou seja, ao fazer esse tratamento, o paciente não precisa se utilizar do uso diário de medicamentos.  Porém, ainda está em testes e só é indicado àqueles que já possuem um vírus indetectável em seu organismo.  

Fim do HIV em 2030?

Segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre a AIDS/HIV (UNAIDS), sim. As mortes relacionadas à doença vem diminuindo, o número de pessoas em tratamento quase que triplicou, além de que diversos países em 2016 ultrapassaram sua meta no combate ao HIV. Isso tudo só foi possível devido a sistemas de saúde fortes e na educação em saúde, com campanhas de prevenção e de combate ao preconceito em torno da doença.

Porém, com a pandemia da covid-19 ficaram claras as fragilidades de sistemas de saúde e principalmente das políticas públicas, além da desigualdade do acesso a esses serviços serem gritantes. Só que vou deixar pra me aprofundar sobre este tema em um futuro texto.  

 

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