A indústria de videogames está ficando cada vez mais cara. Com os grandes estúdios investindo mais e mais dinheiro em grandes produções, o retorno financeiro precisa ser garantido, fazendo com que apostas em novas franquias ou experimentações sejam cada vez mais escassas. Porém o mercado de indies (jogos feitos por empresas independentes) tem suprido muito bem essa demanda. A Ninja Theory foi uma dessas empresas (antes de ser comprada pela Microsoft), nos presenteando com um grande jogo que aborda de maneira sensível e imersiva a saúde mental e neurodivergência, Hellblade: Senua’s Sacrifice. Então pegue sua espada e vamos juntos enfrentar guerreiros vikings enquanto encaramos traumas e surtos psicóticos (sempre com a ajuda de um profissional da área).

Lançado em 2017, em Hellblade: Senua’s Sacrifice acompanhamos Senua, uma guerreira celta que parte em uma jornada desesperada para resgatar a alma de seu amado, Dillion, aprisionada nas profundezas de Helheim, o reino dos mortos da mitologia nórdica. O combate é intenso, focado em duelos corpo a corpo, com um sistema que privilegia atenção, ritmo e leitura dos movimentos do inimigo. Ainda assim, Hellblade não é apenas sobre lutar: é sobre atravessar o sofrimento, enfrentar memórias dolorosas e buscar significado mesmo quando tudo parece perdido.

Sua maior batalha não é apenas contra monstros ou entidades sobrenaturais, apesar de não ser dito diretamente durante o jogo, (e com razão, já que o jogo se passa no século 8 d.C.) Senua aparentemente sofre de psicose, e o jogo retrata seus delírios, alucinações visuais e auditivas, medos e traumas de forma visceral e imersiva. Mas na verdade, psicose, em si, não é uma doença. Vamos entender o que isso significa e como o jogo trabalha essa condição.

Imagem 01: Senua carrega a cabeça de seu amado sempre consigo, intensificando ainda mais o trauma sofrido. A imagem mostra a personagem segurando uma cabeça humana envolta em um pano.

Psicose é um termo usado para descrever um conjunto de sintomas em que a pessoa perde, de forma parcial ou temporária, o contato com a realidade. Ela é um estado mental que pode aparecer em diferentes transtornos, como esquizofrenia, transtorno bipolar, depressão psicótica ou ser desencadeado por uso de substâncias, estresse extremo ou condições médicas.

O principal aspecto da psicose é que a pessoa passa a interpretar o mundo de maneira alterada, podendo perceber, pensar ou sentir coisas que não correspondem à realidade compartilhada. Essas experiências não são simplesmente “imaginação” já que, para quem está vivendo a psicose, elas parecem profundamente reais.

A narrativa de Hellblade apresenta a psicose não como elemento de terror gratuito, mas como parte profunda da identidade de Senua. As vozes que a acompanham, conhecidas no jogo como Furies, representam as alucinações auditivas, um dos sintomas mais característicos da psicose. Elas comentam seus passos, criticam, incentivam e confundem, reproduzindo com autenticidade a ambiguidade emocional vivida por pessoas que passam por episódios psicóticos. Inclusive aqui, vale ressaltar o excelente trabalho de direção de áudio do jogo, utilizando áudio binaural e fazendo com que o jogador escute vozes ao redor de Senua, simulando o efeito da psicose e aproximando o público de suas angústias.

Gif 01: O som binaural faz toda a diferença na imersão, sendo recomendado jogar com fones de ouvido. No gif vemos a personagem sendo atormentada por vozes e enlouquecendo

O jogo também explora delírios, sobretudo quando Senua acredita estar sendo observada, julgada ou guiada por forças sobrenaturais. Sua jornada para Helheim combina mitologia, trauma e distorções perceptivas, aproximando o jogador da sensação de viver em uma realidade fragmentada.

Temos também a questão da esquizofrenia. Novamente aqui, embora Hellblade não declare que Senua tenha esquizofrenia, muitos sintomas retratados no jogo são comuns nessa condição, como:

  • Alucinações auditivas intensas e persistentes;
  • Dificuldades com a percepção do real;
  • Delírios persecutórios e simbólicos;
  • Desorganização do pensamento, que aparece em momentos de confusão mental;
  • Isolamento emocional e social, resultado dos traumas e da forma como Senua foi tratada por sua comunidade como sendo a fonte de alguma maldição que caiu sobre o vilarejo.

A esquizofrenia é um transtorno mental crônico e complexo que afeta a forma como a pessoa pensa, sente e percebe o mundo. É caracterizada por episódios psicóticos, alterações cognitivas e mudanças emocionais que podem interferir de maneira significativa na vida diária, assim como acontece com Senua.

Imagem 02: Esses são apenas sinais, o diagnóstico sempre precisa ser feito por um profissional da área. Na imagem vemos alguns sinais que podem indicar problemas de saúde mental

Importante ainda é que o jogo não reduz Senua a um diagnóstico. Em vez disso, mostra que suas vivências têm múltiplas origens: trauma, perdas, culpa, superstições culturais e sintomas que se alinham com transtornos psicóticos. Essa complexidade reflete a compreensão moderna de que condições mentais surgem da interação entre fatores biológicos, psicológicos e sociais. Senua é complexa: forte, vulnerável, determinada, assustada, humana. O jogo faz do sofrimento uma parte da personagem, mas não a define por ele.

Senua e o povo celta também são um excelente estudo de caso, nos mostrando que antigamente os transtornos psicológicos eram vistos através dos filtros culturais, religiosos e filosóficos de cada povo. Faltava compreensão científica, mas existia uma tentativa de explicar e dar sentido ao que hoje reconhecemos como sintomas psiquiátricos. À medida que o conhecimento avançou, especialmente a partir da Grécia, surgiu uma visão mais racional, que serviria de base para a psiquiatria moderna, embora o estigma tenha permanecido por muitos séculos.

Imagem 03: Trepanação (procedimento cirúrgico que consiste em abrir um orifício no crânio) foi usado até meados do século XX para transtornos mentais. A imagem mostra diversas pessoas acompanhando um procedimento de trepanação em um paciente

Nesse sentido, a Ninja Theory fez um ótimo trabalho ao usar arte, som binaural, narrativa simbólica e mecânicas de jogo, criando uma experiência que aproxima o público do mundo interno de alguém que enfrenta sintomas psicóticos. Isso ajuda a reduzir preconceitos e aumenta a empatia, mostrando que:

  • A psicose não é apenas “perder o controle”;
  • A esquizofrenia não é sinônimo de violência ou “dupla personalidade”;
  • Pessoas com essas condições vivem, sentem, amam e lutam, como qualquer outra.

Chegando ao fim, Hellblade: Senua’s Sacrifice é, acima de tudo, uma experiência emocional poderosa. É um jogo que convida o jogador a sentir, compreender e acompanhar uma heroína marcada pelo trauma, mas movida por coragem, amor e resiliência. Uma obra que transcende o entretenimento e se posiciona como um marco na representação de saúde mental nos videogames.

Em 2024, Hellblade acabou ganhando uma continuação, Senua’s Saga: Hellblade II, que se aprofundou ainda mais na personagem, trazendo novos traumas e dilemas. O jogo foi aclamado pela critica e pelos fãs, porém, agora sobre as asas da Microsoft, não sabemos se teremos uma continuação ou não e o que será da Ninja Theory. Resta torcer para que tenhamos mais iniciativas como essa no futuro.

Também vale lembrar. Se você ou alguém que você conhece está enfrentando problemas de saúde mental procure ajuda médica profissional. Nada de se autodiagnosticar com “ajuda” das redes sociais.

Imagem 04: O autodiagnóstico é muito perigoso. Não acredite em tudo o que está na internet. Só um profissional pode fazer o diagnóstico correto. Na imagem vemos uma jovem cercada por símbolos de redes sociais ligados a nomes de transtornos

E por hoje é só. Espero que tenham gostado. Deixe, aí nos comentários, críticas e sugestões, se já jogou e sua opinião sobre o game. Até a próxima.

Fontes: Wikipédia, Hellblade Wiki, Canal Tech, Start UOL e Tua Saúde