No decorrer de 2021, enquanto as pessoas aqui no Brasil começaram a se vacinar, um grito/hashtag (#) era comum nas postagens das redes sociais “Viva o SUS!!”. Naquele momento entendeu-se como o nosso sistema público de saúde foi o principal pilar que sustentou o país nesses tempos de pandemia. Pois foi no SUS que a maioria das pessoas foram internadas, garantindo que não entrassem em dívidas ao ter familiares nas UTI’ s, foi pelo SUS que todos os cidadãos em território brasileiro se vacinaram — lembram de quererem uma vacinação privada? E não só em ações ligadas à pandemia, o SUS está presente na nossa vida em muitos pontos que às vezes nem nos damos conta.

Estamos em um ano de eleições presidenciais e do Congresso Nacional, o tema saúde deveria ser um dos principais a ser abordado por todos os candidatos. As notícias recentes mostram o que vai se apresentar no futuro do SUS. No texto de hoje vou partir do intitulado “projeto nação” para falar sobre o financiamento da saúde pública antes e durante a pandemia, e as expectativas do futuro.

Do Projeto nação ao financiamento do SUS

Em Maio de 2022 foi lançado o programa de governo dos militares chamado “Projeto Nação” que dentre as propostas está, a partir de 2025, o fim da gratuidade do SUS (link). De acordo com o projeto “Historicamente o SUS consome considerável parcela do orçamento Nacional e atende precariamente seus cidadãos“. O texto ainda alega que o fato de o SUS ser precarizado leva ¼ da população a buscar a saúde privada. 

(fonte: link)

Outro ponto citado no texto sobre nossa saúde pública é que “as duas pandemias em 2020 (coronavírus e o “Xvirus”) consumiram vultuosos recursos que, de modo geral, não oferecem substâncias e legados posteriores em qualidade e quantidades”. Ele ainda prossegue falando que uma cobrança de taxa, a partir de 2025, para famílias com renda média acima de 3 salários mínimos, traz mais recursos financeiros para o SUS. 

Não encontrei nada relacionado a esse “Xvirus” no texto, existem muitos outros equívocos trazidos nesse projeto, mas vamos colocar os pés no chão e focar na realidade.

O SUS foi concebido em 1988, sendo considerado hoje o maior sistema público de saúde do mundo, porém muito do que foi idealizado em seu projeto inicial até hoje  não foi colocado em prática. É importante trazer isso pois não quero passar a vocês uma visão romantizada do SUS, ele tem sim muitos problemas, porém a resolução deles está longe do que é apontado nesse intitulado “Projeto Nação.” Vamos analisar os pontos em questão.  

 

Financiamento do SUS

Ainda lá em 88 ficou entendido na constituição que o dinheiro do SUS viria das três esferas governamentais (Federal, Estadual e Municipal) e isso geraria a receita necessária para garantir o direito de que toda pessoa em território brasileiro tenha acesso à saúde gratuita, ou seja a Universalidade. De acordo com a Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012 (link) os municípios devem aplicar em saúde no mínimo de 15% da arrecadação dos impostos, enquanto nos estados esse valor é de 12%. Já na união, a questão é um pouco mais complexa, o valor destinado à saúde deve ser o valor do ano passado somado ao resultado do PIB também do ano anterior (link). 

(fonte: link)

Vale destacar que a Lei Complementar nº 141 foi conquistada após muita luta social, porém, no ano de 2016, o governo Temer aprovou o chamado Teto de Gastos. Isso gerou uma série de sucateamentos na saúde pública, com diversos cortes de verbas e desvinculou os gastos com a saúde de percentuais progressivos do governo nos próximos 20 anos, ou seja, o financiamento do SUS não acompanha o crescimento do produto da renda nem as mudanças demográficas. No texto sobre AIDS/HIV desenvolvo mais sobre o estrago do teto de gastos na saúde pública, vale uma olhada no link.

Mas afinal quanto eu e você gastamos para que um serviço como o SUS exista? Já vou logo adiantando que o SUS custa diariamente menos que uma coxinha.

Em levantamento do CFM junto com a federação não governamental “Contas Abertas” (link), em 2019, ao dia, o governo gastou por volta de R$ 3,83 por pessoa em território brasileiro, ao ano este valor chega por volta de R $1.398, 53, por indivíduo.

Segundo o estudo, esse valor levou em consideração os gastos incluídos nas três esferas governamentais, como por exemplo custeio da rede de atendimento até o pagamento dos funcionários do SUS. A pesquisa também destaca que esse valor por indivíduo fica na casa dos “3” há mais de 12 anos. 

Só para colocar em perspectiva o gasto em saúde —  uma diária no hospital nos EUA, seja por qual for o motivo, gira em torno de U$ 800 a U$ 25.000, sem levar em consideração os gastos em outros insumos como ambulância (link).  Trazendo um exemplo mais próximo, a vacina da COVID na rede privada está com o preço estimado por volta de R$350 (link), fazendo um cálculo rápido, caso tome as 3 doses na rede privada o valor gasto (R$ 1.050) é próximo do gasto anualmente por pessoa em todos os serviços disponíveis no SUS (R $1.398, 53). 

Tudo bem, mas quanto do PIB (Produto Interno Bruto) é gasto na saúde pública? Trazendo a pesquisa realizada pela Fiocruz junto ao Ministério da Saúde, entre 2015 e 2019, foi usado no SUS anualmente por volta de 3,9% do PIB (link). Quando comparado a outros países que também possuem saúde pública essa porcentagem é baixíssima. Por exemplo, o NHS da Inglaterra, considerado o primeiro sistema público de saúde do mundo, gasta 8.2% do seu PIB, já o Canadá, 8%, e a França ,9.3% (link).

Agora vamos pensar sobre esses números e a frase retirada do Projeto Nação “Historicamente o SUS consome considerável parcela do orçamento Nacional.”

O SUS pela grandeza que tem consome pouquíssimo do orçamento nacional. Frente aos desafios que temos que enfrentar nesse período da pandemia, com o envelhecimento da população, precarização do trabalho e questões de saúde mental (como o burnout), a mobilização deveria ser em derrubar o teto de gastos e aumentar o investimento do PIB na saúde pública. Porém, antes de falar sobre o futuro do financiamento do SUS, vamos contextualizar os gastos em saúde pública no Brasil durante a pandemia.  

Financiamento do SUS durante a pandemia 

(Fonte: Sanchit Khanna — Hindustan Times via Getty)

O Brasil gasta pouco com o SUS, mas será que esse cenário mudou pelo menos nesses anos de pandemia? A resposta é sim, porém não. Vamos analisar o que foi esse momento para a saúde pública no Brasil em termos de gastos. No final de março de 2020 foi decretado estado de emergência e naquele momento ainda não se entendiam os reais impactos que a COVID-19 iria causar.

Houve muitas guerras de narrativa na saúde pública, e isso ao preço de vidas humanas. O SUS, durante a pandemia, segurou como deu, enquanto o governo negligenciou sua função de organizar o sistema de saúde e priorizou tratamento precoce, imunidade de rebanho, além de negar a compra e a eficácia das vacinas.

No início de Abril de 2020 o orçamento extraordinário foi aprovado para a saúde, isso obviamente devido à pandemia, porém houve uma irresponsabilidade do Ministério da Saúde em aplicá-lo. Em artigo publicado em 2021 fala-se que

Ainda que tenha sido aprovado o Orçamento de Guerra e existam recursos previstos no orçamento para o combate à pandemia, aparentemente, faltou empenho do governo federal para executá-los e alocá-los no ritmo necessário em uma emergência em saúde pública, prejudicando as ações de combate à pandemia nas três esferas de governo (1).

Isso sem levar em consideração os gastos com medicamentos não eficazes, que até recentemente apodrecem nos galpões militares (link), gastos esses chegando a quase R$ 90 milhões (link), além do gasto em divulgação do tratamento precoce (link) e a criação do app tratecov, que recitava cloroquina a qualquer um (link).  Somam-se a isso propagandas na saúde que ignoravam a prevenção e exaltavam o agronegócio (link), tudo isso a âmbito federal. No meu texto sobre CPI da pandemia explico qual o dever da Federação na saúde pública vale uma olhada no link.

(Fonte:Getty Image)

Destaco também que a vacinação foi atrasada (link), a estratégia de imunidade de rebanho foi utilizada em território brasileiro (link). Isso sim custa mais caro para o orçamento da saúde, pois gera mais gente internada em UTIs ou com sequelas ainda pouco entendidas, o que reflete em gastos públicos. 

Voltando ao artigo citado anteriormente, em um momento de pandemia o financiamento deve focar em especial em dois pontos: vigilância em saúde e emergência (cuidados críticos, ligados ao suporte de vida). Entretanto, historicamente no Brasil esses pontos são precarizados, o que não mudou durante a pandemia. O artigo ainda cita que a queda no PIB leva as pessoas a dependerem mais do SUS, porém isso não reflete em investimento público nessa área (1). 

Trazendo mais uma vez oo texto do projeto nação as duas pandemias em 2020 (coronavírus e o “Xvirus”) consumiram vultuosos recursos que, de modo geral, não oferecem substâncias e legados posteriores em qualidade e quantidades”. Sim, houve um gasto maior em saúde durante esse período, porém uma parte considerável foi mal aplicada focando na desinformação e em métodos que naquele momento já eram entendidos como ineficazes.

O financiamento do SUS no futuro próximo

(fonte: link)

O SUS foi a maior revolução da medicina brasileira”. Essa frase foi dita recentemente pelo Drauzio Varella, lembrando da sua juventude e início da vida como médico, quando não existia um sistema público de saúde. Aos que não sabem, o SUS só foi possível com muita luta popular. Em um momento pós ditadura militar, a ideia de que serviços de saúde poderiam ser gratuitos a todas as pessoas em território brasileiro naquele momento parecia um sonho distante. 

Nesse momento, chegando ao terceiro ano da pandemia, se faz importante pensar no futuro do SUS, se permitindo ter um pouquinho de esperanças. Está havendo uma preparação para grandes conferências em saúde e propostas incríveis vêm sendo apresentadas.

Entre as principais estão a derrubada do teto de gastos e o aumento, nos próximos 10 anos, do PIB utilizado para saúde pública, saindo de 3.8% e alcançando os 6%. Além disso, propões criar espaço no orçamento para recursos com efeito redistributivo — taxando lucros, dividendos e grandes fortunas —, extinguir o orçamento secreto e reconfigurar o orçamento federal de maneira mais equânime (link). 

A proposta sobre um novo financiamento parte do princípio de que o teto de gastos fere o pacto firmado no surgimento do SUS, em 1988, além de que não faz sentido, em um momento de crise, o investimento em saúde ser diminuído (link). Muito ainda vai se desenrolar dentro desse debate e prometo voltar a ele.

O direito à saúde está previsto na constituição. Todos os direitos que temos acesso hoje foram e vêm sendo construídos com muita luta e mobilização social, e, caso não estejamos atentos e fortes, podemos perdê-los sem o menor debate na população.

Para encerrar, a frase de Silvio Almeida dita recentemente, “O sistema único de saúde deveria ser a grande bandeira da civilidade brasileira.” 

 

REFERÊNCIAS:

(1) SERVO, L. M. Financiamento do SUS e Covid-19: histórico, participações federativas e respostas à pandemia. ENSAIO • Saúde debate 44 (spe4) 23 Ago 2021. Disponível aqui

Site Outra Saúde – Texto Caminhos para financiar o SUS de que o Brasil precisa

 

Podcast com a fala do Silvio Almeida – O Assunto – Bolsonaro e os sentidos da Necropolitica

 

Imagem de capa fonte: link