Star Trek: Sem Fronteiras finalmente chegou ao cinemas brasileiros. A terceira aventura cinematográfica da série retomada por JJ Abrams carrega a missão de se aventurar em territórios desconhecidos pela primeira vez, a fim de andar sozinho e sem fazer referências à cronologia original. Teria ele conseguido criar enfim uma identidade própria, mesmo sendo desta vez comandado por outro diretor?

P.S.: leia sem medo, desta vez temos zero spoilers.

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Star Trek é mais do que uma série de TV ou de cinema, é um manifesto. Um exercício de imaginação e esforço criado por Gene Roddenberry com um intuito: mostrar a força da união frente às adversidades, capaz de superar todas as diferenças.

Em 1966, em plena Guerra Fria, com os EUA pegando fogo (quase que literalmente) com as disputas raciais, onde Martin Luther King defendia a união entre as pessoas independente de credo, cor, gênero ou nacionalidade, foi ao ar na CBS uma série com um elenco surpreendentemente diverso: ali estavam no mesmo nível um russo, um japonês (lembrando que só haviam  passado 21 anos do fim da WWII e as rusgas entre os Estados Unidos e o Japão ainda não estavam cicatrizadas),uma mulher negra (sendo que Nichelle Nichols foi convencida a permanecer em Jornada nas Estrelas pelo próprio Luther King, e acabou influenciando uma garotinha ao ver pela primeira vez na TV “uma negra que não era uma empregada”. Seu nome? Whoopi Goldberg) e um alienígena.

Todos tratados de igual para igual, em posições de comando e cujas diferenças eram irrelevantes. Ali eram todos membros de uma tripulação em uma missão, com a missão de desbravar o espaço desconhecido. E todos nós viajamos décadas com Kirk, Spock, Uhura, Sulu, McCoy, Scotty, Chekov e muitos outros.

A franquia Star Trek teve cinco séries, dez filmes (seis da série original e quatro da Nova Geração) e um determinado momento, o gás acabou. Jornada nas Estrelas: Nêmesis (2002) foi muito mal de bilheteria e a série Enterprise não estava dando audiência, e então CBS e Paramount tomaram uma decisão dura em 2005: interromperam tudo. A franquia foi para a gaveta e lá permaneceu por apenas quatro anos, mas para muita gente parecia uma eternidade. E se considerarmos que a TOS foi cancelada após a terceira temporada e nunca concluiu sua missão de cinco anos nas telas (a série animada é considerada o quarto ano) isso é algo que sinceramente poderia acontecer.

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Precisou JJ Abrams colocar a mão na franquia e resgata-la em uma nova série para o cinema, mas como mexer num universo tão rico? Ele teve a genial e ao mesmo tempo controversa ideia de divergir as linhas temporais, criando assim uma realidade alternativa em que poderia criar à vontade. Tudo o que os fãs mais antigos conhecem e amam permanece inalterado, e a nova linha permite explorar os personagens clássicos de outras formas.

Os dois primeiros filmes tiveram a preocupação de situar Kirk, Spock, Uhura, Bones e cia. em uma realidade diferente onde alguns eventos seriam semelhantes, outros completamente diferentes (a destruição de Vulcano, o relacionamento um tanto conturbado entre o capitão e seu primeiro oficial, o fato dessa nova linha de tempo contar com dois Spocks, o novo de Zachary Quinto e o original vivido pelo saudoso Leonard Nimoy, o despertar de Khan Noonien Singh no segundo filme em circunstâncias totalmente diferentes da série, etc.), e isso posto era hora de trilhar um caminho diferente, definir uma identidade própria. É o que temos em Star Trek: Sem Fronteiras.

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Muita gente expressou preocupação quando Abrams revelou que não dirigiria esse filme (ele anda ocupado com jedis e siths…) e a missão caiu no colo de Justin Lin, de Velozes e Furiosos. Todos temiam que o filme se focaria mais na ação e menos no tom aventuresco característico, mas isso não ocorreu.

Claro que o filme, tal qual os dois anteriores tem muito mais ação do que todas as obras anteriores, mas isso é natural. O importante é que Lin teve o cuidado de manter o que faz de Star Trek tão especial no mesmo lugar, e dessa forma Sem Fronteiras é uma aventura digna da TOS. Sem exageros.

Como todo mundo já conhece os personagens (e estou falando dos novos fãs), o filme se concentra em explorar as psiques principalmente do capitão James T. Kirk (Cris Pine) e do sr. Spock (Quinto), ambos preocupados com seu próprio futuro e que os leva a tomarem decisões duras.

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Os outros oficiais também desempenham papéis importantes, desde o navegador Pavel Chekov (Anton Yelchin) à tenente e oficial de comunicações Nyota Uhura (Zoë Saldana), passando pelo dr. Leonard “Bones” McCoy (Karl Urban), que várias vezes atua como a consciência e elo entre Kirk e Spock. O piloto da Enterprise Hikaru Sulu (John Cho) é aquele em que todos confiam quando tudo o mais falha, não a toa é o terceiro na escala de comando. Como Kirk disse certa vez sobre sua filha Demora, piloto da Enterprise-B no universo original, “não seria uma Enterprise sem um Sulu no leme”.

Porém tudo é posto de lado quando um problema maior surge: o vilão Krall, vivido por um irreconhecível Idris Elba é um poço de ódio e ressentimento contra a Federação, e ele possui fortes motivos para lançar um ataque avassalador contra os planetas unidos.

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A tripulação da Enterprise encontra então na misteriosa alienígena Jaylah (Sofia Boutella, a Gazelle de Kingsman: Serviço Secreto) uma valorosa aliada: ela conhece os métodos de Krall e sua ajuda ajuda será inestimável. Fora que ela forma uma dupla com Scotty (Simon Pegg, que escreveu o roteiro com Doug Jung) muito divertida, já que oficial de engenharia adora destilar seu notório humor britânico.

O filme tem uma pegada que equilibra bem os momentos tensos, leves, divertidos e tristes. O filme faz uma, mais do que merecida, homenagem à Anton Yelchin, que faleceu tragicamente logo após a conclusão das filmagens. Chekov recebeu mais destaque, é importante nos eventos que se desenrolam e demonstrou uma desenvoltura já evidenciada nos dois filmes anteriores, mas em Sem Fronteiras ele pôde brilhar.

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É triste demais pensar que ele foi como uma supernova que atingiu o máximo de seu brilho antes de se apagar, mas é bem o que aconteceu. Imaginar numa Enterprise sem Chekov como navegador é terrível, mas pior seria ver outro ator vivendo o papel outrora vivido por Walter Koenig, cujos sapatos Yelchin calçou tão bem. Isso posto os produtores já adiantaram que ele não será substituído, o que é certo e justo.

E sim, há um momento dedicado à memória de Leonard Nimoy que vai arrancar lágrimas até do trekker mais chato, o que odeia os filmes novos e insiste em dizer que a série de JJ Abrams é qualquer coisa, menos Star Trek. Mal sabem eles que é por causa da retomada que teremos a nova série Star Trek: Discovery e o retorno das cinco clássicas, que serão disponibilizadas na Netflix até o fim do ano.

Conclusão

Star Trek: Sem Fronteiras é um filme com personalidade própria. Ele deixa de lado as referências à cronologia original e caminha sozinho, desbravando novas paragens por conta própria com leveza e coragem, como uma boa obra da franquia deve ser.

Nota: cinco de cinco embaixadores Spock: o filme está à altura de um episódio da TOS mas anda com as próprias pernas, sem se apoiar na realidade original.

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De agora em diante a tripulação desta USS Enterprise seguirá seu próprio caminho, em sua contínua missão de explorar novos mundos e novas civilizações, audaciosamente indo onde ninguém jamais esteve. E nós agradecemos porque iremos junto com eles vivendo novas histórias e aventuras, em um universo completamente novo e honrando o legado de Gene Roddenberry.

A única crítica dura vai não para o filme, mas para a Paramount Brasil: em pleno 2016, com uma pancada de serviços de streaming e soluções alternativas a produtora decidiu que não somos bons o bastante para receber uma estreia simultânea, e enquanto Star Trek: Sem Fronteiras chegou aos cinemas no dia 22/07 lá fora, ele só está dando as caras por aqui hoje, dia 1º de setembro. Sim, quase DOIS MESES DEPOIS. E sabe que dia ele chegará ao Home Video lá fora, caso as fontes estejam corretas? Dia 20/09.

Parabéns aos envolvidos, se não fosse Star Trek uma obra que DEVE ser vista no cinema não só pela qualidade mas também pelo legado, a Paramount Brasil mereceria sofrer um boicote só pelo desaforo, com todo mundo se dirigindo à Locadora do Paulo Coelho.