Oi, pessoas! Tenso aí? Tenso aqui, com esse segundo turno das eleições chegando… Quebrei a cabeça sobre qual abordagem dar ao texto já que tem tanta coisa para ser dita e, ao mesmo tempo, tanto ódio filtrando o que é ouvido. Aí encontrei essa passagem:

“O discurso é arriscado. Quem fala deve se comprometer e deve incorrer no risco de ser mal interpretado, desacreditado, ressentido, ignorado. Quem ouve também expõe-se a perigos. Pode ser enganado, ofendido, subvertido, levar um susto ou, pior de tudo, ficar entediado. Ainda assim, os riscos de não falar e não ouvir são maiores. São os riscos de isolamento, solidão e, por fim, ódio, violência e morte” (Berman,2013) [tradução minha]

Resolvi, então, me arriscar.

Sou linguista hoje, mas minha primeira graduação foi em História. E, confesso, o curso explodiu minha cabeça! Acredito que cada um tenha sua própria explosão em cursos diferentes e em momentos diferentes da vida, mas era 2002 e eu começava a entender que as coisas não precisavam ser como sempre tinham sido. Foi quando comecei a questionar o meu “normal”.

Eu comecei a perceber que eu andava na rua naturalmente olhando para o chão, com medo de que uma troca de olhar ou um sorriso simpático sugerissem algo que não “deviam”. Eu comecei a me dar conta de que eu automaticamente julgava as roupas de outras mulheres e, consequentemente, seus comportamentos. Comecei, inclusive, a entender a não aceitação dos outros com relação ao meu corpo. Enfim, comecei a entender que meu normal não me fazia bem.

Foi nessa época que entrei em contato com conceitos como normatização, legitimação, ideologia, hegemonia… ufa!!… um monte de nome feio e que parece ter um papel bem importante no momento em que estamos vivendo.

Quando nascemos, crescemos e vivemos em certa sociedade somos automaticamente inseridos em uma engrenagem que já está rodando há muito tempo e que tem regras. Quando crianças, somos educadas e aprendemos essas regras – na escola, na igreja, em casa – e, a medida que ficamos mais velhas, reproduzimos naturalmente os comportamentos que nos são ensinados. E tudo bem! É isso aí! Essa é a vida, o dia-a-dia. É tudo tão normal que naturalizamos esses comportamentos. Ou seja, as coisas são como são, sempre foram assim e, consequentemente, essa é a forma certa de se viver e de ser: esse é o comportamento natural.

Só que, ao estudar a história (no meu caso), vemos que tem um moooonte de coisas por trás disso. Existem crenças enraizadas de certo e errado, de bom e ruim, feio e bonito que compõem a ideologia de um povo (tem outro texto meu sobre isso). Um povo é diverso e pode acreditar em muitas coisas, então é possível ter muitas ideologias ‘acontecendo’ ao mesmo tempo. O que dita qual é a “melhor” ou a “certa” é a hegemonia, que é quando uma parcela poderosa da sociedade acata esta ou aquela ou aquela outra ideologia. Digo ‘poderosa’ porque é essa parcela que vai, por exemplo, criar ou mudar leis.

“O poder dos grupos dominantes pode estar integrado a leis, regras, normas, hábitos e mesmo a um consenso geral, e assim assume a forma do que Gramsi denominou “hegemonia” (Gramsi, 1971)” (VanDijk, 2008)

Enquanto a crença maior era a de que somos todos iguais, a constituição dizer que todos temos os mesmos direitos era suficiente. Com o passar das décadas, estudos foram mostrando que uns são “mais iguais que outros”. (Já ouviu isso?) Percebe-se que, dentro da ideologia hegemônica há problemas. Luta-se por muito tempo até que a mudança seja acatada, como foi, por exemplo, com a transformação do racismo em crime ou a percepção de que mulheres são assassinadas pelo fato de serem mulheres.

Só que o mundo e as ideologias vigentes não mudam de uma hora para a outra porque uma lei foi criada – o processo é lento. As diferentes ideologias coexistem dentro da própria população e disputam espaço na cabeça das pessoas.

Pensem comigo: em 1934, a lei das cotas propunha um branqueamento da sociedade com a restrição de determinados imigrantes. Meus avós eram novinhos nessa época, o que significa que esse era o “normal” deles. Pessoas que já são mais velhas e viveram mais tempo com um certo “normal” costumam achar mais difícil se acostumar com o novo. Já uma criança que nasça agora em uma família que já aceite a mudança (racismo é crime!) tratará o assunto com mais naturalidade, até que o comportamento se normatize e outros questionamentos surjam. Mas a “meiúca”, o meio do caminho entre uma coisa e outra, é bem complexa. (By the way, se a questão racial te interessa sugiro fortemente o episódio do Viracasacas podcast com Ale Santos)

“As mudanças que ocorrem no presente dos atores sociais é, portanto, saturada com expectativas e experiências acumuladas. As ideologias têm frequentemente sido descritas como vindo uma seguida de outra, de forma que, por exemplo, a obsessão do Antigo Regime pela honra foi substituída pela paixão da revolução por igualdade; mas pode-se argumentar que mais frequentemente elas são cumulativas do que sucessivas” (Andress & Wahnich, 2008) [tradução minha]

O que temos visto nos últimos 15 anos, eu diria, é uma aceleração de uma quantidade imensa de mudanças. Dei exemplos relacionados à mulher e ao negro, mas várias minorias têm reivindicado seu espaço e seus direitos. Claramente, o mundo não está bom ainda, mas parecia andar no sentido da aceitação da mudança: as pessoas já eram menos abertamente preconceituosas na rua porque sabiam que seriam repreendidas socialmente.  Apesar de o anonimato da internet ter dado voz para algumas pessoas expressarem seus preconceitos e lá encontrarem um eco – outras pessoas que pensavam da mesma forma – o problema não era tão sério quanto o que estamos vendo agora, nessas eleições.

Está havendo uma (re)legitimação do preconceito. As pessoas perceberam que uma parte da parcela poderosa da população pensa como elas, consequentemente, elas não podem estar tão erradas assim, certo? Na verdade, elas estiveram certas esse tempo todo e estavam sendo tolhidas, reprimidas em sua forma de pensar. É aqui que mora o perigo.

Como consequência desta legitimação do preconceito, temos a legitimação da violência, porque essas pessoas se sentem respaldadas para agir da forma como quiserem, inclusive com violência, porque era assim que faziam antes de serem “reprimidos” por uma ideologia nova que estava predominando.

Mesmo com a descrença das pessoas

E é aqui que eu chego, finalmente, no título do artigo: o medo.

Descrição da imagem: sombras de alguém correndo e uma mão tentando alcança-lo. fonte

Apesar das conquistas dos últimos anos, vemos nessa eleição o medo de se perder o poder de fala, esse lugar de fala, o espaço (mesmo que ainda pequeno) de se manifestar, de existir na sociedade.

Há uma descrença (espero da maioria) das pessoas que pretendem votar contra o Haddad de que isso realmente aconteça, há a crença de que muito já mudou e seria impossível retroceder. Mas como eu disse, os processos de mudança são lentos. E essa legitimação de preconceitos e violências pode ser um passo em direção a isso tudo sim. Um passo. Pode ser. Porque, para haver qualquer mudança – boa ou ruim – primeiro é preciso legitimar discursos que guiarão as atitudes que virão. Nesse caso, a legitimação vem do apoio de mais de 50% da população nas urnas.

Como explicado antes, as ideologias são como veias pulsantes que permeiam o corpo da sociedade, elas estão ali, mas a gente não vê o tempo todo, é preciso olhar com cuidado, usar instrumentos.

Descrição: veias e artérias. fonte

Infelizmente, nessas eleições estamos sangrando, metaforicamente e não metaforicamente.

 

Referências:

Andress, D; Wahnich, S. How should historians deal with extreme politicam change and political violence? In: Gildea, R; Simonin, A. Writing Contemporary History. Londres: Hodder Education, 2008.

Berman, Harold. Law and Language: Effective Symbols of Community. Witte, J (ed.) Cambrige: Cambridge University Press, 2013.

VanDijk, T. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2008

Fonte da Imagem de capa