Na parte 1 dessa análise, discorri sobre o clássico literário Em busca do tempo perdido, do francês Marcel Proust. 

Em busca do tempo perdido: é possível (re)encontrá-lo? (Parte 1)

A memória e os sentidos

Na primeira parte da obra, que é gigantesca por sinal, chamada No caminho de Swann, um velho já doente relembra a sua infância, seu apego com a mãe, sua dinâmica familiar, a vila em que morava, e todas as lembranças relacionadas aos cinco sentidos: visão, tato, audição, olfato e paladar — com foco maior neste último, já que é ao comer as madeleines, biscoitinhos de massa branca com raspas de limão, tipicamente franceses, que ele tem uma revelação, e em um lampejo, recobra inúmeras memórias da sua infância.

O protagonista busca um tempo que foi perdido, narrando reminiscências da sua infância em detalhes. Mas é necessária uma reflexão acerca do que essa busca significa.

A busca pelo tempo perdido: o resgate da felicidade

A busca pelo tempo perdido, essa investigação das memórias da infância, é, em última instância, uma busca pela felicidade. No fim das contas todo mundo quer ser feliz, e ele está procurando isso: “uma alegria poderosa” em que ele não se sente mais “medíocre, mortal”, como o próprio autor coloca.

Segue trecho do romance:

E recomeço a me perguntar o que poderia ser esse estado desconhecido, que não apresentava nenhuma prova lógica, e sim a evidência de sua felicidade, de sua realidade, ante a qual as outras se desvaneciam. Quero tentar fazê-lo reaparecer. Pelo pensamento, retrocedo ao instante em que tomei a primeira colherada de chá, e encontro a mesma situação, sem qualquer luz nova. Peço a meu espírito mais um esforço, que me traga ainda uma vez a sensação que escapa.

O narrador se apega a essa sensação, e não quer deixá-la escapar de maneira alguma. Aqui brota o confronto da memória voluntária e involuntária. A última se caracteriza por vir sem querer, mas também vai embora sem querer, e é isso que ele não quer. Não quer deixar que fuja das mãos dele.

Na distração, as memórias felizes

O fatídico episódio das madeleines veio ao narrador por meio de um lembrar involuntário. O mesmo depende da distração, depende do tempo livre. Quando não se está preocupado em fazer com que ela venha. Jeanne Marie Gagnebin, autora de Lembrar, escrever, esquecer, chama isso de dinâmica do esquecimento, ou seja, algo que nos surpreende e nos escapa. Quando nos surpreende, nos apegamos às memórias, mas sem querer elas podem nos escapar.

Gagnebin contrasta memória voluntária e involuntária e traz um elemento fundamental que é o voltar ao olhar da criança de outrora. Ela afirma que:

Proust opõe a ressurreição casual e involuntária dessas lembranças autênticas, vivas, frescas como o olhar da criança de outrora, ao vão esforço voluntário e inteligente do adulto que tentava lembrar de sua infância e só encontrava detalhes insignificantes e mortos.

A figura amada

O que também é essencial para se entender a obra é a busca pela figura amada e aqui não fica claro exatamente quem é — nem ao menos precisa ser uma pessoa só.

Em certo momento no Em busca do tempo perdido, esse sentimento é descrito com certa melancolia:

E ainda hoje se, numa grande cidade provinciana ou em um bairro parisiense que eu mal conheça, um transeunte que “me mostra o caminho” me aponta ao longe, como ponto de referência, uma torre de hospital, um campanário de convento que ergue a ponta de sua torre eclesiástica na esquina de uma rua pela qual devo seguir, por pouco que minha memória possa, de modo obscuro, achar nele algum traço semelhante à figura amada e desaparecida.

A busca pelo tempo perdido é também a busca pela figura amada desaparecida. Pode ser a própria mãe, ou então pode ser a mulher amada, que surge mais à frente na obra.

A dualidade do acaso

Ainda sobre a memória involuntária, entendemos que ela vem por acaso. Porém, há uma dualidade nesse acaso. Deleuze traz essa ideia, descrita por Walter Benjamin, de que o acaso realmente tem uma relação com a memória involuntária. O ócio, o perder tempo, são importantes. Concomitantemente, Benjamin aponta que é importante tentar viver a vida verdadeira, viver uma vida que vale a pena. Não somente se apoiar nas suas memórias, mas viver o presente. A vida verdadeira só vai ser vivida se você tiver coragem, e se sair do ócio. Ela se faz no movimento.

No texto de Benjamin, Sobre alguns temas em Baudelaire, afirma-se que, talvez por inatenção, preguiça ou covardia pode-se não viver a vida, a vida verdadeira, e isso é um grande perigo. Desse modo, é preciso ficar atento a essa dualidade do acaso, aos dois lados do perder tempo. E por fim, lembremos que o maior acaso dentre todos é aquele que é irremediável.

A luta contra o tempo e a morte

Gagnebin aponta que a essência, o âmago, o ponto-chave para se entender Proust é que toda narrativa dele é uma luta contra o tempo e a morte.

Ela coloca que:

Trata-se, no fundo, de lutar contra o tempo e contra a morte através da escrita — luta que só é possível se morte e tempo forem reconhecidos, e ditos, em toda a sua força de esquecimento, em todo o seu poder de aniquilamento que ameaça o próprio empreendimento do lembrar e do escrever.

Ela ainda afirma que:

Só se tornou uma obra de arte, isto é, uma criação que tem a ver com a verdade, porque se confronta com as dificuldades dessas revivências felizes, porque toma a sério a presença da resistência e do esquecimento, em última instância, a presença do tempo e da morte.

Assim, o lembrar e mais ainda o escrever é uma tentativa de luta contra o tempo e a morte, que é o acaso maior, que é derradeiro.

A dor de ser esquecido

Pode-se pensar que o esquecimento é a morte. Se esquecer e ser esquecido tem uma relação direta com a ideia de morte.

Há uma frase de autoria desconhecida que diz que um dia seremos um porta-retrato na casa de alguém, e depois nem isso. Proust é bastante provocativo nessa reflexão:

Há muito de acaso em tudo isso,

e um segundo acaso, o de nossa morte,

não nos permite muitas vezes

esperar por muito tempo

os favores do primeiro

É possível reencontrar o tempo perdido?

Voltando à pergunta inicial: Em busca do tempo perdido: é possível reencontrá-lo? Eu diria que é possível relembrar a sua infância, seus amores, os momentos felizes. É possível também recriar memórias e construir novas memórias. Foi esse o meu objetivo ao recriar as madeleines de Proust na minha pequena cozinha de apartamento.

Enquanto estivermos vivos podemos tentar viver intensamente. Mas não se delongue. Como Proust coloca; não se pode esperar muito tempo por esse segundo acaso.

Realmente, é impossível voltar no tempo, mas podemos ressignificar as nossas memórias e fazer o momento presente valer a pena: viver a vida verdadeira, como diria Benjamin.

(Falo um pouco sobre no vídeo abaixo)