“Em busca do tempo perdido” é um clássico. Ainda assim, muitos desconhecem a obra. A reflexão inicial proposta pela temática central do livro é de interesse geral, literatos ou não.

Pensando primeiramente no título do livro: Em busca do tempo perdido. Já que há uma busca, podemos pensar que talvez seja possível haver um encontro desse tempo perdido. Porém, a ideia de encontro presume que algo novo está por acontecer. Aqui, dentro da estética proustiana, a ideia é de reencontro, de encontrar mais uma vez algo que já foi vivido, mas depois perdido; que ficou no passado.

Quem faz esse trabalho de cavocar e desenterrar as coisas belas e singelas do passado, mais especificamente da infância, com o pesar que é característico da nostalgia, é Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust, mais conhecido como Marcel Proust.

O francês, nascido em 1871, faleceu em 1922, aos 51 anos, ainda bastante jovem. Fernando Py, que é biógrafo dele, afirma que Proust era asmático, sempre foi protegido pela mãe e infelizmente faleceu devido a uma bronquite mal cuidada.

A magnum opus foi o que levou seu nome para o mundo. A gigantesca criação literária conta com sete volumes e cada volume vale por um livro inteiro. As edições de bolso têm de 2500 e 3500 páginas. A primeira publicação foi em 1913 e hoje, mais de 100 anos depois, continuamos lendo e discutindo seus sentidos em inúmeros círculos literários. Falo mais sobre aqui: 

O foco desse texto é na primeira parte, que se chama “No caminho de Swann”. A história se passa em Combray, que é uma comuna, quase como se fosse um bairro, já que é uma região muito pequena localizada na Normandia, no norte da França. Proust inicialmente a descreve como uma cidade cinza e triste.

Logo no início do livro há uma cena um tanto impactante em que o narrador, um senhor doente, já de bastante idade, começa a ter sentimentos e pensamentos muito nostálgicos. O velho está deitado para dormir e ele anseia pela hora do amanhecer. Ele quer que amanheça logo porque não aguenta mais ficar deitado.

Quando um dos criados passa pelo corredor, o velho vê uma fresta de luz e acha que já amanheceu. Porém, ele percebe que o criado está passando com a última lamparina da noite. Esta é apagada e a casa toda vai dormir. A figura desse senhor decrépito é a de alguém que está vivendo uma vida realmente miserável, e por isso quer que o tempo passe logo.

… em mim não havia outra coisa que o sentimento da existência em sua simplicidade, primitiva, tal como pode vibrar no fundo de um animal, encontrar-se em maior nudez com o homem das cavernas; mas então a lembrança, ainda não era a lembrança do lugar em que me achava, mas, o de outros lugares aonde eu tinha vivido e aonde poderia estar. Descia até mim como um socorro que tivesse chegado do alto para me tirar de um nada, porque eu sozinho nunca poderia sair; em um segundo passava por cima de séculos de civilização, a imagem opaca vista das lamparinas de petróleo, das camisas com gola alta dobrada, foram recompondo lentamente os rasgos de minha personalidade.

Nessa citação do início do livro vemos o velho sofrendo. Ele simplesmente existe (“existência em sua simplicidade, primitiva”). Ele começa a tentar recobrar tais memórias felizes da infância, que “descem até ele como um socorro”. A nostalgia tem esse elemento, de se buscar um refúgio nas lembranças do passado. Uma possível definição é que seria um refúgio para o belo. É dessa forma que o narrador nos propõe uma viagem de reencontro com o passado, que é bastante intrincada, como bem descrito pela professora Jeanne Marie Gagnebin:

…não há reencontro imediato com o passado, mas sim sua lenta procura, cheia de desvios, de meandros, de perdas, que as frases proustianas mimetizam, atravessando as numerosas, diversas, irregulares e heterogêneas camadas do lembrar e do esquecer

Gagnebin aponta brilhantemente em “Lembrar, escrever, esquecer” como funciona esse ciclo, esse exercício de retomar a memória por meio da escrita. Ela se faz genial porque discorre acerca da complexidade que está na memória, com todos os seus desvios e camadas. Realmente não tem como ser um reencontro imediato.

Um dos meus objetivos principais aqui foi fazer uma análise da relação da memória com os sentidos porque isso é muito forte na narrativa proustiana. Eu trouxe um exemplo de cada um dos cinco sentidos: olfato, visão, tato, audição e paladar. Apresento então citações retiradas da obra representando cada um dos sentidos e a sua ligação com a memória. Comecemos com o olfato:

… subindo contra o meu coração, que desejava voltar para junto de minha mãe porque ela não lhe dera, ao me beijar, licença de me seguir. Esses degraus detestados que eu subia sempre tão triste, exalavam um cheiro de verniz que de certa forma absorvera e fixara esse tipo particular de mágoa que eu voltava a sentir todas as noites e que a fazia talvez mais cruel agora, porque, sob esse aspecto olfativo, a minha inteligência não mais podia tomar parte dela

Quando Proust se refere à inteligência aqui, trata-se da ideia da memória voluntária, ou seja, do esforço consciente de se trazer uma memória específica à tona. Nesse caso específico, o aspecto olfativo está completamente relacionado a uma memória de mágoa: o cheiro do verniz da escadaria que traz esse sentimento condoído. Nesse trecho também podemos ter uma ideia do apego que o protagonista tem com a própria mãe, o que é uma questão recorrente. O narrador fica em êxtase quando ele recebe qualquer atenção dela, como um beijo de boa noite. Ao passo que fica desesperado quando isso não acontece.

Esse apego, esse colo de mãe, está muito relacionado à nostalgia do velho contando a história dele na infância. Parece que ele quer voltar para o colo de mãe e ter essa sensação novamente. Realmente, é uma tentativa de retorno à infância.

Seguimos para um exemplo de memória atrelada à visão:

Enquanto minha tia se distraía com Françoise, eu acompanhava meus pais à missa. Como gostava da nossa igreja, como a revejo bem agora! O velho pórtico pelo qual entrávamos, negro, bexiguento como uma espumadeira, estava desviado e como que cavado profundamente nos ângulos…

Alguns lugares marcaram a vida do narrador, e ele consegue descrevê-los com perfeição na obra. As cenas descritivas, cenários, partes da casa, das ruas de Combray, estão ligadas ao sentido de visão.

O terceiro sentido analisado é o tato:

De modo que essas boas noites que eu amava tanto, chegava a desejar que viessem o mais tarde possível, para que se prolongasse o tempo de espera em que mamãe ainda não chegara. Às vezes, quando, depois de me haver beijado, ela abria a porta para ir embora, eu queria chamá-la, dizer-lhe “beija-me mais uma vez”, mas sabia que ela logo se mostraria zangada, pois a concessão que fazia à minha tristeza e à minha agitação ao subir para me beijar, levando aquele beijo de paz, irritava meu pai que julgava absurdo esse ritual…

O beijo da mãe é muito simbólico, pois retornamos àquela ideia da tentativa de retorno à infância, permeada pelo apego à figura materna.

O quarto sentido exemplificado aqui é a audição:

… era outro quarto, pequeno e de teto tão elevado, aberto em forma de pirâmide à altura de dois andares e parcialmente revestido de mogno, onde, desde o primeiro segundo, eu fora moralmente intoxicado pelo aroma desconhecido de patchuli, convencido da hostilidade das cortinas roxas e da indiferença insolente do pêndulo, que tagarelava bem alto como se eu não estivesse ali

O relógio (pêndulo) que faz um barulho alto está marcado em suas lembranças. Há também a descrição do aroma de patchulli, que conhecemos mais como capim-limão, mais um exemplo do olfato relacionado à memória nesta narrativa. Falo mais sobre esses quatro sentidos aqui:

Seguimos para o paladar e o célebre episódio das madeleines:

Ela então mandou buscar um desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleines, que parecem ter sido moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. E logo, maquinalmente, acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva de um dia seguinte igualmente sombrio, levei à boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço da madeleine. Mas ao mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim.

Comer o biscoitinho foi como um gatilho para ele, que fez com que lembranças e emoções muito intensas viessem à tona.

Devido à minha segunda formação em Gastronomia, decidi fazer as madeleines eu mesma. Queria que fosse uma experiência, para poder entender melhor o que era esse biscoitinho, e para entender o efeito que que ele causou no personagem. É uma massa de bolo branca, em que você adiciona raspinhas de limão. Como as forminhas são baixas, vira um biscoitinho. É uma massa pesada, rica, muito amanteigada. E não é à toa que ele come biscoito com chá, num café da tarde. É propício para isso mesmo. Mostro como ficaram nesse vídeo:

https://www.instagram.com/tv/CWJ-MNUoFYs/?utm_medium=copy_link

Tentando trazer para o contexto brasileiro, já que comida é cultura, tentei fazer um paralelo para ver o que isso ressurtiria em mim. Dentro da cultura brasileira talvez um bolo de fubá, bolinho de chuva, ou o cuiabano bolo de arroz, pudessem ter efeito semelhante. A ideia é de algo simples, mas feito com carinho, uma ideia de aconchego de mãe mesmo.

Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, mas ultrapassava-o infinitamente, não deveria ser da mesma espécie.

Na Parte 2 dessa análise, vou abordar a questão da memória e dos sentidos de forma mais aprofundada, a fim de entender melhor que busca é essa, que Proust se propõe a fazer no clássico “Em busca do tempo perdido”.