A cidade de Natal, no Rio Grande do Norte foi agraciada, no início de Maio, com mais uma edição do Congresso da Liga, o maior evento de oncologia do estado, organizado pela Liga Norte Riograndense Contra o Câncer.

A quinta edição, que ocorreu em 2017, focou em discutir imunologia, da prevenção ao tratamento. Já na sexta edição, que ocorreu em 2019, os participantes reuniram-se para discutir os impactos das inovações tecnológicas e dos avanços da oncogenética no diagnóstico e tratamento do câncer, também focando na Inteligência Artificial (IA).

Já em 2023, o tema foi inovação e transformação na saúde. O foco em tecnologia e em IA das últimas duas edições, como você irá ver no meu relato, não é nada surpreendente, dada a relevância da IA na saúde principalmente nas últimas décadas, mas fiquei contente de o maior evento de oncologia do estado estar antenado nas principais tendências e discussões da área dentro e fora do Brasil.

No segundo semestre de 2022, após quatro anos na França, onde fiz meu doutoramento nas áreas de IA e oncologia, voltei ao Brasil e lentamente venho retornando com as participações presenciais em eventos locais, parte inclusive da minha função como Developer Advocate do Nextflow para a América Latina e Caribe na Seqera Labs.

A oportunidade inicial de falar no VII Congresso da Liga sobre o Nextflow, tecnologia utilizada na identificação de variantes do SARS-CoV-2 (veja mais aqui), já foi super empolgante mas essa empolgação foi complementada mais tarde por vários outros convites interessantes dos quais infelizmente nem todos pude aceitar, mas culminou com duas palestras:

  1. O impacto da inteligência artificial na forma como fazemos a gestão na saúde
  2. Nextflow: O padrão ouro em análise de dados em saúde

E duas mesas redondas. Uma na qual os palestrantes da arena de inovação discutiram e responderam perguntas da plateia e do mediador, e uma com o tema “O impacto da inteligência artificial para os profissionais de saúde” (confira detalhes dos palestrantes do evento aqui).

O evento contou com um grande número de participantes e palestrantes e, infelizmente, não foi possível conferir todas as arenas, razão pela qual irei focar nas arenas de gestão e inovação, principalmente nas atividades que apresentei e discussões que surgiram a partir delas.

 

Nextflow

O Nextflow é tanto uma linguagem de descrição de fluxos de trabalho envolvendo tarefas que fazem usos intensivo de dados, como também um software para orquestrar esses fluxos de trabalho. É uma ferramenta livre, de código aberto e gratuita que teve seu desenvolvimento iniciado em 2013 e buscava, como ainda busca, resolver um dos grandes problemas da ciência, e que hoje também é comum na indústria: a dificuldade em replicar fluxos de trabalho/experimentos e a quase impossibilidade de reproduzir os resultados desses experimentos.

Tendo explicado isso, começa a fazer sentido porque foi tão utilizada durante a pandemia, permitindo a identificação e o monitoramento de variantes do vírus SARS-CoV-2 no mundo inteiro. Os fluxos de trabalho Nextflow contribuíam para que, independente de onde aquela amostra fosse analisada, os resultados seriam comparáveis, além de diminuir os custos,  e tornar o processo de análise muito mais eficiente.

Não só nessa palestra, mas durante todos os dias, foi muito interessante ver as arenas de gestão e inovação cheias e com pessoas das mais variadas formações participando, perguntando e discutindo os assuntos. Durante o evento, tive a chance de participar de discussões com atores políticos, profissionais da gestão pública e privada, cientistas, profissionais de saúde das mais variadas áreas, profissionais do direito, da engenharia, da área de programação, entre tantos outros profissionais diferentes e de áreas diversas.

Falar sobre o Nextflow para uma plateia menos técnica é um desafio, mas os diálogos após a apresentação me tranquilizaram na certeza de ter conseguido passar duas mensagens importantes:

  1. A existência e complexidade da crise de reprodutibilidade, e da calamitosa incapacidade de sequer conseguirmos repetir os passos de tantos estudos científicos, quem dirá encontrar os mesmos resultados;
  2. O fato de que existe mão de obra, tecnologia e material para te ajudar a mudar esse cenário, ainda que você não tenha conhecimento técnico avançado.

 

IA na Gestão na Saúde

Nessa palestra, eu quis sair um pouco do que era esperado, e que tanto foi discutido nessa arena e no evento em geral. Ainda mais, eu quis fazer questão de combater o famoso espírito vira-lata do brasileiro.

Tendo feito doutorado e ministrado aula para alunos de mestrado na Sorbonne Université, uma das maiores universidades do mundo, tendo trabalhado no Institut Curie, um dos maiores centros de pesquisa, tendo discutido ideias com grandes nomes da área e tudo mais… Usei desse “lugar de fala” para dizer que não, não precisamos ir tão longe para resolver nossos problemas.

Por quase 10 anos eu estive no Brasil me capacitando e participando de diversos projetos dos quais muitos deles estão mofando em gavetas. Diversos projetos que foram construídos com dinheiro público e, quando prontos, oferecidos de graça para instituições, prefeituras, mas que por falta de vontade política foram esquecidos. Vi isso com projetos que participei, e projetos que não participei, enquanto escutava que o Brasil não produzia ciência ou inovação, que precisávamos ir buscar lá fora.

Essa palestra foi uma coleção de exemplos de projetos na área de dados e IA que tinham potencial de revolucionar várias questões da saúde e da gestão da saúde no Brasil. Foquei no impacto, não de usarmos IA, mas de aproveitarmos a massa de alunos, professores e profissionais brilhantes que temos, não em Boston, nos Estados Unidos, mas em Natal e mesmo nos interiores do estado. Muitos profissionais que foram para fora se capacitar, e estão agora encostados, cheios de ideia e com poucas oportunidades de colocar suas ideias em prática e revolucionarem sua cidade, estado e país.

O Rio Grande do Norte conta com o Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde, com o Instituto Metrópole Digital, com o Instituto do Cérebro, e com tantos outros grupos, institutos, startups e empresas que têm um potencial enorme sendo desperdiçado, em parte também por uma cultura antissetor privado que ainda assola nossa academia.

A indústria não vai revolucionar o Brasil. A academia não vai revolucionar o Brasil. A política não vai revolucionar o Brasil. A elite não vai revolucionar o Brasil. O povo não vai revolucionar o Brasil. É a união desses grupos que tem potencial para revolucionar nosso país, e se não conversarmos e formarmos parcerias, seguiremos desperdiçando o potencial, não só de jovens, como de pessoas formadas a um alto custo ao longo de várias gerações. E, claro, comprando tecnologia de fora nas emergências porque não fizemos o dever de casa.

O impacto que em boa parte da palestra discuti sequer foi o da IA, mas o de sequer termos a IA em prática no horizonte para podermos discutir, em parte por questões que apresentei na palestra como a qualidade de nossos dados, facilidade de acesso e manuseio.

 

Mesas redondas

As mesas redondas foram muitíssimo interessantes. A da arena de gestão que buscava discutir o impacto da inteligência artificial para os profissionais de saúde, as competências essenciais na área da saúde e transição de carreira foi formada por mim, pela Priscila Carla Silveira Menezes (Doutora em Educação e autora do livro Transformando Experiências de Aprendizagem com ChatGPT), pelo Rodrigo Neiva (Doutor em Comunicação em Semiótica e Diretor de Integração Curricular na Vice-Presidência de Estratégia Acadêmica da Anima Educação) e mediada pela Andréia Nunes (Psicóloga e Assessora de Gestão de Pessoas da Liga Contra o Câncer).

Foi um bate papo super legal em que cada um de nós compartilhou como já fazemos uso de ferramentas de IA no dia a dia e como profissionais de outra área poderiam fazer uso também dessas ferramentas para não ficarem para trás nessa corrida pela IA que já está acontecendo.

A formação bem heterogênea da mesa trouxe visões diferentes e complementares, o que entregou uma experiência muito positiva para os presentes. Eu particularmente fiquei bem impressionado com como o Rodrigo Neiva tem contribuído para trabalhar os currículos formativos nas instituições do grupo Anima, fazendo da formação universitária muito mais do que ir para aula, sentar a bunda na cadeira, fazer a disciplina da vez e ir embora.

A mesa redonda da arena de inovação, até pelo número de participantes, passou por vários temas, mas um dos principais foi a situação complicadíssima que o modelo tradicional de universidade está passando.

Conteúdo nunca foi o único propósito de se fazer ensino superior, mas na prática é boa parte do que temos hoje, principalmente em tempos de pandemia com ensino à distância e pouca socialização. Isso, somado a oportunidades de emprego bem remuneradas muito cedo na carreira na área de tecnologia, faz com que, para muitos, não faça mais sentido fazer ensino superior.

Essa não é uma ideia nova, mas uma que tomou muita força nos últimos anos e tem cada vez mais adeptos e defensores. Diversos professores de instituições de ensino superior estiveram presentes e compartilharam de suas preocupações e a mesa foi unânime no sentido de que as instituições de ensino superior precisam urgentemente fazer algo para sobreviver a essa nova realidade. Além disso, o pessimismo esteve presente no sentido de que, até pelo próprio formato das universidades, é improvável que algo seja feito a tempo.

 

Síndrome do Escafandro

As arenas de Gestão e Inovação tiveram conteúdos e discussões interessantíssimos, mas uma das palestras mais surpreendentes foi a ministrada pelo Francisco Irochima, Doutor em Ciências da Saúde, professor da UFRN e envolvido no cenário de startups e inovação, com o título Síndrome do Escafandro. Irochima trouxeu uma apresentação brilhante com começo, meio e fim. Uma história muito triste e difícil coroada com um final feliz e de sucesso.

O Irochima compartilhou, com a devida autorização, o caso de um paciente que foi acometido por uma versão grave da síndrome de Guillain–Barré. O paciente sequer movia os olhos, embora seguisse ouvindo e vendo. No entanto, como não conseguia abrir as pálpebras ou mover os olhos, acabava na prática sem conseguir fazer uso de sua visão.

Tendo dito isso, você deve estar se perguntando: Ué, como sabiam que ele via e ouvia? Porque, por alguma razão que ninguém soube explicar… ele ainda tinha alguma movimentação nos pés. As conversas basicamente aconteciam e ele respondia balançando os pés. O pé direito para sim, o esquerdo para não, entre outras movimentações acordadas com sua esposa e equipe de saúde.

Essa situação foi totalmente inesperada. Pacientes com algum tipo de distrofia muscular começam a perder a força e controle justamente nos pés e mãos. É impensável alguém não conseguir mover sequer os olhos e ainda assim poder mover o pé. Essa raridade era portanto tanto uma coisa ótima como uma ruim, já que não existia nenhuma tecnologia no mercado que pudesse ajudá-lo. Frente a isso, convidaram o Irochima para tentar trazer alguma luz à situação.

A solução foi um pedal acompanhado de botões nas laterais feito especificamente para os pés do paciente e calibrados nos tipos de movimentações que ele conseguia fazer e grau de controle e força. Esses pedais se comunicavam com um dispositivo que, de acordo com as combinações de movimentos, emitiam palavras e frases através de alto-falantes, permitindo que o paciente pudesse se comunicar.

Como o paciente era profissional de TI, acabou sendo mais fácil ensiná-lo a operar o equipamento e, em 30 dias após o Irochima ter sido chamado, foi possível ter um protótipo em funcionamento com ajuda da startup NatalMakers.

Se você pensou que esse é o final feliz da história, errou! Essa conquista foi muito importante, e claro que recheada de felicidade, mas a boa notícia é que o paciente está melhor, e recuperou boa parte dos seus movimentos. O Irochima encerrou assim sua palestra, e assim eu encerro esse post 😄