“The price Newton had to pay for being a supreme intellect was that he was incapable of friendship, love, fatherhood, and many other desirable things. As a man he was a failure; as a monster he was superb”

[“O preço que Newton teve que pagar por ter um intelecto supremo foi o de ser incapaz de amizade, amor, paternidade e muitas outras coisas desejáveis. Como homem ele era um fracasso; como um monstro ele era esplêndido”]~ Aldous Huxley about Sir Isaac Newton

“I do not socialize because social encounters would

distract me from my work and I really only

live for that, and it would shorten even

further my very limited lifespan”

[Não socializo porque encontros sociais me distrairiam

do meu trabalho e eu realmente vivo apenas

para trabalhar, e isso abreviaria ainda mais

meu já limitado tempo de vida]

~ Albert Einstein

‘It seems that for success in science

or art a dash of autism is essential.”

[Parece que para ser bem sucedido na ciência

ou arte é essencial algum traço de autismo]  

~ Hans Asperger

“Nunca vi muita utilidade para a imaginação,

prefiro fatos”

~ Sr. Holmes

A ficção está cheia de personagens que cultivam uma estranha combinação de genialidade e excentricidade, aliada a doses cavalares de introversão e singularidade social. Às vezes chegam a valorizar tanto a razão que perdem um pouco de emoção e transparecem certa grosseria. Gostam da solitude. São tão hiperfocados em seus interesses que parecem alheios a coisas que para a maioria das pessoas são triviais, como comer ou dormir.

Sherlock Holmes é um exemplo arquetípico disso. Seu poder de dedução é surreal. Detetive nato. A despeito de sua tremenda habilidade dedutiva, Sherlock parece meio inadequado nas interações sociais ou assuntos não relacionados à sua expertise. Suas maneiras sinceras e diretas de expor seus pensamentos podem soar como falta de tato, arrogância. Sua dedicação excessiva à investigação faz com que ele saiba todos os tipos de fumaça de cigarro que existem, mas não que é a Terra que gira ao redor do Sol, não o contrário.

Sr Fantástico: “Você leu aquele artigo sobre autismo sutil que te mandei? Síndrome de Asperger…?” “Alta inteligência, alta capacidade de conquistas, falta de empatia, busca focada por interesses solitários…”

Vamos aos quadrinhos. Reed Richards, o Sr. Fantástico, do Quarteto Fantástico, tem muito de Sherlock Holmes. Ele é um dos personagens mais brilhantes do universo Marvel. Talvez como consequência de seu elevado poder analítico, Richards frequentemente toma decisões que parecem mais justas de um ponto de vista utilitarista do que propriamente do ângulo mais pessoal, emocional. Utilitaristas morais têm fama de racionais demais.

Por exemplo, o Quarteto ganhou seus poderes numa viagem ao espaço. A viagem era arriscada do ponto de vista técnico, mas Richards insistiu, não admitiu ser contrariado. Foi ao espaço levando uma jovem, seu irmão adolescente e um amigo! Não era só teimosia e orgulho intelectual de gênio. Richards parecia disposto a sacrificar vidas individuais pelo bem maior. Sua moral soa bastante utilitarista e seus métodos, nada ortodoxos.

Isso lembra muito Spock, de Jornada nas Estrelas. Num inédito crossover daria para dizer que Holmes é um híbrido de vulcano com Homo sapiens. Raciocínio analítico apurado, moral utilitarista, literalidade, pragmatismo, peculiaridades na vida social e falta de saco para assuntos triviais. São algumas características que, talvez em diferentes intensidades, unem esses personagens.

Assim como Holmes, Richards também parece ter certa dificuldade de entender piadas. Suas mentes estão tão preparadas para analisar fatos, chegar a conclusões, que parecem considerar qualquer informação como literal, não como mera piada, ou aquela famosa conversa de bar em que ninguém está dizendo nada “analisável”. Quadrinho: “Me auto diagnostiquei com um leve autismo, para o qual estou atualmente inventando uma cura. Fora isso, Alyssa, eu te garanto que sou são”

Gênios desajustados são um clichê dos quadrinhos, você pode estar pensando. Mas a pergunta é se isso corresponde à realidade em algum nível substancial.

Alguns pesquisadores têm evidências e argumentos persuasivos que parecem mostrar que sim, pelo menos alguns gênios históricos parecem ter sido cientistas, artistas ou filósofos, digamos, singulares. A conjunção dessas características descritas até agora seria algo típico de um quadro chamado síndrome de Asperger, ou autismo leve, segundo a ideia atual de que autismo é um espectro que vai de traços menos até mais intensos.

É muito difícil e um tanto duvidoso fazer diagnósticos de personagens históricos. Mas ainda assim é possível investigar registros biográficos e tentar identificar se há evidências de traços associados à síndrome. Para Ion James, em Asperger’s Syndrome and High Achievement: Some Very Remarkable People, esse procedimento levanta indícios persuasivos de que Michelangelo, Isaac Newton, Henry Cavendish, Albert Einstein, Marie Curie e sua filha Irène Joliot-Curie, Wittgenstein, Paul Dirac, Alan Turing e Ramanujan podem ter sido aspies — apelido carinhosamente dado às pessoas com síndrome de Asperger.

A síndrome de Asperger

Autismo? Espectro? Síndrome de Asperger? Do que você está falando? Antes de mais nada é bom lembrar que existe um scicast inteirinho só sobre esse assunto. Aqui vou explicar apenas o necessário para entender por que supõe-se que algumas pessoas importantes para a história do conhecimento podem ter tido a síndrome. Existem muitas suspeitas sobre várias pessoas, algumas já citadas, mas por questões de concisão não vou poder falar sobre todos, nem me aprofundar muito em cada um. Mas ao longo do caminho citarei referências para o leitor mais interessado.

Hans Asperger

Basicamente, síndrome de Asperger é um quadro associado às mesmas características do autismo clássico, mas numa forma muito mais sutil. Tanto que inicialmente autismo clássico de Kanner e síndrome de Asperger eram diagnósticos distintos — Hans Asperger chamava o quadro de “psicopatia autística”.

O clichê popular associa autismo apenas aos casos mais graves (muito embora esteja surgindo um novo clichê popular, o que de que autistas são todos gênios em matemática). Nesses casos, a dificuldade na linguagem chega ao ponto de impossibilitar a fala. Pode haver desempenho cognitivo extremamente baixo ou extremamente alto. Movimentos repetitivos, como se balançar, pode ser calmante. Pode haver evitação total de contato social e etc.

Na síndrome de Asperger, esse quadro pode ser tão sutil que ninguém diria se tratar de autismo, baseado no estereótipo. São aqueles indivíduos diferentes, “meio estranhos”, introvertidos, tímidos, não muito hábeis na arte de jogar conversa fora — Olhe Nos Meus Olhos, de John Elder Robinson, fala bastante sobre ser “levemente estranho”.

São três as áreas principais afetadas nessa síndrome: habilidades sociais, comunicação, atividades e interesses repetitivos, estereotipados e limitados. Aspies costumam ser socialmente atípicos. O pensamento rígido e metódico costuma se refletir na dificuldade de entender piadas e metáforas, mas também na presença de um pensamento mais analítico do que tipicamente em neurotípicos (quem não é aspie). Aspies parecem ser mais sistemáticos. Resumidamente, conversas de bar são complicadas. É comum ouvir coisas como “você tem que relaxar mais”, mas, quem disse que a pessoa não está relaxada? Ela apenas funciona de modo diferente. Seu modo neurotípico de relaxamento não é igual ao dela.

Personagem aspie da série Atypical

A série Atypical, da Netflix, já com segunda temporada, mostra esses sinais de maneira muito divertida.

Essas peculiaridades sociais acabam impactando de forma bem concreta. Por exemplo, aspies costumam ter dificuldade de manter contato visual numa conversa. Olhar os olhos de uma pessoa pode causar desconforto. Também é comum causar sobrecarga. Não dá para prestar atenção no conteúdo da fala do interlocutor e ao mesmo se esforçar para manter o contato ocular. É informação social demais para processar.

Aspies também costumam ser bastante focados em tópicos específicos, restritos. Às vezes isso é chamado de hiperfoco e está intimamente ligado às estereotipias. Eles podem ser tão intensamente focados num tópico ao ponto de deixarem de lado tarefas básicas do cotidiano, como se alimentar e dormir. O interesse é perseguido com uma obstinação que beira à obsessão.

Eles são sistemáticos, o que impacta diretamente nos tópicos pelos quais se interessam e em como funcionam no cotidiano. Rotina e previsibilidade é algo que buscam intensamente, ao contrário da maioria das pessoas. Não poder planejar e seguir meticulosamente esse planejamento gera desconforto.

Autistas em geral gostam de padrões, e costumam se cercar deles. O excesso de planejamento se encaixa muito bem na necessidade de perseguir hiperfocos. Se suas atividades e seus pensamentos estão na maior parte do tempo ocupados com seus assuntos prediletos, ajuda bastante organizar o cotidiano e ser repetitivo para liberar espaço para fazer o que se quer.

Às vezes essas peculiaridades são muito sutis. Aspies conseguem aprender com o ambiente social e em certo sentido se ajustar. Dá para aprender a manter algum contato visual porque a certa altura da vida sabem que isso é socialmente desejável. Podem aprender a modular de forma menos atípica, às vezes monótona, a entonação da voz para ficar igual aos neurotípicos.

Também é comum que publicamente aprendam que não é tão seguro falar exageradamente de seus hiperfocos. Por isso, alguns aspies passam a impressão de não quererem contato social, de serem calados demais. Na realidade eles só aprenderam a se proteger ao longo do recebimento de vários feedbacks negativos durante a vida.

O espectro autista é muito diverso. Não existe um autista igual a outro. Por isso o processo de diagnóstico, se bem feito, é demorado. Dependendo do caso, essas características são tão sutis que podem soar apenas estereótipos irreais.

Por ser um autismo mais leve do que a maioria dos quadros do espectro, aspies não têm prejuízo na linguagem e têm inteligência normal ou acima da média. Aliás, é muito comum que aspies tenham a chamada dupla excepcionalidade, comorbidade entre autismo e super dotação.

Alguns têm atraso na fala, outras começam a falar até precocemente. Mas em geral tendem a desenvolver vocabulário avançado para a idade, capaz de impressionar os adultos. É muito comum que crianças aspies tenham interesses muito específicos para a idade. Por exemplo, uma criança com hiperfoco em robótica pode ter significativa dificuldade de socializar, já que vai ser difícil encontrar amigos para compartilhar o interesse.

A socialização autista está mais ligada a compartilhar interesses para se conectar emocionalmente do que o contrário.

Hereditariedade é extremamente importante na explicação do espectro autista. Por exemplo, sabe-se que o espectro autista está associado a um conjunto de genes, que por sinal são os mesmos ligados a níveis elevados de inteligência. Possivelmente, o espectro autista é uma consequência da seleção de genes ligados à alta inteligência da espécie humana.

Traços autísticos não patológicos na família (é controverso usar o termo “patológico” para o autismo graças à discussão da neurodiversidade), como altos níveis de sistematização, parecem associados à presença da síndrome em gerações futuras. Também existe relação entre profissão e traços autísticos, que parece mediada pelos mesmos genes. Quanto mais traços autísticos, mais as pessoas tendem a escolher áreas que oferecem chance de usarem seus níveis altos de sistematização. São áreas como matemática, engenharia, informática, lógica. Não à toa, o autismo parece ser mais prevalente em homens (embora o número de mulheres autistas venha sendo subestimado), que por sua vez parecem ter maior preferência por essas profissões, e que também possuem maiores níveis de sistematização do que as mulheres (já expliquei isso em outro texto).

Aspies na ficção

O fandom de Sherlock Holmes e de Reed Richards há tempos vêm especulando que eles são aspies. Na famosa série da BBC, Holmes especula sobre si mesmo dizendo que deve ser um tipo de “psicopata de alta funcionalidade”, o que talvez seja um termo impreciso para os dias atuais mas que se refira ao mesmo tipo de quadro de crianças introvertidas, hiperfocadas e “arrogantes” que Hans Asperger estudou em Viena em meados do século XX.

Reed Richards já foi roteirizado diagnosticando a si mesmo com síndrome de Asperger.

A vida real também parece estar repleta de pessoas brilhantes com características típicas do espectro. Nos próximos parágrafos vou mencionar personagens históricos suspeitos de se enquadrarem em partes mais leves do espectro autista. Meu objetivo não é me alongar excessivamente na biografia de nenhum deles, então mencionarei brevemente por qual motivo se tornaram famosos em suas devidas áreas de atuação. Depois, vou direto para as comparações com a síndrome de Asperger.

Cientistas singulares

Michelangelo foi um talentoso artista do Renascimento. Realizou diversos trabalhos extraordinários para o próprio Papa. Era contemporâneo de Leonardo Da Vinci, com quem travava muitas discussões, muitas vezes no meio da rua. A fama de arrogante e estranho o precedia.

Capela Sistina pintada por Miquelangelo. Há quem enxergue obstinação aspie como necessária para realizar um trabalho como esse; a Renascença seria ambiente fértil para pessoas com esses traços trabalharem e prosperarem na arte

Michelangelo não era um cara fácil. Mais tarde, historiadores viriam a contar que o artista era um cara tão ranzinza que ninguém queria ser seu discípulo. Reciprocamente, Michelangelo não parecia querer alunos, mas sim ajudantes para fazer certos tipos de trabalhos que ele mesmo não tinha paciência de executar. Seu próprio mentor, Giugulano da Sangallo, o descreveu como inábil em fazer e manter amizades, um sujeito solitário e melancólico, incapaz de demonstrar suas emoções.

Vasari, outro proeminente artista, dizia que Michelangelo era um daqueles gênios que necessita de isolamento para realizar grandes feitos. Isso certamente não se aplicava a um contemporâneo seu, Raphael. Raphael era jovial, porém genial, e às vezes zombava de Michelangelo e sua solidão. O contraste era tanto que Edmund Burke arrumou um jeito de entender os dois gênios com duas palavras: o belo e o sublime. Raphael era belo, com sua sutileza, elegância, enquanto o sublime era Michelangelo, que exalava um poder obscuro capaz de maravilhar ou aterrorizar.

O fato era que Michelangelo não era mesmo sociável e chegou a relatar isso em cartas. Companhia o distrairia. Questões triviais o tiravam do sério. Tradições o deixavam de mau humor. Tudo que precisava era se dedicar às suas obras de arte. Isso demonstra o quanto o artista parecia hiperfocado no que fazia. Já quase no fim da vida se queixaria de que o trabalho o consome a ponto de esquecer de comer, o que poderia estar prejudicando sua saúde já debilitada pela própria idade.

Michelangelo era obcecado por seu trabalho. De fato, não podemos nos queixar de seu legado em termos de esculturas e pinturas. O italiano não só trabalhava muito, mas além disso parecia ter habilidades que facilitavam a realização de seus trabalhos extraordinários. Conta-se que, ao planejar o trabalho lendário feito na Capela Sistina, Michelangelo esboçou uma série de rascunhos, sem nunca repetir um desenho ou desenhar uma pessoa na mesma posição. Ele memorizava tudo e i ao trabalho sem consultar rascunhos.

Aliás, isso lembra muito outro gênio, Nikola Tesla. Tesla tinha memória fotográfica e uma energia enorme para aprender. Ele teimava com a obra de um autor e lia rapidamente todos os clássicos, se tornando especialista no tema. Podia citar informações exatas e ainda dizer em qual página do livros elas estavam. Apego a rotina, cronogramas rígidos e curiosos tiques fazem alguns especialistas suspeitarem que Tesla também tinha síndrome de Asperger.

Isaac Newton não era um artista, mas certamente seu comportamento lembra muito o de Michelangelo. Newton era um indivíduo tão intrigante que há pesquisadores que acreditam que ele tinha transtorno bipolar e síndrome de Asperger, talvez um dos dois (sim, isso é possível).

Sir Isaac Newton (1642-1727) examinando a natureza da luz com um prisma

Ele provavelmente teria dificuldade na carreira acadêmica nos dias de hoje. Seria ranzinza demais, politicamente incorreto demais, provavelmente teria poucos seguidores no twitter e seu polimatismo geraria polêmica. Muito embora o trabalho de Newton tenha sido fundamental para o que hoje consideramos como ciência moderna, ele viveu numa época em que não havia separação entre as formas de conhecimento. Newton foi matemático, cientista, mas também era fissurado por cabala, astrologia e análise de códigos bíblicos sobre o fim do mundo.

Uma de suas dificuldades parecia ser a comunicação. Às vezes pelo excesso de paranoia, outras vezes por falta de habilidade mesmo, Newton dava aulas confusas e escrevia complicado. Parece que a matemática de Principia é descrita de maneira complicada de propósito, para que só os iniciados entendam. Se pudesse, não falaria em público. Isso era bom, já que seu perfeccionismo e atitude crítica perante si mesmo diminuía sua tolerância quanto a críticas alheias.

Newton era, definitivamente, um homem de poucas palavras. Ficar calado durante muito tempo, mesmo numa conversa, era fácil. Perguntas eram respondidas com “sim” ou “não”, ou com explicações muito precisas e completas. Não havia tempo a ser perdido com trivialidades ou com conversas que o tirariam do sossego e concentração necessárias para realizar seu trabalho obscuro.

Einstein disse que não teria revolucionado a física se não estivesse apoiado em ombros de gigantes, como os de Newton. Mas os dois não dividiram apenas um legado na física. Pessoalmente podem ter sido muito semelhantes. Apesar de ser um sujeito bem menos paranoico e bem mais suave, Einstein preferia não ser distraído do seu trabalho. Encontros sociais e festinhas não eram seu forte. Falar em público também não. Na verdade, dizem que Einstein foi um professor bem confuso. Suas aulas eram mais como falar consigo mesmo em frente a uma classe. Um assunto levava a outro e a outro. Seus alunos deviam ficar perdidos como uma plateia assistindo a um jogo de baseball sem conhecer bulhufas sobre as regras.

Einstein e Newton se pareciam também na vaidade. Ou melhor, na falta dela. Parece que os dois não ligavam muito para a indumentária. Newton pelo menos viveu numa época em que perucas estavam na moda, Einstein não. Seu cabelo-de-quem-acabou-de-acordar ficava bem explícito. Mas Einstein não era esse desleixo todo. Ele tinha uma roupa especial para eventos. Mas eram umas cinco roupas idênticas. Isso que eu chamo de não querer perder tempo escolhendo roupa.

O físico parecia mais gentil do que Newton, pelo menos. No entanto, Einstein tinha certa fama de desapegado, emocionalmente frio. “Eu não socializo porque encontros sociais me distrairiam do meu trabalho e eu realmente só vivo para isso, de forma que socializar diminuiria meu já curto tempo de vida disponível para trabalhar” — tradução minha. Nas palavras de uma amiga sua, “Einstein era naturalmente uma pessoa solitária que não queria mostrar suas fragilidades e não queria ser ajudado nem quando necessitava” (tradução minha).

Segundo Ioan James, alguns biógrafos sugerem que o físico nunca precisou muito de contatos interpessoais calorosos, e que na verdade ativamente ele tentava se livrar de conexões emocionais. Ou talvez ele não tivesse tempo, dada sua dedicação ao trabalho.

Com todas as peculiaridades de Einstein e Newton, eles até que se disfarçavam bem na multidão. Wittgenstein e Alan Turing talvez tenham sido gênios ainda mais atípicos.

Ludwig Wittgenstein

Wittgenstein era um filósofo. Para o senso comum, filosofia pode parecer algo muito mais aberto à elucubração do que propriamente uma disciplina sistemática, na qual uma pessoa com traços aspies se engajaria. Mas a área de Wittgenstein era mais cascuda. Ele trabalhava com filosofia analítica, um escopo da filosofia repleto de lógica e raciocínio quase matemático. Ele gostava dessas coisas. Não por acaso, Wittgenstein foi engenheiro antes de se envolver em filosofia, chegando a trabalhar na aeronáutica. Nesse meio tempo o filósofo deu aula para crianças, mas foi expulso da instituição por ter tratado mal um dos pupilos.

Assim como Einstein, Wittgenstein parecia praticar monólogos coletivos. Com amigos ou com seus alunos, ele devaneava explicando temas filosóficos e ficava muito aborrecido se fosse interrompido. Era difícil retomar o raciocínio.

Wittgenstein provavelmente sentia alguma vontade de compartilhar seu interesse por filosofia, mas ele era reativo demais às pessoas. O filósofo era sensível demais a críticas. De fato, chegou a afirmar que “pessoas normais” eram um “tormento” — em que “pessoas normais” provavelmente eram aquelas que não compartilhavam de seu interesse por filosofia e que só queriam se engajar em small talk. Tudo isso fazia ele ser considerado frio. De fato, ele mesmo se considerava assim.

Outro figura, um dos arquitetos da mecânica quântica foi Paul Dirac. A palavra pósitron certamente vai fazer você lembrar de algo. Um podcast parado do qual eu participava? O nome que Isaac Asimov dava para os cérebro dos robôs em suas ficções científicas? O nome da partícula em tudo igual a um próton, mas com a carga invertida? Você acertou se respondeu sim para todas.

Paul Dirac — o homem de poucas e objetivas palavras

Paul Dirac saiu na mesma fornada que os gênios anteriores. Evitava socializar e era bastante reservado. Preferia gastar a mufa com cálculos e reflexões sobre a natureza do universo.

Dirac só abria a boca quando tinha certeza. Colegas relatam que era extremamente difícil dialogar com ele. Antes de dar um conselho sobre um assunto trivial, Dirac poderia ficar minutos ponderando, para concluir o assunto em tom de máxima: “sim” ou “não”. Assim como Newton e Einstein, suas polêmicas eram famosas. Eram homens de opinião forte e nem sempre dispostos a dar o braço a torcer sem argumentos persuasivos o suficiente.

Era tão lacônico que inventaram uma unidade de medida para poucas palavras. Respostas com 1 Dirac eram respostas muito curtas, com 2 Diracs, mais longas um pouco, e por aí vai. Sabe quando brincam na internet que vídeos do youtube tem diferentes Pirulas de duração? Então, é a mesma coisa, só que ao contrário.

Desde pequeno Dirac tinha dificuldade de iniciar conversas. Ele não iniciava uma frase a menos que soubesse como iria terminá-la. Isso não é lá algo que facilita conversas espontâneas.

 

Alan Turing

Assim como todas essas pessoas curiosas citadas anteriormente, Alan Turing tinha problemas com rituais simples do senso comum. Eles ficavam contrariados com os “bom dia”, “tudo bem?” comuns na comunicação cotidiana. “Ninguém está interessado em saber se estou realmente bem; eu vou ser obrigado a dizer que estou bem e quem pergunta já sabe disso, então pra que fazer essas perguntas retóricas?” — posso quase ouvir Turing reclamando consigo mesmo, proferindo alguma variação disso. Em O Jogo da Imitação é quase jogado na cara do espectador que Turing é autista. Todos os sinais estão ali, e parece que em entrevistas durante o making-off a direção do filme menciona ter sido proposital.

Socializar também não era seu forte. “Eu tenho mais contato com essa cama do que com outras pessoas”, ele comentou certa vez. Essa tendência parecia existir desde pequeno. Um relato de professores de quando tinha 15 anos diz que Turing parecia definitivamente anti-social. Apesar disso, um lado seu parecia querer contato social. Por exemplo, Alan contava detalhadamente para sua mãe sobre seus teoremas matemáticos, mesmo ela não tendo background científico para entender o que ele dizia. Era uma solidão povoada como a de Wittgenstein, que dividia o interesse de socializar usando seus assuntos prediletos e a sensação de estar falando grego.

Conclusão

Ufa, esse foi um longo texto, não? Você pode estar um pouco confuso até aqui. Por isso, vou finalizar trazendo clareza para a proposta deste texto.

Em suma, o objetivo não foi argumentar que todos os gênios são autistas. Também não foi dizer que todo autista é gênio — muito embora inteligência definitivamente tenha algo a ver com autismo. Tampouco foi dizer que ser autista é melhor ou pior do que ser neurotípico. Encare esse artigo como um comentário sobre gênios que provavelmente eram autistas, apenas. E encare isso com uma pitada de ceticismo porque se diagnósticos de pessoas vivas são difíceis, imagina de personagens históricos. Todos que eu citei aqui parecem ter traços autísticos identificáveis através de meios indiretos (e.g. diários, cartas, comentários de terceiros) por especialistas.

Também é válido ressaltar que devemos ficar longe de clichês. É verdade que muitos dos traços associados à síndrome de Asperger vão aparecer de forma mais ou menos parecida em diferentes pessoas com a síndrome — afinal, é isso que faz com que todas elas sejam identificadas com um quadro em comum. Mas não esqueça que aspies são indivíduos e como tais, vão ter suas particularidades.

Por exemplo, será verdade que todo aspie é grosseiro? Certamente que não. No entanto, é comum que eles soem assim. Além disso, um ar de petulância e rispidez pode ser resultado do hiperfoco obsessivo com que aspies perseguem seus temas preferidos. Por isso, eles podem soar alheios à vida social. Brenda Boyd faz uma análise muito interessante e elucidativa sobre isso em Appreciating Asperger Syndrome.

E isso me lembra muito um trecho do filme Sherlock Holmes, em Robert Downey Jr. No início, Watson entra no cômodo onde Holmes está isolado em seu mundinho particular. Em certo momento, Holmes diz que não há motivo para sair de lá pois não existe nada para ele lá fora, no mundo exterior. Isso é típico de uma pessoa autossuficiente, que tem tudo que precisa em seu quarto.

Como descreveu Hans Asperger, com os estudos de caso dos “pequenos professores”, essas pessoas podem soar petulantes, muito embora elas possam estar querendo conexão social assim como eu e você. E talvez Asperger estivesse certo sobre outra coisa, que espero que tenha sido mostrada de maneira persuasiva ao longo deste texto. Embora gênios não sejam todos aspies, pode ser necessária uma pitada de traços autísticos em toda a atividade científica e criativa em geral.