Eu sou muito fã de Crash Bandicoot. Mas, tipo, muito mesmo. Eu amo esse jogo em um nível ridículo. Se eu paro para pensar, nem faz muito sentido, eu já estou velho, no auge dos meus 22 anos.Mesmo depois de tantos anos, tantas novas experiências de jogos (passei por The Last of Us, GTA V, Uncharted 4, entre tantas obras-primas da indústria), no topo dos jogos da minha vida, lá está aquela cara laranja desengonçada. Memória afetiva nos leva a lugares esquisitos.

O último jogo da trilogia clássica, Crash Bandicoot 3: Warped, foi lançado em 1998, quando a franquia ainda era propriedade da Naughty Dog, a criadora original. Eu nasci em 1998, nem pude presenciar o hype da época para esse jogo, na verdade, nem sei se houve hype. Enfim, agora, no início de outubro de 2020, a Activision (nova proprietária da série), lançou o novo jogo da franquia original, de forma canônica, o Crash Bandicoot 4: It’s About Time (em português, “já era hora”, que ironia depois de 22 anos) e eu chorei que nem um bebê durante o anúncio. Mas não vim fazer divulgação gratuita para a produtora do jogo (que aliás nem comprei ainda pois não tenho dinheiro, Activision me nota L), muito menos convencer qualquer leitor de que o Crash é o melhor mascote de videogame que existe, deixando Mario e Sonic no chinelo (o que é óbvio para qualquer sonysta como eu), mas, na verdade, utilizar o universo de Crash para refletirmos sobre uma tecnologia aparentemente distante, porém que bate em breve a nossa porta: a modificação genética.

Nessa análise, levaremos em conta apenas o primeiro Crash Bandicoot da série clássica, pois se levássemos em conta os outros jogos não conseguiria concluir a reflexão que gostaria. Tendo em vista essa regra, vamos em frente. Desconsiderando a história do jogo (que é extremamente rasa, o foco do game é na jogabilidade e diversão) e outros detalhes, na Bandipédia (a Wikia da série Crash, feita por fãs), consta um trecho de explicação que será o fio-guia desta discussão. Segue a tradução livre do texto, feita por mim:

“Crash começou a vida como um “bandicoot” simples e normal, vivendo livremente como um animal selvagem nas florestas da ilha de N. Sanity. Ele foi capturado pelo Dr. Neo Cortex, a fim de se tornar general de uma divisão de conquista mundial. Ele foi mutado por Cortex e seu ajudante, Dr. Nitrus Brio, com o Evolvo-Ray, o que deu-lhe sapiência humana e o tornou antropomórfico” (Bandipédia, 2020).

Ok, já temos nossa premissa. Mas acho que o primeiro passo de todos é saber o que diabos é um bandicoot.

Apesar de desde os primórdios da série muita gente acreditar que Crash é uma raposa, muito devido a sua caracterização e cor alaranjada, na verdade, nosso mascote é um bandicoot. Os bandicoots são pequenos mamíferos que parecem roedores, mas na verdade são uma espécie de marsupial, da mesma família do canguru sabe? Com aquela bolsa e tal? Apesar de muitas vezes o próprio termo “bandicoot” ser traduzido diretamente para o português como “marsupial”, essa tradução é incorreta, pois não temos equivalente no português para esse termo, já que a palavra é uma variação de um termo na língua Telugu, que significa algo como “rato porco”.

Nada a ver com o Crash né? Enfim, anos 90 né. Mas como nosso objetivo aqui não é fazer descrições taxonômicas, vamos em frente. Vou me ater a duas características descritas na premissa que acredito que serão mais relevantes para nós: a “sapiência” e a “antropomorfização”. Trazendo para a realidade, o Evolvo-Ray, como o próprio nome sugere, atua como um aparelho de evolução artificial forçada, agindo a nível molecular e atômico para que mudanças fenotípicas desejadas apareçam após a utilização. Não estamos nem perto de conseguir construir tal mecanismo, mas já temos um passo inicial nesse sentido. Já temos tecnologias de edição gênica em curso. Considerando nossa tecnologia e a forma exponencial que o conhecimento se constrói na atual quarta revolução industrial, quando tivermos posse de tal artefato, qual será o limite? Vamos destrinchar os dois aspectos que coloquei em destaque para refletirmos sobre isso.

Quando leio na descrição do personagem algo como “sapiência”, sinto um amargo metafórico na minha boca. O que é sapiência? É ser sábio? Consciente? É um conceito bem abrangente de ser abordado. Se você jogar no Google esse termo, encontrará como sinônimos algo como “cognição”, “compreensão” e “conhecimento”. Não gostei, amplo demais. Se buscar a etimologia da palavra então, você é direcionado a página referente a “sabedoria”, onde há visões muito distintas de áreas como filosofia e psicologia. Há ainda a possibilidade da palavra ser confundida com o sentido de “senciência”, que é a capacidade do indivíduo experienciar sensações e sentimentos de forma consciente, o que torna tudo ainda mais complexo. Mas o ponto aqui é: independentemente da forma que iremos abordar essa “sapiência”, isso é modificável através dos genes?

Considerando que o pequeno bandicoot em sua vida corriqueira não tivesse consciência (em um sentido geral) do mundo em que vive, através de uma movimentação entre bases nitrogenadas e suas interações, conseguiríamos fazer com que um sentido de conhecimento fosse gerado dentro das mais íntimas regiões de seu pequeno cérebro? Ou mais, uma modificação despretensiosa em um pequeno lócus poderia gerar um autoconsciência indesejada? E por que a necessidade de gerar uma experimentação de mundo mais “humana”, sendo que somos incapazes de entender como é a experimentação de vida de um animal australiano que vive perto das maiores trolagens que a natureza conseguiu produzir?

Temos consciência de que, quando a tecnologia chegar, acabaremos por realizar testes em outras espécies, mas qualquer tipo de “sapiência” indesejada deve ser discutida previamente. Como vemos na própria série, o jogo sempre faz referência a questões tanto estruturais como comportamentais, como o vilão que se chama “Dr. Neo Cortex” em referência a região cerebral ou o nome da ilha onde Crash surgiu, a ilha de N. Sanity, um trocadilho sacana com “insanity” (insanidade em português). A série recorrentemente faz essas brincadeiras, principalmente relacionando loucura e maluquice, o que me leva a pensar que na verdade o Vaas Montenegro de Far Cry 3 só jogou Crash demais. Pode parecer uma discussão vanguardista, mas acredito que em breve esse assunto será discutido com muito mais seriedade do que com um personagem que morre ao tocar em caixas verdes.

O outro aspecto que me chama a atenção é a antropomorfização do pobre onívoro. Se continuarmos pensando no Evolvo-Ray como uma máquina de evolução artificial forçada e acelerada, podemos pensar em como o marsupial sairia de um animal de 40 centímetros quadrúpede para um bípede que usa shorts azul e tênis. Pensando de forma cladística, a ordem Marsupialia (da qual o bandicoot faz parte) está bem distante da ordem dos primatas, da qual nós fazemos parte.

Forçar uma antropomorfização me parece ser um processo extremamente doloroso. Teríamos que mudar todo o esqueleto do animal para que pudesse se sustentar em duas patas, trocar articulações e músculos para que pudesse executar os pulos e giros do game, até aumentar suas patinhas para que coubessem em um Air Jordan número 32. Pode parecer sem sentido o meu ponto, mas vai ficar mais claro agora. Ao vermos toda a diversidade que nossos ecossistemas fornecem para nós, temos o ímpeto intrínseco de aplicar emoções humanas, características humanas e toda a sorte de significações inerentes a essa construção que chamamos de cultura, sociedade, entre outras inúmeras instituições imaginárias que mantêm nossa coesão como espécie.

Temos a mania de, ao invés de observar e admirar a natureza como ela se construiu, tentamos espelhar a nossa régua de realidade para todos os outros seres. Transformamos um minúsculo animalzinho fofo australiano em um humanóide que possui caracteres excepcionalmente humanos como heroísmo e preguiça. Quando chegar o momento, a modificação genética será usada de diversas formas, e uma delas com certeza será a transformação de outras espécies em algo mais “humano”. Mas, aqui vai minha provocação final: se nós transmutamos outros seres em algo parecido conosco, pois nos sentimos superiores e a “espécie dominante” do mundo, quando chegar a nossa hora de nos modificarmos, nós olharemos para quem? O que nos tornaremos? Super-heróis? Titãs? Deuses?


João Paulo de Sousa Ferreira. Bacharel em Biomedicina, Iniciado Científico pelo ICB I da Universidade de São Paulo e Pós-Graduando em Docência do Ensino Superior. Candidato a cientista maluco desde cinco anos. Músico triste como blues antigo, formato computadores e olho pro céu noturno encantado.