Tenho estado um pouco angustiado (da música de Belchior, como um goleiro na hora do gol) sobre os rumos que escolheremos nesse querido 2018 que se inicia. Me parece um sentimento generalizado de que, após longa caminhada, estamos em frente a uma bifurcação principal que contém outras dezenas, centenas, talvez milhares de mais bifurcações no seu interior. É justo supor que alguns decidirão seguir caminhos mais à direita. Outros decidem-se pelos mais à esquerda. Mas também há quem queira voltar, ou ficar parado, por puro e legítimo cansaço. Também penso naqueles que apenas gostariam de cavar um buraco no chão acreditando, em vão, se proteger.

[Este texto contém spoilers de Engenharia Reversa, quinto episódio da terceira temporada de Black Mirror]

deu vontade de tomar um café

De toda a forma, estou particularmente angustiado (como um goleiro na hora do segundo gol), pensando sobre os rumos possíveis das eleições 2018. Me parece que após um período tão turbulento de rupturas institucionais, fragilização socioeconômica, sucessivos e profundos cortes orçamentários em diversas áreas, 2018 nos obrigará a tomar decisões cujos resultados nos afetarão durante muito tempo. 2018 é, definitivamente, um ano decisivo. O problema é que, talvez, estejamos muito cansados. E decidir bem exige energia.

Me dirijo à cozinha. Coloco o bule sob a chama do fogão. Enquanto esperamos a água ferver, vou escrever algumas linhas. Vejam se concordam comigo ao final

Há um episódio de Black Mirror [1] que pode nos ajudar a pensar um pouco sobre as próximas eleições. Seu título é Engenharia Reversa (do original, Men Against Fire), precisamente, o quinto da terceira temporada. O episódio descreve, inicialmente, as dificuldades e perigos encontrados por um grupo de soldados na caça a baratas gigantes. Horripilantes, essas baratas são seres monstruosos, de rosto nojento, completamente desprezíveis, sem capacidade de afeto, empatia, compaixão. E mais: transmitem doenças que podem exterminar a humanidade. Logo, extermina-las é mais que um dever: é uma necessidade. Olha só a carinha da barata aí embaixo:

Para caçar as baratas, os soldados valem-se de um implante neural chamado MASS.  O dispositivo, semelhante a uma lente de contato, melhora a performance do usuário ao amplificar seus sentidos, projetar realidade aumentada e dar acesso a dados e mapas. Tudo isso bem diante dos seus olhos. Também oferece sonhos reconfortantes e experiências eróticas. É um dispositivo maravilhoso, sem dúvida.

O episódio começa com uma incursão dos soldados a uma fazenda cujos donos são suspeitos de abrigarem algumas baratas. É impossível entender neste momento como alguém poderia fazer algo tão estúpido como esconder monstros procurados pelo exército no seu próprio porão. As suspeitas são confirmadas e os soldados precisam agora eliminar as baratas. Claro, não é tarefa simples, as monstruosidades revidam, não vão se deixar matar tão facilmente.  Em uma luta, quase perdemos um dos nossos heróis. Uma barata utilizou-se de um dispositivo luminoso que interferiu no implante do soldado, atordoando-o. Felizmente, no fim, nosso herói prevalece perante à monstruosidade. Entretanto, seu implante parece danificado.

O bule começa a assobiar baixinho…

Alguns testes são realizados e, não, o MASS não está danificado.  Pelo menos não fisicamente. Mas também não está funcionando normalmente. Estranho. Nosso herói é levado ao psicólogo para uma avaliação:

“ – Soube que você matou duas baratas. Na sua primeira incursão. Parabéns. Como foi a sensação?”, pergunta o senhor de jaleco.

“ – A primeira foi em automático. Como nos treinos, sabe? Eu estava na casa da fazenda. Havia um quarto secreto lá dentro. Quando entramos, elas estavam lá. A primeira eu matei automaticamente. Só atirei, sabe?”, descreve o nosso herói.

“ – Entendi. Como nos treinos.”, assenta o psicólogo. E pergunta: “- E a segunda?”

“ – Ela estava no chão comigo.”, o soldado explica.

“ – Ela?”, questiona o doutor.

Aparentemente nosso soldado percebeu o gênero de um monstro que, ops!, não deveria ter gênero.

A água ferve. Desligo o fogo. Coador preso na haste de metal. A água quente desliza pelo pano e vai de encontro as quatro colheradas de pó de café. Forma-se um pequeno redemoinho no coador. O aroma sobe. Volto para a sala com minha caneca branca

As baratas humanoides, senhoras e senhores, não existem. São pessoas comuns, mas cujos rostos são projetados como monstros nas mentes dos soldados. Há uma dupla função nessa projeção: a primeira, facilitar a realização do trabalho dos soldados dando-lhes a certeza de que extirpam o mal (encarnado em barata); segundo, diminuir o remorso causado pela obrigação do seu “dever”. Afinal, é razoável supor que exterminar baratas é moralmente muito mais simples de se lidar que o remorso advindo do aniquilamento de uma população.

Engenharia reversa é um episódio que trata do ódio. O ódio que nos cega e nos impele a destruir tudo que é diferente, eliminar o que não nos agrada, desprezar o que não concordamos. É um ódio insano, um ódio doído, mas também um ódio que não vem de berço. Ele é ensinado, instigado e, sobretudo, recompensado. Um ódio que é um projeto de sociedade.

Vejam. Umas das revelações mais surpreendentes deste capítulo é o fato da população não usar os implantes neurais. Ou seja, à população é dado o direito de “decidir se enxerga” ou não aquelas pessoas como baratas. A maioria decidiu pelo ódio, como explica uma das personagens na trama. A maioria sim, mas não todos. No início do episódio, devemos lembrar, é mostrado um senhor que escondia “baratas” na fazenda. Obviamente, ele decidiu enxerga-las como pessoas que realmente eram.

Antes da água começar a ferver, mencionei como uma barata valeu-se de um dispositivo luminoso para interferir no implante do nosso herói. Este dispositivo foi realmente inventado pelas “baratas”, mas seu objetivo não é destruir. É interferir no implante dos soldados com a esperança de que, sem o MASS, seja possível restaurar plenamente, ou ao menos um pouco, a humanidade daqueles que foram durante muito tempo treinados a brutalizar. Interessante notar também que o dispositivo funciona emitindo diversos flashs de luz. A luz que tira a névoa que recobre a visão dos soldados. Que o cega momentaneamente. Luz o desafia, esfrega os olhos, redimensiona as pupilas. A luz da razão. Eu só consigo pensar nesse dispositivo luminoso como metáfora para os ideais propagados pelo Iluminismo em sua luta contra o obscurantismo. Em linhas gerais, o iluminismo impulsionou a formação da ciência moderna e difusão do método científico, a partir do qual, nos permitiu encontrar explicações para eventos que ocorrem na natureza baseando-nos não na fé, mas na razão e na experimentação.

Mas o que isso tudo tem a ver com as eleições 2018?

Um minutinho só que vou pegar mais café na térmica, rapidinho. Vejam se concordam comigo

Estou tentado a lançar a hipótese de que quanto mais cresce o interesse pela política, mais cresce a polarização do debate entre as pessoas. Mas não há embasamento para tanto. Por ora, posso dizer apenas que, se por um lado, a política se tornou assunto frequente em diferentes espaços (trabalho, família, amigos, vizinhos, redes sociais), por outro lado, as diferentes posições caminharam para seus extremos, polarizando-se e formando basicamente dois grupos: o “Nós” e o “Outros”.

Bem, o “Nós” é o grupo composto por pessoas que concordam entre si. Ou seja, possuem afinidade ideológica e advogam as mesmas soluções para os problemas que encontram. O grupo “Outros” é composto por pessoas das quais discordamos. Simples assim. E problemático assim. A lógica que impera aqui é a lógica do Amigo/Inimigo. Basicamente, isso quer dizer que há uma guerra com apenas dois lados. Se você não é Amigo, torna-se, naturalmente, inimigo.  Numa guerra, para se garantir a sobrevivência, é necessário que o inimigo seja extirpado, aniquilado, destruído. O perigo só existe enquanto existir o inimigo. Seu desaparecimento é também o desaparecimento da ameaça. Por isso, derrotá-lo é uma questão de necessidade.

Tal como é uma necessidade exterminar as “Baratas”.

Acontece. Que. Para. Os. Outros…  As. Baratas. Somos. Nós.

E aqui reside o problema fundamental.

Na política, onde impera a lógica do Amigo/Inimigo, tem-se a criação de basicamente dois grupos antagônicos em que o Outro, o Inimigo, Eles, são a personificação do Mal, do Errado, do Corruptível, do Degenerado. E, nesse mesmo raciocínio, os Amigos são a personificação do Bem, do Correto, do Justo, do Belo. E qual o problema disso? Simples: além de não enxergarmos os nossos problemas internos, também estamos fechados para as soluções para os problemas encontradas pelos Outros.

Numa eleição, como a que está vindo por aí, isso é muito pior, porque os grupos tendem a distanciar e extremar suas posições políticas para tentar cada vez mais se diferenciar do Outro e com isso, manter sua suposta aura de justiça, beleza, bondade intacta.  Vejamos alguns exemplos. 1) A descriminalização da maconha torna-se uma questão de defender ou não bandido, quando na verdade, se deveria discutir a questão das drogas como questão de saúde pública.  2) A legalização do aborto vira um debate se a mulher é ou não uma assassina, quando se deveria debater políticas que visem à saúde e à construção de instrumentos pedagógicos que permitam construir mais autonomia e respeito para as mulheres. 3)  O debate sobre a cotas sociais vira uma questão de valorizar ou não a meritocracia, quando se deveria discutir desigualdade social de raça (e de gênero e de renda)… E por aí vai. Questões complexas exigem um olhar em 360 graus do problema para se encontrar soluções minimamente adequadas. Olhares parciais que tendem a valorizar mais um lado em detrimento do outro costuma ser insuficiente, discurso eleitoreiro, ou simplesmente demagogia.

Portanto, antes de decidir se aquela pessoa é uma barata, faça uma pausa. Se dê um tempo. Prepare um café. E tenha em mente que, se decidir que ela é uma barata…, você também decidiu ser uma barata para ela.

Sendo que no fim das contas, histórias de Baratas e Heróis são como mitos: simplesmente não existem na realidade.

Podemos mais do que isso.

E experimentem uma pitadinha de canela no café. É uma delícia.

 

[1] Para mim a coisa mais aflitiva é que Black Mirror me parece mais um documentário e menos uma série de ficção científica. Um documentário, sei lá, sobre o futuro. Bem… Admito que não sei explicar exatamente o porquê o classifico dessa forma. De maneira geral, eu entendo que documentários olham para o hoje ou para o ontem, estabelecendo conexões entre fatos, pessoas e/ou determinados eventos. Mas como estabelecer conexões sobre eventos que não ocorreram? E é isso. O mais intrigante para mim é a sensação de que Black Mirror está tratando de algo que já aconteceu, ou que está acontecendo neste momento e não estamos nos dando conta. O enredo dos episódios pode ocorrer daqui a dez, cem ou mil anos. Mas a conflito entre as personagens quase sempre parece familiar e provável. Um documentário sobre o futuro. Um futuro próximo, longínquo, utópico ou distópico, não importa: um futuro familiar. Realmente não sei (me) explicar.

Thiago Brandão. É sociólogo e acredita que o louco só está usando uma metodologia diferente.