Comer um pedaço de chocolate é certamente uma experiência sensorial única: o tato suave sentido pelos dedos ao tocar a barra; o esforço das mãos e dos dentes ao quebrar o pedaço com um estalo próprio que revela uma dureza que não chega a ser crocante; a sua maciez ao toque da língua; a sensação de sentir o pedaço se derretendo dentro da boca simultaneamente às mastigadas; e tudo isso somado ao aroma e sabor que amamos tanto. Qual é o segredo por trás dessas propriedades que não encontramos em nenhum outro alimento?

No texto anterior, acompanhamos a trajetória do cacau até se transformar na mistura base do chocolate, passando pelos processos biológicos, físicos e químicos que darão ao chocolate algumas propriedades como cor e sabor. Agora veremos as etapas finais que ele precisa passar para atingir as propriedades táteis da barra.

Como vimos no texto anterior, a mistura base do chocolate é formada pela massa de cacau com a manteiga de cacau e/ou a gordura vegetal hidrogenada, aditivadas com açúcar, emulsificantes, leite em pó, entre outros.

Essa mistura de ingredientes passa por um processo chamado conchagem, em que a massa é continuamente macerada, além de ser mantida liquefeita pelo aquecimento gerado pelo calor de fricção dos rolos. Este processo foi inventado por Rodolphe Lindt (sim, o nome da famosa marca de chocolates), em 1879 na Suíça, e seu nome deriva do tacho, originalmente em formato de concha, em que o chocolate era processado.

A conchagem pode variar de 6 horas a 4 dias, sendo que quanto mais tempo dura, mais homogênea fica a dispersão dos sólidos do cacau na base gordurosa, de modo que o chocolate final tenha uma textura mais suave. Além de acertar a textura, a temperatura em que a mistura é mantida garante a evaporação da umidade residual e de substâncias voláteis presentes nos derivados do cacau, contribuindo para um sabor mais refinado.

Agora, o chocolate está praticamente pronto, porém ainda em estado líquido a aproximadamente 50°C. Então, é necessário que ele seja resfriado até a temperatura ambiente de uma forma bem específica. Este resfriamento especial se chama temperagem, ou têmpera, e ele é responsável pela formação dos cristais de gordura que garantem ao produto final as propriedades desejadas, como seu brilho, a sensação de tato na boca e a temperatura em que a barra vai começar a derreter.

Aqui vale a explicação de que, na linguagem química, “cristal” não é apenas aquela estrutura geométrica que tocamos e vemos a olho nu, geralmente associada a certos minerais, mas também se refere às conformações de átomos de maneira organizada e repetitiva. Esses padrões em níveis moleculares nem sempre são visíveis individualmente no nosso mundo macroscópico, mas seus efeitos são percebidos nas propriedades que esses microcristais conferem ao sólido que formam, tais como brilho, cor, tato, dureza, etc.

Tomando o próprio chocolate como exemplo, ele não se parece com um cristal, se comparado aos cristais minerais que conhecemos. Isso ocorre porque um pedaço de chocolate não é um único cristal. É uma mistura de várias substâncias, algumas das quais cristalizadas em nível molecular. Cada pedaço de chocolate contém milhões de cristais microscópicos de manteiga de cacau, que são pequenos demais para serem vistos, misturados com outros ingredientes que não são cristalinos.

A formação desses cristais durante a temperagem é um ponto chave na consistência do chocolate. Nesse processo, o chocolate é resfriado a aproximadamente 27°C, temperatura em que todas as moléculas das gorduras do chocolate (originados na manteiga de cacau) se solidificam, formando, no entanto, cristais distintos, em uma estrutura chamada “polimórfica”.

Alguns desses cristais formados têm ponto de fusão relativamente baixo (de 28 a 30°C), ou seja, se tornam líquidas novamente se o chocolate atingir estas temperaturas. Por isso, o chocolate tem que ser reaquecido suavemente até cerca de 31 a 32°C para fundir esses cristais instáveis cujos pontos de fusão são inferiores a esta temperatura. Dessa forma, os cristais mais desejáveis, que têm o ponto de fusão a partir de 34°C, são mantidos. Este processo é repetido até que o produto final temperado seja formado predominantemente por cristais do tipo que derrete entre 34 e 36°C.

Esse ponto de fusão dos cristais da gordura é importante para garantir que o chocolate não derreta tão facilmente à temperatura ambiente ou em pouco tempo na mão, mas derreta imediatamente ao ser mordido, o que contribui para a sensação única de morder suavemente uma barra firme de chocolate.

Diversos aspectos contribuem para o sucesso ou fracasso da formação dos cristais ideais, como o tempo de resfriamento, a diferença de temperatura dos choques térmicos, a umidade residual no chocolate que não foi totalmente evaporado na etapa anterior, entre outras variáveis.

Conseguir formar cristais com ponto de fusão acima de 34°C é praticamente uma arte, já que é mais fácil obter cristais com pontos de fusão mais baixos. Veja, por exemplo, a consistência estranha de uma barra após você a deixar derreter e depois esperar que ela resfrie e solidifique novamente. A textura áspera e quebradiça que se obtém dessa forma é o resultado das gorduras recristalizadas com pontos de fusão abaixo de 30°C.

E por que as moléculas de gordura tendem a formar estruturas múltiplas quando são solidificadas? A cristalização de uma gordura está associada à forma com que as longas moléculas de triglicerídeos, moléculas que formam a gordura, interagem entre si e como elas ficam conformadas ao se solidificarem.

Exemplo de molécula de um triglicerídeo (neste caso, triéster de glicerol com os ácidos palmítico, esteárico e oleico) tipicamente encontrado na gordura da manteiga de cacau que compõe o chocolate. Perceba que são três ramificações longas (chamadas de ácidos graxos) conectadas por um núcleo de glicerina (3 átomos de carbono em que cada um se liga a um átimo de oxigênio) (modelo feito no site MolView).

Formas distintas de como os triglicerídeos podem de arranjar entre si, gerando cristais de gordura menos densos (a esquerda) ou mais densos (a direita), cada qual com propriedades distintas (fonte: MIODOWNIK, 2015).

Concluindo estes dois textos sobre chocolate em que tratamos desde a origem do fruto no cacaueiro até a formação dos cristais de gordura para uma consistência perfeita, podemos pensar que quando você come uma barra de chocolate, além de uma experiência individual única, você também está apreciando o resultado de centenas de horas de processamento e de séculos de conhecimentos acumulados.

 

Referências

Miodownik, Mark. De Que São Feitas as Coisas – 10 Materias que Constroem o Nosso Mundo. Tradução Marcelo Barbão. Editora Blucher, São Paulo, 2015.

Wolke, Robert L. O que Einstein disse a seu cozinheiro: Mais ciência na cozinha. Tradução Maria Inês Duque Estrada. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2005.

Dand, Robin. Cocoa bean processing and the manufacture of chocolate. The International Cocoa Trade (Third Edition), 2011.

Levy, Charlotte. An overview of the crystallinity of cocoa butter. New Food Magazine, 2016. Disponível em < https://www.newfoodmagazine.com/article/74041/an-overview-of-the-crystallinity-of-cocoa-butter/ >

Husband, Tom. Chocolate’s champion chompability. Education in Chemistry, Royal Society of Chemistry 2013 < https://edu.rsc.org/feature/chocolates-champion-chompability/3007358.article >

Wikipédia – Chocolate < https://pt.wikipedia.org/wiki/Chocolate >