Na nossa cultura alimentar, muitos atores são importantes por manter laços tanto da história quanto da prática alimentícia vivos. Mesmo realizando tais nobres atividades, muitos desses personagens podem passar despercebidos em nossa sociedade de consumo. O peconheiro talvez seja o mais interessante dessas figuras.
Talvez você nunca tenha ouvido falar dessa categoria profissional, apesar de conhecer muito bem o fruto do seu sustento: o açaí. Pode ser como sorvete, salgado, como molho, creme ou suco; é bem possível que em algum momento da vida você já tenha comido açaí. E o peconheiro foi aquele personagem que tornou possível a cadeia desse fruto. Sem ele, não haveria a cultura do açaí como a conhecemos.
Ator principal dessa cadeia, o peconheiro é um prestador de serviço de extração florestal, não um proprietário de terras ou de seus produtos [1]. Munido de um terçado (facão) na bermuda e de uma peconha (cipó) preso aos pés, o seu trabalho é extrair de frondosas palmeiras o fruto do açaí, representativo das culturas alimentares do norte do Brasil. Mesmo assim, muitos passam a vida consumindo o produto sem saber sobre o personagem.
No texto de hoje, iremos fazer mais uma comemoração ao mês do trabalhador! Sempre em maio, busco difundir informações sobre o cenário do trabalho no ramo alimentício no Brasil e seus grandes atores (Busque ler textos anteriores aqui, aqui e aqui!). Neste ano, vamos conhecer o arquétipo dos trabalhadores do norte, o peconheiro.
Não tem como falarmos da identidade peconheira sem citarmos a territorialidade de sua origem. A atividade começa nas reservas agroextrativistas espalhadas por toda a região norte, em especial o Pará. Movimentos de posse dessas áreas agroflorestais atravessaram lutas conjuntas com mais de uma comunidade tradicional, como os seringueiros e ribeirinhos.
Essas lutas — muitas vezes sanguinolentas — repercutiram na Constituição Federal de 1988, principalmente no tocante ao ordenamento territorial fundiário [2]. Posses agroecológicas ocupadas por populações tradicionais, como terras quilombolas, Reservas Extrativistas (Resex) e outros projetos de assentamento, agora são ambientes de atividade extrativista. E muito disso vem da influência das lutas dos seringueiros como Chico Mendes.
Através da proteção de seus territórios tradicionais contra especuladores, grileiros e fazendeiros, garante-se também a reprodução simbólica-social da maneira de ser amazônico. A identidade peconheira atravessa muitas dessas lutas e continua persistindo no volátil cenário cultural do Brasil norte. Mas agora outras ameaças se desenvolvem à espreita dessa atividade.

Imagem um. A assistência técnica tem mudado a realidade e a produtividade no trabalho do peconheiro. O uso de lonas para debulhar as sementes, por exemplo, evita que o produto estrague por contato com o solo [3]. Na figura, um homem fazendo coleta de açaí em cima do açaizeiro.
O seu trabalho é escalar grandes estipes de palmeiras para alcançar o cacho de açaí. Essas árvores se encontram na várzea de rios que afluem para grandes corpos d’água, mas pontes improvisadas marcam o caminho aos frutos. Ao seu auxílio, ele possui a peconha para unir os pés, com as mãos ocupadas segurando o tronco. Com o movimento de flexão e extensão das costas e das pernas, o peconheiro arranca o cacho com facão para trazê-lo até o solo repleto de açaí.
Como figura simbolicamente relevante no cenário amazônico, o peconheiro possui valor a ser explorado pela população local. Ao permitir com que a floresta se torne fonte de recursos sustentáveis, ele equilibra a floresta em pé com crescimento em atividades de ecoturismo, bioeconomia e culinária típica. Sem o trabalho agroflorestal, esses potenciais seriam impossíveis de serem valorizados.
Apesar de inúmeros benefícios sociais e culturais dessa atividade, os peconheiros como categoria profissional seguem invisibilizados no cenário trabalhista. Assim como muitas outras classes agroflorestais, há pouca vontade política para garantir a sustentabilidade dos trabalhos nessas reservas agroextrativistas, inviabilizando potenciais valorativos que a profissão poderia ofertar, relacionados ao ecoturismo e aos eventos locais.
Grandes conglomerados da cadeia de abastecimento seguem com margens financeiras bem lucrativas por terem o monopólio da compra desses produtos. Afinal, extrativistas isolados não conseguem intercambiar com outros vendedores, permanecendo desassistidos nessas regiões parcialmente remotas. Os atravessadores intermedeiam suas relações comerciais, garantindo a compra desse açaí a preços bem mais baixos do que são vendidos na outra ponta da cadeia, o consumidor.
Esse cenário acaba criando riscos singulares nessa realidade de trabalho. Muitos desses perigos foram elencados pelo Instituto Piaburu, que estuda a manutenção de estilos de vida sustentáveis. Vamos ver alguns desses riscos:
A caminhada na várzea entre palmeiras está sujeita a picadas de animais peçonhentos, como aranhas, serpentes e poraquês, as enguias elétricas. Riscos de tombamento das pinguelas (pontes improvisadas) também são observados, assim como intensa exposição ao sol, cortes por manter o facão em mãos ou na bermuda e, não menos importante, o risco de empalamento por queda em antigos troncos de árvore [4]. Esses perigos são muito sérios e expõem uma realidade de trabalho pouco conhecida pelos consumidores de açaí.
O resultado é uma profissão com registro acentuado de cortes, quedas, mutilamentos e morte. Isso quando os acidentes ficam registrados, afinal tudo aponta para subnotificação de acidentes de trabalho. O cenário beneficia a prevalência de pessoas mais jovens na profissão, uma vez que os mais antigos saem acidentados, sem direito à aposentadoria ou seguro.

Imagem dois. A produção do açaí vem diminuindo em virtude dos riscos climáticos. No período de entressafra, o fruto marcou R$1 mil em 2024 no tradicional mercado Ver-o-peso, em Belém (Pará) [5]. Na figura, é possível observarmos a movimentação de pessoas em uma das margens do mercado, famoso por seus produtos típicos da Amazônia.
Os elos fortes da cadeia de valor, industriais, atacadistas, varejistas e batedores, não se responsabilizam pelos problemas existentes no início da produção, o que faz com que ocorra o barateamento do produto na ponta florestal. Esse problema, alinhado ao perfil geográfico da região norte, incita a fixação de jovens neste trabalho, muitas vezes menores de idade.
Adolescentes são figuras costumeiras na realização das atividades mais degradantes. Em ambientes sem regularização fundiária ou trabalhista, é esperado que estes jovens acompanhem a exploração do açaí, muitas vezes morando em condições precárias como barracos de madeira e teto da folha de açaí, ou ainda em lonas plásticas sem fechamento lateral [1]. No youtube, ainda é possível encontrarmos alguns vídeos da queda desses jovens durante suas atividades rotineiras.
Escolhi não postar os links desses filmes por questão ética pessoal. Muitos deles expõem a realidade do peconheiro de maneira satírica com relação às quedas, como se fosse uma piada pastelona ter um trabalhador caindo. Mas, para não ficarmos sem material de análise, vou deixar o vídeo da reportagem da Câmera Record [6] que indicou muito bem a veracidade da vida peconheira e dos familiares.
A tecnologia pode ser uma grande aliada desses trabalhadores, com o advento de máquinas colheitadeiras de açaí, já presentes no mercado. Porém, o uso, a logística de transporte, a técnica e a manutenção são estigmas que precisam passar por diversos atores para efetiva utilidade no trabalho extrativista, o que necessita de empresas com mais poder aquisitivo participando ativamente desse processo.
A solução então passa por garantir a reunião de agentes do açaí para que, junto com a governança pública, possam planejar Projetos de Assentamento Agroextrativistas que sejam capazes de empoderar atores locais frente aos ditames do mercado, garantir direitos à terra e manutenção de políticas bioeconômicas robustas e sustentáveis.
O planejamento social é capaz de mudar a realidade de trabalho desses homens invisibilizados. Apesar de ser um ator que muitas vezes é referenciado como atuante em um profissão “do passado” pela maneira tradicional de sua técnica, o distrato por parte da cadeia de valor nos alerta sobre uma triste e terrível possibilidade futura no emergente mercado profissional em que vivemos.
Celebrar a existência (e resistência) do peconheiro é também nos habilitar sobre o mercado de trabalho cada vez mais individualista em que vivemos, incitado por princípios de pejotização das relações de trabalho e também da absorção de riscos pelas empresas. No último mês, trabalhadores do segmento delivery — os mais desassistidos no cenário urbano — estiveram juntos à maior greve sindicalizada da história do segmento. A história tem demonstrado que nossas lutas, tanto nas cidades quanto no campo ou acima do açaizeiro, são todas iguais no final das contas.

