Tendo entendido as teorias de luto (as quais falamos sobre na primeira parte), principalmente a de Worden, que usaremos como um norte para a construção desse texto, podemos falar sobre o que acontece quando o luto é mal elaborado.

  • Primeira tarefa: Aceitação da realidade da perda –  Um dos obstáculos para essa aceitação é a negação, a descrença. Outro obstáculo é a tentativa de proteção da realidade. O indivíduo enlutado atribui uma insignificância ao objeto de apego perdido. Habitualmente, enlutados em descrença, numa tentativa de se proteger, se desfazem de tudo que lembre o objeto de apego. Existe também o esquecimento seletivo, em que o enlutado esquece parcial ou totalmente da existência do objeto de apego. 
    • Uma outra forma de descrença, que inclusive acredito ser mais frequente na situação atual de pandemia, é chamada de meio conhecimento, em que o enlutado acredita e não acredita, simultaneamente, na perda do objeto de apego. Worden pontua em seu livro ‘Aconselhamento do luto e terapia do luto’ que

Embora a realização dessa primeira tarefa do luto leve um tempo, os rituais tradicionais, tais como o funeral, ajudam muito os enlutados a direcionarem-se para a aceitação. Aqueles que não comparecem ao enterro podem necessitar de formas externas para validar a realidade da morte. A irrealidade é particularmente difícil no caso de morte súbita, sobretudo se o sobrevivente não viu o corpo da pessoa falecida.

  • Segunda tarefa: processar a dor do luto – ao contrário do senso comum, falas como “ele não gostaria que você se sentisse assim”, “você é jovem, a vida continua” e semelhantes podem ter um efeito negativo e dificultar a realização dessa tarefa, reforçando a negação e as defesas. A ausência da realização dessa tarefa pode resultar numa supressão do sentimento, usando mecanismos como lembranças unicamente positivas ou uso de drogas lícitas e ilícitas para evitar pensamentos, além de soluções geográficas como constantes viagens. Se essa tarefa não for cumprida corretamente, pode ser necessário buscar terapia posteriormente para conseguir elaborar e processar a dor. Entretanto, este se trata de um caminho mais difícil devido à supressão. 
  • Terceira tarefa: ajustar-se a um mundo sem o objeto de apego –  Esse ajuste é dividido em três áreas: o ajuste externo, o ajuste interno e o ajuste espiritual. A primeira trata de encontrar um sentido para a morte, dentro de um contexto geral. A segunda, sobre como a morte afeta a percepção do indivíduo sobre si mesmo. E a terceira, por fim, fala sobre a percepção de mundo. A não realização dessa tarefa implica em um fracasso na adaptação. Entretanto, Worden ressalta que “[A] maioria das pessoas não segue esse caminho negativo. Elas geralmente decidem que devem preencher os papéis, nos quais estão desabituadas, desenvolver habilidades que nunca tiveram e seguir em frente com percepção renovada de si mesmas e do mundo.” 
  • Quarta tarefa: estabelecer uma conexão duradoura com o objeto de apego perdido e iniciar uma nova vida – Worden comenta que é difícil estabelecer uma expressão que defina a não realização dessa tarefa, mas resolveu definir como “não viver”. Um dos maiores obstáculos para a completude dessa tarefa é ficar preso ao vínculo perdido, ao passado, dificultando a construção de vínculos novos. Podemos definir a conclusão dessa tarefa como uma aceitação e início de um novo ciclo sem perder a consideração pelo outro. Em um luto relacionado ao fim de um relacionamento, seria como “Existem outras pessoas para amar, embora eu ainda ame essa pessoa”.

O LUTO NA PANDEMIA: FATORES DE RISCO ASSOCIADOS E DIRETRIZES PARA UMA ELABORAÇÃO SEGURA

(Reprodução: Shutterstock. Descrição da imagem: Ambiente escuro. A silhueta de uma pessoa, aparentemente um homem, abre as cortinas de uma janela que vai do teto ao chão, o uma fonte de luz, possivelmente o sol, ilumina o ambiente.)

É imprescindível estabelecer estes primeiros conceitos para que possamos traçar um paralelo com o momento atual: a pandemia da COVID-19. O luto tem sido um dos temas mais atuais, devido a pandemia da COVID-19. Apesar disso, ainda é tratado como um tabu. E, mais do que nunca, esse tabu precisa ser ultrapassado: a má ou inexistente elaboração correta do luto pode ter grandes consequências. Existem alguns fatores de risco relacionados à pandemia que podem causar alterações na elaboração do luto:

  • Mortes mais frequentes –  que interferem no tempo e disponibilidade dos rituais culturais de elaboração do luto;
  • O fator de infecção – os rituais de despedida são prejudicados no sentido de serem impossibilitados ou limitados devido ao risco de infecção pelo vírus. Existe uma limitação de número de pessoas, de tempo, de possibilidade ritualística, dentre diversas outras;
  • O luto antecipatório – sendo este um mecanismo que ajuda a elaborar melhor o luto, pois se dá diante de doenças sem possibilidade terapêutica de cura, o fato de muitas vezes o óbito se dar de forma muito rápida impossibilitando a elaboração do luto antecipatório também é um agravante;
  • Perda de mais de uma pessoa próxima
  • Fragilidade da rede socioafetiva devido ao isolamento social e da rede socioafetiva devido ao distanciamento social.

Desta forma, existe uma maior possibilidade de desenvolvimento de um luto complicado e, por consequência, de um impacto considerável na saúde mental. 

Anteriormente, estabelecemos a ideia de que o luto não se dá apenas na perda de um indivíduo significativo, mas também de relações, de acesso a ambientes importantes, etc. Neste sentido, e considerando a necessidade do distanciamento social, podemos concluir que existe também um processo de luto relacionado à vida anterior a pandemia: um luto pela liberdade. E esse luto também transpassa os estágios/fases/tarefas estabelecidas pelos teóricos anteriormente citados. Também é um causador de sofrimento, e não obstante, tem um potencial de complicação, já que existe uma dificuldade de um olhar esperançoso para o futuro, devido a falta de políticas públicas efetivas a favor de um distanciamento social proveitoso e funcional, além da busca pela vacina e por uma campanha de vacinação abrangente estar encontrando diversos obstáculos em termos de material, investimento, organização, logística, corrupção, etc. 

Pensando nisso, a Fundação Oswaldo Cruz, em sua cartilha sobre os processos de luto relacionados ao COVID-19 estabeleceu recomendações para a elaboração do luto de forma a evitar grandes complicações em saúde mental. Destas recomendações, podemos destacar:

  • Impossibilitada a presença física, propor estratégias remotas de despedida – como ligações, chamadas de vídeo, mensagens de voz, cartas, e mails em despedida ao ente querido;
  • Quanto aos rituais funerários adiados, impossibilitados ou com tempo limitado, elaborar um memorial em casa;
  • Livro de visitas online para que amigos e familiares deixem mensagens de conforto e condolências;
  • Rituais fúnebres alternativos – como missas e cultos virtuais, homenagens virtuais;
  • Fortalecimento das redes espirituais – uma rede espiritual é um fator de proteção quanto ao luto complicado. É importante o estabelecimento de contato virtual com líderes religiosos.

É importante ressaltar que, se você ou algum conhecido estiver enfrentando dificuldades no processo de luto, não hesite em buscar ajuda. Entre em contato com alguém de confiança. E se mesmo assim não se sentir seguro, busque acompanhamento psicossocial.

 

REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE LEITURA

A FIOCRUZ elaborou um livro, com todas as cartilhas voltadas para saúde mental e atenção psicossocial na pandemia COVID-19. Grande parte do texto, incluindo a ideia, veio dessas cartilhas e do curso ministrado por eles. Link para download

O Aconselhamento do Luto e Terapia do Luto, do Worden, foi uma base imprescindível para a elaboração deste texto. Recomendo a leitura para o entendimento do funcionamento do luto, principalmente para quem tem interesse em trabalhar na área. 

Talvez Você Deva Conversar com Alguém, de Lori Gottlieb, também foi primordial no surgimento da ideia, já que trata essa questão do luto de forma leve e divertida. Um grande livro.

Os livros da Elisabeth Kubler-Ross também são uma grande base para a obtenção de conhecimento sobre o assunto. 

 

Nesse texto também foram utilizados os seguintes artigos:

DALBEM, Juliana Xavier; DELL’AGLIO, Débora Dalbosco. Teoria do apego: bases conceituais e desenvolvimento dos modelos internos de funcionamento. Arq. bras. psicol.,  Rio de Janeiro, v. 57, n. 1, p. 12-24, jun. 2005. Disponível aqui.

NASCIMENTO, Cecilia Cassiano et al . Apego e perda ambígüa: apontamentos para uma discussão. Rev. Mal-Estar Subj.,  Fortaleza, v. 6, n. 2, p. 426-449, set. 2006. Disponível aqui.

CREPALDI, Maria Aparecida et al . Terminalidade, morte e luto na pandemia de COVID-19: demandas psicológicas emergentes e implicações práticas. Estud. psicol. (Campinas),  Campinas, v. 37, e200090, 2020. Disponível aqui.


Dhiulyane Farias Gomes Fuentes, mais conhecida como Dhiulyane Gomes, ou só Dhiu. 20 anos, Graduanda em Psicologia. Apaixonada por música e livros, militante nas horas vagas, aspirante a cientista e pesquisadora. Fã da Débora Noal, Beyoncé, e Emicida. Sonha em viajar pelo mundo, pintando tudo de AmarElo, tirando a dor do peito do outro, e provando que o Preto é Rei. Ah, sim, eu sou a filha da professora Daiane, e neta da professora Maria do Carmo!