Quando a gente pensa em direito, costuma lembrar do conjunto de leis que manda a gente fazer algo de um jeito e não do outro, que proíbe chutar o amiguinho ou, no caso de alguém da linha mais marxista, pensa num instrumento de dominação da classe burguesa. Mas tem uma relação que não parece ser tão evidente, aquela entre o direito e a linguagem. Já vou adiantar que é uma relação de ódio, amor e, por vezes, dominação (no mau sentido).

Quando pensamos no direito moderno, o relacionamento começa com um período de estranhamento, em que as partes não se conhecem ou, ainda que se conheçam, não notam o quanto já estão ligadas uma com a outra. Foi assim que aconteceu no nascimento do direito moderno, lá, após na Escola da Exegese (já falei dela no texto sobre direito e justiça, dá uma conferida lá).

Essa escola nasceu no período napoleônico, em plena vigência do primeiro Código Civil, o Código Napoleão. Esse código tinha a pretensão de prever a consequência jurídica de todos os fatos que poderiam acontecer e a pretensão de ser de uma clareza tamanha que qualquer pessoa, ao lê-lo, saberia o que diz a lei.

Foi nesse berço de ouro em que o direito começou a desdenhar a linguagem. O comportamento imprevisível que essa tinha não se ligava ao formalismo que era esperado dele. Por isso, essa fase de desdém do direito pela linguagem se marcou pela afirmação de que o juiz não devia interpretar a lei, mas apenas aplicá-la. A interpretação, dizia-se, equivale a mudar o sentido pleno que o texto da lei tem. Mal sabia o direito o quanto a linguagem já o tinha marcado.

Nesse meio tempo, aconteceu algo chamado giro linguístico, e as pessoas começaram a ver a linguagem de uma forma diferente, perceberam que as palavras não podem ser dominadas, pois nenhuma palavra ou conjunto de palavras tem um sentido próprio, fixo no texto, ao contrário, o sentido é sempre construído com a interpretação, que, por sua vez, varia conforme a pessoa que está interpretando. Diante disso, toda aquela ilusão de que o direito não precisava da linguagem foi desfeita. Mas devo dizer que não foi amor à primeira vista.

Com essa sacudida que o direito tomou, num primeiro momento, ele não soube muito bem lidar com o relacionamento que nascia. Seguindo os conselhos de um austríaco, chamado Hans Kelsen, e de um inglês, chamado Herbert Hart, decidiu que era ele quem mandava. Já não acreditava na existência de um sentido pleno do texto da lei, pois percebeu que a linguagem mexe muito com os sentidos e passou a afirmar que a lei sempre tem uma textura aberta (Hart), que sempre deixa uma moldura de significados possíveis (Kelsen).

Mas esse direito, ainda muito nariz em pé, não queria saber de entender e aprender com a linguagem. Por isso, já que alguém tinha que dar um significado ao texto, deixou para o juiz decidir, conforme sua vontade, qual o sentido que suas leis deveriam adotar, afinal, o homem sempre confia mais nos bros que na crush (carinha virando os olhos).

Vendo que isso não ia dar certo a longo prazo, o direito começou a ouvir um tal de Norberto Bobbio, e começou a querer aprender mais sobre a linguagem. Bobbio começou a ensinar um pouco sobre a natureza da linguagem. Disse que há uma diferença entre um enunciado, que não passa de um conjunto de palavras, e a proposição que se tira desse enunciado, ou seja, o significado que esse conjunto de palavras tem; contou que um mesmo significado pode ser expresso por vários enunciados diferentes e que era papel do direito buscar, sem ignorar a linguagem, qual era o melhor sentido do texto. Assim é que o relacionamento dos dois amadurece.

Foi um amigo do direito, Robert Alexy, quem disse que o direito só existe com a linguagem, que sequer são coisas distintas (almas gêmeas, se preferir), pois aquilo que é da própria essência do direito, as normas jurídicas, não existe sem a linguagem. A norma jurídica não é a lei, também não é um texto escrito. A norma jurídica é a interpretação que se dá ao texto, e essa interpretação não é pré-estabelecida e só pode ser alcançada em conjunto com a linguagem, daí essa união indissolúvel, o casamento entre direito e linguagem.

Devo confessar, contudo, que o relacionamento não é livre de problemas. Por vezes o direito, machista que é, tenta se apropriar da linguagem por meio de seus bros, os juízes, que querem monopolizar o poder de dizer o direito, mas a gente sabe que é só a partir de uma linguagem livre e sem amarras do poder daqueles que a querem dominar é que o direito pode alcançar o seu melhor.

Mas como seria isso possível? Da mesma forma que o direito não existe sem a linguagem, quem é o direito sem os bros, ou pelo menos alguém que o interprete e o aplique pra resolver os conflitos? Os estudos críticos da linguagem, que se basearam muito em Foucault, nos ajudaram a ver que a forma como interpretamos um texto está permeada da nossa cultura e vivência. Consequentemente, um mesmo texto pode ser interpretado de diversas formas em épocas diferentes, ou até mesmo em situações diferentes em uma mesma época. Ou seja, haja pitaco de bros nesse casamento!

A própria linguagem só é viva e mutável (livre) porque está em uso. E esse uso vai sempre levar à disputa entre o novo e o velho, entre a mudança e a permanência. Consequentemente, a uma disputa de poder. Se quem tem mais poder prefere a permanência, as mudanças serão mais lentas. Com isso, uma coisa tem que ficar clara: nem todo pitaco é ruim… As leis são também um reflexo da sua época e, eventualmente, ficam defasadas. É preciso, então, muitos pitacos para que o casamento seja repensado. Vão ter sempre os que gostavam mais como era antes, faz parte da vida.

O que não podemos deixar acontecer é o domínio dessa linguagem apenas por aqueles que se acham os donos do direitos. Para que esse casamento seja o mais democrático possível, é preciso que a linguagem não seja comandada apenas pelo direito, ao contrário, é preciso que as normas do direito, ou seja, a interpretação do texto legal, se construa a partir de uma linguagem inclusiva da qual participe toda a sociedade.

Texto escrito em parceria com A Debbie Cabral.

Bibliografia

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. 3. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução e notas de Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.

BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Tradução de Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 2. ed. rev. Bauru: EDIPRO, 2003.

HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. 3. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

 

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