Hoje quero contar uma história. Uma história de terror, dessas que contávamos entre amigos, em noites de lua cheia, quando não tínhamos internet. Uma história sobre o passado e sobre o futuro. Quero falar sobre forças obscuras e fantásticas, que você pode até não acreditar, mas que influenciam a sua vida. Que sempre influenciaram!

Todos nós já percebemos que estamos vivendo tempos estranhos. O nosso mundo nunca foi um lugar normal, mas algo parece estar errado, familiarmente errado. Na verdade, a segunda década do século XXI trouxe consigo manifestações de uma entidade muito poderosa e sedutora. Este ser tem demonstrado claramente a sua vontade de reinar em nossa sociedade novamente; embora dela nunca tenha se ausentado. Ela, absolutamente fascinante, está rondando as nossas frágeis e desguarnecidas casas. Não mintam, por favor, vocês também já sentiram a sua presença. Todos já sentiram a sua presença. E todos se sentem, de certo modo, atraídos por ela. Pouquíssimos resistem às suas generosas promessas. Muitos sucumbem ao seu charme. Cada pessoa tem os seus motivos para tal: suas características físicas, sua inteligência, suas posses, seu passado, seu futuro, suas crenças e opiniões… A ideologia talvez seja o motivo preferido dela. No final, todas as motivações se resumem aos privilégios que seriam conquistados ao se dar a mão a esse ser poderoso. Ela possui muitos nomes. No passado, já foi chamada de Soberba, mas seu nome predileto é Superioridade! De fato, ela possui inúmeros outros nomes, dos mais aprazíveis, como Vontade de Ser Melhor, Mérito e Excelência, aos mais sombrios, como Supremacia, Ascendência e Poder, dentre tantos outros.

Os Monumentos: Vitória e Superioridade

Como disse antes, todos se sentem atraídos por ela. A Ambição – outro de seus nomes – é uma motivação natural e importante para o bem-estar individual e para a sociedade. Caso contrário, se não tivéssemos uma tendência à superação pessoal, a apatia poderia nos abater profundamente. No entanto, não é incomum a Ambição galgar as suas intenções originais, se transformando em Ganância ou em Sede por Poder. Aqui, a sua capacidade de sedução fica mais forte, extrapolando os limites socialmente aceitáveis. O encanto dessa entidade cresce conforme o indivíduo seduzido sente o gosto doce dos privilégios e das regalias trazidas por ela. Sua força pode crescer ao ponto da pessoa seduzida não se sentir apenas melhor do que os outros, mas dela começar a enxergar os outros como piores. Inferiores, na verdade! Neste ponto, as portas para o lado mais nefasto e perverso do ser humano se abrem.

O Sentimento de Superioridade frequentemente se alia à Moralidade, outra entidade quase tão poderosa quanto a primeira. (Esta, quase sempre falsa, se traveste muitas vezes de Religião ou de Ideologia.) Assim, o seduzido, se sentindo ao mesmo tempo superior e justo, passa a enxergar o outro, o “inferior”, como o seu inimigo, como alguém moralmente condenável: a fonte de todos os males. E todos nós, criados em uma cultura na qual os princípios morais individuais nos são impostos desde que nascemos, sabemos que o “mal” deve ser imediatamente eliminado, certo?! Para tal, o inimigo também deve ser exterminado. Mas, o mau é sempre o outro, o inferior, o judeu, o negro, a mulher (origem do pecado), os comunistas, os gays, os mulçumanos, os pobres, os doentes, os fracos, etc. Aliada à Moralidade, a Superioridade já se personificou na figura de muitos Líderes ao longo da história, assumindo nomes como Adolf, Josef, Benito, Augusto, Napoleão e Donald, para citar apenas alguns poucos. Juntas, já pariram inúmeras políticas de estado, enraizando ainda mais seus tentáculos na cultura de muitos povos. Seus filhos são conhecidos como Eugenia, Escravidão, Apartheid, Genocídio, Pogrom e Colonialismo, dentre tanto outros. A Superioridade e seus filhos sempre estiveram por perto.

Os Efeitos: Filhos da Superioridade

Certamente, o seu retorno triunfal não é uma novidade do nosso tempo; essa entidade é muito antiga e está presente mesmo em outros animais. Sua forma ancestral é chamada de Dominância, também conhecida como Hierarquia. Ela já causou a fome e a morte de inúmeros animais. Este ser nasceu para garantir o controle de recursos escassos (que hoje chamaríamos de riqueza) e da reprodução (que poderíamos chamar de atração sexual). Ou seja, sua origem é natural, e a natureza também sabe ser extremamente cruel quando quer. Por outro lado, o seu passado também está ligado ao sobrenatural. Até mesmo as crenças religiosas já perceberam os seus potenciais malefícios. Além da Soberba ser um dos sete pecados capitais para o cristianismo, ela já foi comparada diretamente a Lúcifer por Peter Binsfeld*, bispo e teólogo do O Líderséculo XVI. Ou como o próprio diabo diria, na voz de Al Pacino, no filme Advogado do Diabo: Vaidade, definitivamente meu pecado favorito.

O Sentimento de Superioridade está rondando a nossa sociedade novamente. Ela adentra com muita voracidade no século XXI. As redes sociais, seus altares modernos, a fortalecem rapidamente. A Moralidade está formando uma nova e poderosa aliança com ela. Na verdade, ambas crescem muito em tempos de crise. E uma crise singular se avizinha: as mudanças climáticas prometem impactar a “economia” de diversos países e, talvez, alterar a dinâmica geopolítica mundial. Já vimos os efeitos dessa aliança no passado; já vimos a extensão do seu poder em tempos de incertezas. A Superioridade pode fazer você aceitar o inaceitável, a Desculpa Moral pode fazer você justificar o injustificável. Juntas, elas conseguem derrotar o bom senso em um piscar de olhos, mesmo em pessoas anteriormente sensatas. Para elas, a democracia é apenas um peão em um tabuleiro de xadrez, que em nome do Rei pode ser sacrificado a qualquer momento. Aí, neste ponto, acabou. Xeque mate! O resto é história. E a história pode virar lenda e a lenda pode virar mito, fazendo com que as coisas que não deveriam ser esquecidas sejam… enaltecidas.

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Notas

*Defensor do uso da tortura como método para obtenção de confissões de “bruxas”. Vale mencionar que mulheres foram realmente torturadas até a morte e que – pasmem! – bruxas nunca existiram.
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Para quem quiser saber um pouco mais sobre o assunto:

Johnson, D. (2004). Overconfidence and war: The havoc and glory of positive illusions
Alicke, M. et al. (2005). The Better-Than-Average Effect
Jordan, C. et al. (2005). Types of high self-esteem and prejudice: How implicit self-esteem relates to ethnic discrimination among high explicit self-esteem individuals.
Johnson, D. et al. (2006). Overconfidence in wargames: Experimental evidence on expectations, aggression, gender and testosterone
Beer, J. et al. (2010). Neural systems of social comparison and the “above-average” effect
Bas, M. et al. (2016). Mutual optimism as a cause of conflict: Secret alliances and conflict onset
Cabral, J. et al. (2019). Effects of anger on dominance-seeking and aggressive behaviors
Cabral, J. et al. (2020). Do otimismo à agressão: cognições positivas preveem comportamento violento em homens
Cheng, J. (2020). Dominance, prestige, and the role of leveling in human social hierarchy and equality