E finalmente 2020 está chegando ao fim! O ano se provou um dos maiores desafios do século logo no início, quando fomos bombardeados por notícias estranhas e sombrias praticamente o tempo todo. Foram tantas informações que de vez em quando nem conseguimos nos lembrar direito de tudo o que já aconteceu até agora! No cenário alimentar não poderia ser diferente…

Tivemos tantas discussões com esse tópico que é normal que tenhamos nos estressado ou pelo menos discutido sobre algum assunto em particular envolvendo alimentação neste ano. Acredita que não? Então neste texto irei mostrar as principais notícias que envolveram os debates sobre alimentação no Brasil e no mundo em 2020!

As informações serão passadas na medida em que aconteceram. Espero que a discussão seja complementada com as informações dos leitores sobre estes eventos e outros que não passaram para o texto final! Sem mais delongas, vamos voltar no tempo agora.

10 – O caso da cerveja assassina (contaminação na cervejaria Backer)

A cervejaria que fabrica marcas de cervejas artesanais ficou famosa após a contaminação de lotes inteiros por dietilenoglicol, um subproduto transformado dos filtros de refrigeração, de alto potencial neurodegenerativo. Algumas das vítimas dos lotes contaminados observam até hoje sintomas como surdez parcial, perda de controle em músculos da face e até mesmo problemas de visão, quando não houve as mortes antes da apreensão dos lotes contaminados [1]. Ultimamente as famílias vítimas de pessoas intoxicadas estiveram revoltadas com a empresa, pois a mesma alega problemas para pagar as despesas hospitalares dos intoxicados e ao mesmo tempo insiste na reabertura do seu Templo Cervejeiro, com direito a chef de cozinha renomado.

Das 29 pessoas infectadas, somente 11 receberam algum ressarcimento da empresa [2]. Discussões na internet sobre a melhoria das condições de proteção ao consumidor e de riscos epidemiológicos para a empresa deste porte foram levantadas até março deste ano.

Cervejas artesanais sempre se venderam como substitutos regionais mais saudáveis e interessantes dos que a versão do produto industrializado, porém este caso de contaminação em especial colocou em xeque a isonomia dos profissionais da área e a construção do discurso romantizado e elitizado dos seus produtos. O setor inteiro teve que se reinventar com base neste novo paradigma de segurança para manter o crescimento da produção.

9 – Alimentação estranha na China e covid-19

O grande astro de 2020 já chegou batendo na porta das discussões em cultura alimentar! Quando o coronavírus ainda parecia uma discussão de outro mundo no início do ano, já em fevereiro começaram os estudos sobre o papel da alimentação com animais selvagens (em especial o morcego e o pangolim [3]) para a mutação que deu origem a Sars-cov-2, variedade letal de coronavírus conhecido como covid-19.

 

Muitos debates foram levantados sobre os alimentos comercializados no mercado de Wuhan da China e do papel do povo e do governo chinês como responsáveis por toda esta situação, indo de encontro a discursos de xenofobia e atitudes de preconceito contra povos asiáticos e sino-descendentes.

 

De forma entristecida, observou-se que a mesma discussão não cresceu para o sentido de buscar a preservação e o respeito pelos mais variados animais selvagens que servem de alimento para a população urbana e rural, procurando somente encontrar os culpados certos e não um meio de evitar a repetição do acontecido. O próprio mamífero de escama corre risco de extinção na China, com o governo popular retirando o registro das escamas de pangolim como um item da medicina tradicional chinesa [4].

8 – A enchente de protestos dos entregadores delivery

Em março deste ano a região sudeste foi invadida por chuvas torrenciais que serviram para demonstrar algumas das medidas públicas mais urgentes, e outras que pouco estava sendo discutidas até então. Entre elas, os sujeitos que trabalham em condições de hiper-solicitação de entrega de alimentos, com a imagem de um entregador delivery sendo romantizada por tentar ultrapassar os paredões de água para distribuir o alimento (texto aqui). Geralmente estas pessoas possuem pouco vínculo de trabalho com a empresa contratante de seus serviços e querem abandonar o trabalho logo na primeira oportunidade, pelo grande imediatismo que é imposto aos motoboys.

A situação deslocou-se para uma direção inédita no país em maio e junho, com associações de motoboys iniciando os primeiros protestos de melhoria da qualidade de vida no trabalho [5]. Não é só porque para alguns é um bico que o respeito não deve ser resguardado, porém os frutos dessas lutas só serão colhidos no futuro…

7 – Não adianta chorar pelo leite bebido

Ainda no final de maio, mais uma situação inusitada. Com vista à promoção do desafio do leite dos produtores familiares, o presidente Bolsonaro e sua equipe técnica tomaram um copo do líquido em uma de suas lives programadas.

A situação gerou uma onda de reclamações por supostamente o presidente estar endossando a atitude de supremacistas brancos de forma velada [6]. Protestos raciais estavam bombando na mídia internacional, fazendo com que pessoas associassem o racismo explícito com a atitude da figura pública. O exemplo surgiu como um bom caso de transfuncionalidade alimentar, onde um mesmo ato gera mais de um significado dependendo do receptor da mensagem, apesar de pouquíssimos fatos que comprovem interesses ocultos do presidente neste momento em especial.

6 – O fim do impacto ambiental da produção de soja?

Com uma das produções mais ambientalmente impactantes do Brasil, a soja brasileira segue em discussões sobre as mudanças climáticas e proteção ambiental que facilmente poderiam ir para um texto só dela. Porém, o governo chinês – seguindo a linha de produção mais sustentável – planeja a compra do produto somente que tenha sido rastreada e que não venha de ambiente de desmatamento, 100% rastreada em 2023 [7]. Sendo o principal destino mercadológico da produção do grão, o posicionamento do governo chinês irá mudar radicalmente o processo deficitário pelo qual o alimento é produzido, tentando diminuir o efeito de barreira alfandegária que a medida pode impor ao país.

Com a ascensão de novas figuras na política internacional – como o democrata Joe Biden, novo presidente dos Estados Unidos – espera-se que uma postura ambientalmente mais correta irá influenciar pressões nos quesitos de sustentabilidade e responsabilidade de mercado. Como os dirigentes de Brasília irão se comportar perante aos novos dilemas? Essa resposta ficará para a posteridade.

5 – O frango que pegou covid

Já em julho o inesperado atacou novamente. Um lote de frango exportado do Brasil para a China foi recusado por traços de covid-19 em suas embalagens primárias [8]. Até o momento, poucos eram os alardes dos conglomerados de exportação de alimentos com relação a suas inspeções sanitárias, mas o acidente pôs o governo das Filipinas em situação de cancelamento da compra do produto, atiçando o sinal vermelho das autoridades agroexportadoras quanto nossos requisitos de higiene e segurança no trabalho.

A inspeção sanitária de produtos, embalagens, recipientes, equipamentos e utensílios sempre sofreram de maiores níveis de rigorosidade com relação aos produtos que saem do país, gerando uma situação de assimetria de qualidade entre os produtos que vão para o exterior e aqueles utilizados no mercado interno. O susto serviu para lembrar as autoridades que não adianta manter medidas de discriminação entre os dois mercados, pois no final das contas a qualidade de produtos só consegue sobreviver em um ambiente que seja propício para o seu desenvolvimento, com instituições oficiais que sejam fortes para a proteção, promoção e recuperação da saúde e da qualidade higiênico-sanitária.

Atualização: Um lote de carne de alcatra bovina desossada sofreu novamente com a presença de ácidos nucléicos (famoso DNA) de covid-19 em suas embalagens na alfândega chinesa, agora em novembro [13]. A empresa sofrerá de suspenção temporária determinada pelo governo chinês, mas o susto foi grande o suficiente para suscitar a discussão novamente no meio especializado.

4 – Você (não) queria ser como eu!

 

 

Em agosto tivemos uma situação que fomentou as maiores discussões sobre o tema de racismo no ano no Brasil. Um caso de preconceito, em que um “jovem adulto” gritou ofensas a um entregador de alimentos pelo seu suposto atraso na entrega de uma refeição, seguido de injúrias raciais e de classe gravadas e compartilhadas na internet. O caso levou a uma comoção nacional por respeito aos motoboys, que muitas vezes são destratados de forma incisiva por motivos banais.

De toda forma, o motoboy conquistou a simpatia das pessoas na rede e conseguiu melhorar seu estilo de vida, mas nem sempre temos este desfecho na vida real. Mais para o final do ano, um caso parecido aconteceu em um condomínio, onde uma pessoa não quis liberar a entrada do motoboy por causa da cor da pele do entregador, com o condomínio encobrindo a identidade da pessoa ao máximo. A segmentação de pessoas no mercado de alimentos é um tema real e que cada vez está mais escancarado, com pessoas de determinadas etnias e classes sociais ocupando serviços como entregadores de comida e exposição de alimentos, e de outras etnias e classes trabalhando com mais facilidade como chefs de restaurantes caros e figuras de autoridade em órgãos oficiais de fiscalização e controle. Um texto sobre o tema estará em desenvolvimento em breve!

3 – Arroz dando susto nas pessoas

E pra quem pensava que Antropologia e Economia não andam de mãos dadas… Logo que o preço dos produtos considerados básicos na mesa dos brasileiros subiu de forma assustadora, a internet não deixou passar batido e muitas discussões a respeito do efeito do isolamento social e da economia foram colocados em posta. O interessante neste evento foi a tentativa de diferentes grupos de colocar a culpa em atitudes específicas ou medidas econômicas, como dizer que o preço aumentou por causa do isolamento social (economia estagnada e mais pessoas em casa consumindo) ou por causa das políticas de exportação para outros países, faltando no mercado interno [10]. Sabendo que a economia é mais do que um jogo de simples culpados e de relações causais diretas, a discussão ultrapassou barreiras do conhecimento por medo das pessoas com relação aos efeitos deletérios das últimas políticas públicas no ramo alimentício e as desgovernadas atitudes fiscais daqueles dias.

Paralelo a isto, observamos o quanto entender a economia pode ser importante para vermos a valorização de objetos culturais de formas diferentes [11]. No caso do arroz, as pessoas se tornaram mais observadoras com relação a quantidade do produto em marmitas e pratos feitos, objetivando demonstrar o quanto o produto ficou valorizado naquela época do ano.

2 – O guia que me fere

O Ministério da Agricultura, logo observando os pedidos da Associação Brasileira de Indústrias Alimentícias (ABIA), quis em outubro propor uma mudança no famoso Guia Alimentar Brasileiro – norma diretriz sobre a boa alimentação para as pessoas – mudando a definição de alimento ultra-processado como não sendo tão maléfico para a saúde. É de consenso entre as diferentes entidades alimentícias que alimentos nesta classificação podem trazer riscos sérios para a qualidade de vida do consumidor.

O verdadeiro objetivo do Ministério da Agricultura neste quesito foi posto em discussão, sabendo ainda que a entidade tem trabalhado ativamente para a liberação de agroquímicos sem estudos eficientes sobre a segurança alimentícia. Por enquanto a entidade não parece se pronunciar depois da repercussão negativa de sua declaração, mas só o fato de saber que documentos tão eficientes e certeiros como o Guia podem ser revisados deixa muita gente com medo das próximas ações do governo neste ramo…

1 – Onde existe paz, não existe fome

Chegando no meio de outubro, tivemos uma grande surpresa na entrega do Nobel da paz. A honraria foi concedida para o Programa de Alimentos da ONU, sinalizando orgulho da organização pelos esforços da entidade no combate a fome e na garantia de programas de segurança alimentar.

 

Ao representar o programa com o Nobel da paz, a instituição de renome mundial demonstra que existem pessoas que se importam em garantir condições de vida e de alimentação que sejam boas para a humanidade.

O ano de 2020 escancarou uma tendência avassaladora que crescia nos últimos tempos, com diversos países voltando ao mapa da fome e insegurança alimentícia de diferentes formas.

No Brasil vive-se um cenário desafiador para a área nos próximos anos, mas existem pessoas que lutarão com garra para dar a boa alimentação em cada estômago deste país, inspirados por iniciativas como o programa da ONU, e de tantas outras pessoas que fizeram disso um objetivo de vida!

E chegamos ao final do texto. Espero que tenha ficado agradável para a leitura. Algum fato passou batido que mereça destaque? Não deixe de comentar! 2020 foi um ano extremamente desafiador para todas as pessoas, mas também tivemos alguns momentos bons. Ter a oportunidade de escrever e receber comentários de pessoas tão entusiasmadas quanto eu, me deixou muito grato. Espero que possa continuar tendo imaginação e força de vontade para escrever textos cada vez mais interessantes para o leitor.

Continuaremos na luta para fazer a ciência cada dia mais divertida, boas festas e até o próximo ano!

 

Referências:

[1]: KUMPEL, Larissi. Caso Backer: vítimas ficam revoltadas com evento de relançamento de cerveja. Portal Estado de Minas Gerais, 18 out. 2020. Disponível aqui.  Acesso em 01 nov. 2020;

[2]: ALVES, Izabela. Das 29 pessoas intoxicadas, só 11 receberam algum ressarcimento da Backer. Portal O Tempo, 26 out. 2020. Disponível aqui.  Acesso em 01 nov. 2020;

[3]: JANUZZI, Nicoli. Pangolim, possível hospedeiro do novo coronavírus, corre risco de extinção. Portal G1, Campinas e região, 20 mar. 2020. Disponível aqui. Acesso em 01 nov. 2020;

[4]: CARBINATTO, Bruna. China retira escamas de pangolim de sua lista de itens de medicina tradicional. Portal Super Interessante, 12 jun. 2020. Disponível aqui. Acesso em 01 nov. 2020;

[5]: MUNIZ, Bárbara. Entregadores se unem por melhores condições de trabalho no aplicativo: ‘entrego comida com fome’, diz ciclista. Portal G1 SP, 21 jun. 2020. Disponível aqui. Acesso em 01 nov. 2020;

[6]: REDAÇÃO. Copo de leite faz Haddad acusar Bolsonaro de ‘brindar supremacistas brancos’; entenda. Portal Correio, 30 mai. 2020. Disponível aqui. Acesso em 1 nov. 2020;

[7]: LOPES, Fernando. Meta da chinesa Cofco é rastrear toda a soja no país até 2023. Portal Valor Econômico. Disponível aqui. Acesso em 1 nov. 2020;

[8]: UOL. China detecta coronavírus em asas de frango congeladas oriundas do Brasil. Portal UOL, 12 ago. 2020. Disponível aqui. Acesso em 01 nov. 2020;

[9]: CANOFRE, Fernanda. Entregador é chamado de lixo e sofre racismo de cliente no interior de São Paulo. Portal Folha de São Paulo, 7 ago. 2020. Disponível aqui. Acesso em 3 nov. 2020;

[10]: ADLER, Matheus. Com variação de quase 100%, preço do arroz continua em alta em BH. Portal Estado de Minas, 10 out. 2020. Disponível aqui. Acesso em 3 nov. 2020;

[11]: SOUZA, Felipe de. Restaurantes diminuem o arroz nas marmitas e sobem preço das ‘quentinhas’. Portal UOL, 19 set. 2020. Disponível aqui. Acesso em 3 nov. 2020;

[12]: G1. Conheça o programa da ONU que ganhou o Nobel da paz em 2020. Portal G1 Mundo, 9 out. 2020. Disponível aqui. Acesso em 3 nov. 2020.

[13]: VILARINO, Cleyton. China confirma Covid-19 em embalagem de carne bovina exportada pelo Brasil. Portal Globo Rural, 13 nov. 2020. Disponível aqui. Acesso em 23 nov. 2020.