Se você é uma pessoa ativa nas redes sociais, já deve ter ouvido ou lido em algum momento frases como “o mundo seria melhor se as pessoas fizessem terapia” e outras afirmações parecidas, transformando esse recurso na cloroquina[1] da saúde mental. Seria então a psicoterapia uma necessidade universal?

Antes de mergulhar no debate sobre a obrigatoriedade de terapia, existem algumas questões conceituais a se investigar pelo caminho, então embarque nesse carrossel onde o mundo não é faz de conta, mas sim cheio de tretas da vida e boletos a pagar.

Terapia X Psicoterapia

Termos sinônimos, terapia e psicoterapia ainda confundem muita gente. Em linhas gerais, terapias são um conjunto de práticas destinadas a tratar algum problema de saúde. Aí, para fins didáticos, usamos psicoterapia quando nos referimos a um acompanhamento que não utiliza fármacos e se destina ao cuidado com a saúde mental.

Por não ser um campo bem delimitado, esses termos geram altas polêmicas no meio psi, que datam desde a regulamentação da profissão no Brasil em 1962. Mas qual a origem desse babado todo? Simples, elas não são técnicas privativas do psicólogo. Isso significa que, em nosso país, outros profissionais podem intitular-se psicoterapeutas.

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Como assim, produção? Na prática, basta possuir um curso de alguma terapia e pronto. Então vemos se proliferando aos montes psicoterapeutas holísticos, consteladores, reprogramadores de DNA e outros tantos oferecendo serviços de saúde sem comprovação científica de eficácia – e sem um conselho profissional que os fiscalize e/ou proteja seus clientes de eventuais prejuízos.

Aí chegamos em outro ponto de discussão que sempre dá problema entre os Conselhos Regionais de Psicologia (CRP) e os meios de comunicação/publicidade: ser terapêutico é a mesma coisa que ser terapia?

Não entendeu? Eu explico: vez ou outra aparecem propagandas estilo “minha terapia é viajar/fazer compras/cafezinho com as amigas”… Pois bem, por mais que essas coisas tragam bem estar, elas não possuem técnicas próprias e não podem ser consideradas terapias, apesar do efeito positivo (ou terapêutico) sobre a saúde mental de alguém.

Mas como a terapia do psicólogo se diferencia desse mundaréu de coisas? Não é novidade para ninguém que tudo na Psicologia depende, então no caso das psicoterapias vai ser a mesmíssima coisa. Para facilitar o entendimento, pensemos em um grande armário – daqueles de arquivo – com várias gavetas e dentro delas algumas pastas com documentos. É a mesma coisa!

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Traduzindo: o armário é a Psicologia, cada gaveta é uma abordagem teórica que foi derivada de vertentes científico-filosóficas diferentes. Mas e as pastas? Aqui que a coisa complica um pouquinho: cada pastinha vai ser um modelo de psicoterapia diferente e existem vários que pertencem à mesma abordagem.

Por exemplo, dentro da abordagem Análise do Comportamento, você pode encontrar a Terapia Analítico-Funcional (FAP), a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), a Terapia Comportamental Dialética (DBT) e tantas outras. Cada uma vai ter suas próprias técnicas e ferramentas clínicas, porém possuem em comum uma filosofia central – nesse caso o Behaviorismo – da abordagem a que pertencem. As terapias são modos de colocar a abordagem em prática.

Dito isso, talvez vocês já tenham percebido então que a principal diferença da terapia feita com o psicólogo é a própria base teórico-prática, desenvolvida ao longo de anos de estudo não apenas do profissional que te atende, mas também dos pesquisadores que sistematizaram (e vem atualizando desde então) as abordagens psicológicas.

E como toda coisa boa tem seu lado ruim, isso também proporciona um certo “endeusamento” do trabalho (e da figura) do psicólogo clínico…

Necessidade X Benefício

Desde pequenos aprendemos que querer não é poder e muito menos precisar. Isso vai ser fundamental para que você entenda porque terapia não é uma necessidade universal.

Todos temos problemas, mas será que apenas isso é motivo suficiente para procurar atendimento? Veja, não estou dizendo que você precise sofrer sozinho lidando com uma situação difícil, porém nem tudo requer necessariamente a ajuda de um psicólogo. Por exemplo, alguém termina um relacionamento longo, está triste e logo lhe recomendam terapia. Mas porque essa pessoa precisa de atendimento se está reagindo de forma esperada e coerente àquela situação?

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Todos temos problemas, mas será que apenas isso é motivo suficiente para procurar atendimento? Veja, não estou dizendo que você precise sofrer sozinho lidando com uma situação difícil, porém nem tudo requer necessariamente a ajuda de um psicólogo. Por exemplo, alguém termina um relacionamento longo, está triste e logo lhe recomendam terapia. Mas porque essa pessoa precisa de atendimento se está reagindo de forma esperada e coerente àquela situação?

Ficar triste, ansioso, com medo, irritado (e outras) são reações absolutamente normais e comuns a experiência humana. Quando estão em níveis condizentes ao contexto e não trazem prejuízo a vida de quem as experimenta, não há NECESSIDADE de se fazer terapia. Isso não significa que a pessoa não possa ter benefícios caso queira entrar em processo terapêutico mesmo assim.

Outro ponto: não vai ser o psicólogo quem vai nos salvar de nossas emoções e angústias. Pelo contrário, em alguns momentos vai ser necessário trazer à tona questões desconfortáveis, desconcertantes e você ainda terá que pagar por isso direta (serviço particular) ou indiretamente (serviço público, pago com seus impostos).

E já que falamos de dinheiro, vale lembrar que psicoterapia é um serviço, é vendido. E faz muito sentido pensar que nós psicólogos também temos responsabilidade nessa falsa premissa de que “todo mundo deveria fazer terapia”, porque muitas vezes comercializamos nosso serviço assim, como a solução de todos os problemas/dores/angústias individuais e coletivos que enfrentamos diariamente. Mas não é!

Limites X Possibilidades

Todo processo terapêutico possui limites de naturezas variadas envolvendo o terapeuta e o cliente. Não vou listar todas aqui, apenas quero pegar 1: o mundo real é diferente do consultório. Isso é óbvio, mas o que quero dizer é que algumas das demandas trazidas pelos pacientes/clientes têm raízes em problemas sociais (racismo, LGBTQfobia, pobreza, violência, etc) e nunca serão solucionadas completamente em consultório. O terapeuta poderá trabalhar as sequelas disso, fornecer ferramentas para lidar com essas questões e compreendê-las de modo ampliado, porém esses problemas sociais estão muito além da capacidade resolutiva da psicoterapia individual.

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E falando em mundo real, existem pacientes/clientes que possuem demandas resolvíveis dentro de consultório, porém não podem pagar pelas sessões. Não vou entrar em mérito sobre os valores porque passamos muitos anos estudando, nos qualificando e devemos precificar nossos serviços de maneira justa. Meu ponto aqui é outro…

Preparado para mais uma dose de realidade? A quantidade de psicólogos na rede pública é muito inferior a necessidade e existem municípios que não possuem em seu quadro de servidores profissionais fazendo esse tipo de atendimento (psicoterapia de longa duração). Aqui vale um adendo: para tentar otimizar o serviço público de saúde e abranger uma quantidade maior de usuários, geralmente os psicólogos desenvolvem grupos terapêuticos, acolhimento emergencial e psicoterapia breve – que não são indicados para todos os casos, mas dão conta da maioria.

Entretanto, quando se fala do trabalho do psicólogo no SUS, quem vai determinar as modalidades de atendimento é a natureza do serviço, regido por regulamentações específicas. Nesse caso, os únicos locais que irão oferecer terapia de longa duração serão os ambulatórios/centro de especialidades médicas e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), cuja admissão de pacientes segue critérios próprios.

Aí você pode estar pensando agora: “Então lascou, como vou cuidar da minha saúde mental, se conseguir atendimento é tão difícil? ”

Cuidando da Saúde Mental

Aqui se encontra a cereja desse bolo em forma de texto: fazer psicoterapia é uma das formas de cuidar da saúde mental, porém não é a única! Ao dizer que todo mundo precisa de terapia, também estamos tirando das pessoas a autonomia (e responsabilidade) do cuidado consigo mesmas e delegando esse papel a figura do psicólogo.

Cabe aqui dizer que saúde não é entendida como a ausência de doenças, mas sim como um conceito ligado ao bem estar pleno de alguém. Nesse caso, a NECESSIDADE de acompanhamento se dá quando a presença de sintomas traz sofrimento e prejuízo a vida cotidiana do sujeito. Caso não haja necessidade, mas você queira fazer terapia, tudo bem também.

E as outras formas de cuidar da saúde mental? Vai parecer clichê, mas acreditem, não é.

  • Dormir o suficiente: o sono tem um papel importantíssimo na regulação corporal e sua falta pode exacerbar uns sintomas emocionais, principalmente de irritação, trazer prejuízos a memória e ao aprendizado;
  • Alimentar-se: não só dos nutrientes, também aquelas comidinhas não tão saudáveis que trazem bem estar – mas não exagere;
  • Fazer atividade física: mexer o corpinho é um grande aliado no controle dos níveis de cortisol (o “hormônio do estresse”), além de promover uma sensação de bem estar;
  • Ter uma rede de apoio: ou seja, amigos e familiares para dar uma mãozinha no meio do sufoco e também para jogar conversa fora – lembrem que somos seres sociais, então a solidão absoluta não nos faz bem;
  • Desenvolver uma rotina: funcionamos melhor reduzindo as incertezas (porque isso diminui os níveis de ansiedade e estresse) e ter um planejamento de como será o seu dia auxilia muito na manutenção da saúde mental;
  • Praticar hobbies: ter outras ocupações – além do trabalho – que te tragam prazer, relaxamento e desenvolvam novas habilidades é uma grande arma contra o tédio, te ajudando a praticar o autocuidado;
  • Ter momentos de ócio: nem todas as suas ocupações precisam ter um valor de aprendizado e desenvolvimento pessoal. É importante ter momentos “besteirol” e de não fazer nada para manter o equilíbrio.

Por fim, não há receita de bolo para cuidar da saúde mental, como também não há obrigatoriedade em fazer psicoterapia para isso. Desde que o mundo é mundo as pessoas possuem estratégias de autocuidado e cabe a você testar várias e encontrar aquelas que atendem às suas necessidades, ficando atento caso precise de auxílio profissional.

 

 

[1] Se você está lendo esse texto em um futuro distante, pode ter perdido os debates acalorados sobre o uso desse medicamento durante a pandemia de Covid-19. A comparação foi feita porque o medicamento funciona para lúpus (e algumas outras doenças), mas não em casos de Covid, assim como a terapia, que funciona para alguns casos, mas não é a solução para tudo.

 

REFERÊNCIAS:

CÓDIGO DE ÉTICA DO PSICÓLOGO

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