Dez anos se passaram desde o início do apocalipse zumbi, mas em The Walking Dead: World Beyond ainda existem garrafas plásticas de refrigerante que mantiveram o gás. Será que é possível mesmo?

Lançada em 2020, The Walking Dead: World Beyond é uma série derivada de The Walking Dead, que se passa 10 anos após o início do apocalipse zumbi e acompanha adolescentes que mal conheceram a vida antes dos zumbis.

Em dado episódio, os personagens encontram algumas garrafas intactas de um refrigerante muito famoso nos EUA. Um personagem um pouco mais velho que os principais diz que bebia o refrigerante como se fosse água quando era adolescente e abre a garrafa plástica.

E a garrafa faz barulho de gás escapando… depois de, no mínimo, 10 anos do envase! Esse acontecimento não é relevante para o episódio e nem para a série em si, sendo claramente uma propaganda, mas serviu para pensar: “será que após 10 anos do envase, um refrigerante lacrado ainda teria gás?”. Então, vamos tentar descobrir!

#ParaTodosVerem: Imagem em movimento de um homem abrindo uma garrafa de Coca-Cola com todo o gás saindo de uma vez.

Primeiramente, precisamos saber que os refrigerantes são formados basicamente por uma mistura de água, gás e um xarope que dá a cor e o gosto da bebida.

O gás utilizado é o dióxido de carbono, CO2, e por isso o processo de gaseificação é chamado de carbonatação.

Devido às características da molécula de CO2, esse gás atua como um ácido fraco de Lewis, reagindo com a água para produzir diferentes espécies químicas, dependendo do pH da solução. No caso do refrigerante o que ocorre é descrito pelas reações abaixo:

Reações químicas que ocorrem no processo de carbonatação. #ParaTodosVerem: (1) CO2 (dióxido de carbono) gasoso + H2O (água) líquida resultando em CO2 aquoso. (2) CO2 aquoso + H2O líquida resultando em H2CO3 (ácido carbônico) aquoso. (3) H2CO3 aquoso + H2O líquida resultando em H3O+ (íon hidrônio) aquoso + HCO3- (ânion bicarbonato) aquoso. (4) CO2 aquoso + 2 H2O líquida resultando em H3O+ aquoso + HCO3- aquoso. Todas as reações são reversíveis.

A reação (1) mostra a dissolução do CO2 em forma gasosa na água. Parte do gás dissolvido (ou na forma aquosa, como mostrado na reação) reage com a água formando ácido carbônico, como na reação (2). Esse ácido não se mantém nessa forma de molécula, mas se dissocia em dois íons, reação (3). O íon hidrônio, H3O+, diminui o pH da solução e a acidez resultante interage com nossas papilas gustativas equilibrando a doçura proporcionada pelo xarope adicionado à bebida. Dessa forma, o gás acentua o aroma e o sabor do refrigerante. Além disso, essa acidez também age como um conservante para a bebida. A reação (4) é a “soma” das reações (2) e (3). Daqui em diante no texto usaremos as reações (1) e (4). Além disso, todas as reações possuem setas duplas, indicando que são reversíveis.

Na fabricação de refrigerantes, o processo de carbonatação geralmente ocorre em duas etapas:

1. O primeiro passo na produção é a carbonatação da água em baixas temperaturas (4 a 8°C). Essa etapa é feita sob refrigeração, pois quanto maior a temperatura menos CO2 consegue se solubilizar na água.

Um ponto interessante a se notar sabendo disso é que ao bebermos o refrigerante, ele esquenta ao entrar no nosso corpo. Isso diminui a solubilidade do CO2 no refrigerante e o mesmo irá passar da forma aquosa para a forma gasosa. Quando a reação (1) ocorre no sentido da formação dos reagentes há absorção de energia térmica, ou seja, as moléculas de CO2 solubilizadas na água absorvem energia térmica do nosso corpo para conseguirem voltar à forma de gás. É daí que vem a leve sensação de frescor que sentimos ao beber bebidas gaseificadas.

Agora faz muito sentido o nome REFRIGERANTE. #ParaTodosVerem: imagem em movimento do meme de mentes explodindo com o conhecimento.

2. Ao final do processo de mistura da água gaseificada com o xarope, o refrigerante é envasado. Então, uma nova dose de gás é inserida dentro da embalagem aumentando a pressão parcial do gás e a garrafa é lacrada.

Tal como a baixa temperatura, o aumento da pressão parcial na garrafa também favorece o aumento da solubilidade do gás. Sendo assim, podemos dizer que o refrigerante lacrado é uma solução supersaturada de CO2 (tem mais CO2 dissolvido na bebida do que seria possível em condições normais de pressão e temperatura).

Quando a garrafa está fechada, a mistura é uma solução homogênea: não vemos separação dos componentes. Diferente de quando abrimos a embalagem: no momento da abertura ouvimos o barulho do excesso de gás que foi adicionado escapando e, a partir desse momento, começamos a ver bolhinhas no refrigerante.

Isso ocorre, porque quando a garrafa é aberta, mais uma vez o equilíbrio químico da reação (1) se desloca na direção dos reagentes, dessa vez devido à diminuição da pressão parcial do gás. As bolhinhas que vemos é, portanto, o CO2 que deixou de ser solúvel na bebida e escapa.

Se deixarmos o refrigerante aberto e/ou fora da geladeira podemos observar que as bolhinhas começam a diminuir com o tempo, até que a bebida tenha somente a quantidade de gás dissolvido possível na pressão e temperatura ambiente.

#ParaTodosVerem: imagem em movimento de um copo plástico com refrigerante, sendo possível observar as bolhinhas saindo da bebida.

 

“Ah, mas então se a garrafa estava lacrada por 10 anos, o gás ainda vai estar lá dentro!”
Será mesmo?

Se você costuma beber uma mesma marca e sabor de refrigerante com regularidade já deve ter percebido que às vezes há variação de sabor entre as diferentes garrafas (mesmo quando feitas do mesmo material). E o sabor do mesmo refrigerante envasado em diferentes tipos de embalagem então? Esse parece ser um consenso de que o refrigerante em garrafa de vidro é mais gostoso!

Essa percepção do sabor e o fato de ter gás ou não numa garrafa de refrigerante ainda lacrada após, no mínimo, 10 anos do envase podem ser relacionadas à mesma característica da embalagem.

Pense em algum alimento crocante, como uma bolacha (ou biscoito dependendo de onde você estiver lendo esse texto): é bastante claro que a embalagem desse alimento não pode permitir a entrada da umidade do ar para que a característica crocante do alimento seja mantida até que o mesmo seja consumido.

Diferentes materiais apresentam diferentes características, sendo que uma delas é a chamada permeabilidade ao vapor, que indica quanto vapor de água (umidade) consegue atravessar o material num determinado período de tempo (que também varia dependendo da temperatura e pressão). Ou seja, quanto maior for a permeabilidade ao vapor do material, mais umidade entra na embalagem… inclusive, essa é uma das características que determinam a validade dos produtos: mesmo que a bolacha em que você pensou ainda esteja longe de estar estragada ou de ter qualquer outro tipo de alteração no sabor ou odor, caso sua embalagem não permita que ela se mantenha crocante seis meses após a produção, esse será o prazo máximo para sua data de validade. O spin #1131 fala sobre prazos de validade, se você quiser saber um pouco mais.

A permeabilidade de um material a determinado gás pode ser definida como a taxa na qual esse gás consegue atravessar o material, dependendo de diversos fatores, tais como temperatura e pressão do ambiente e espessura e formato da embalagem produzida com o material. #ParaTodosVerem: imagem ilustrativa sobre a permeabilidade onde um pedaço de material apresenta furos de diversos tamanhos representando poros e há bolinhas coloridas que conseguem atravessar o material ou não, dependendo de seus tamanhos.

No exemplo de um alimento crocante, estamos interessados na umidade do ar entrando na embalagem, mas o mesmo vale para outros gases e que além de entrarem, também saem da embalagem. No caso de bebidas gaseificadas, como refrigerantes, é importante considerar a combinação da saída do dióxido de carbono (o que leva à sensação de que o refrigerante “está sem gás”) e a entrada de gás oxigênio (o que pode levar à oxidação de compostos responsáveis pelo sabor e odor da bebida).

Portanto, no caso de quem costuma consumir sempre a mesma marca de refrigerante, a variação de sabor percebida entre diferentes garrafas plásticas, por exemplo, pode estar associada ao tempo entre o envase e a abertura da embalagem. Isso porque um tempo maior permite que haja mais fluxo desses gases e, consequentemente, garrafas com diferentes tempos de estoque podem apresentar sabores diferentes.

No caso de garrafas plásticas, em cerca de 12 semanas, pode se perder mais de 15% do dióxido de carbono do refrigerante! Sendo que quantidade significativa do gás começa a escapar da garrafa apenas 4 h após o envase, como pode ser visto no gráfico abaixo.

Perda de CO2 inicial em gramas. Medida feita com uma garrafa PET de 1,5 L de refrigerante de Cola, a 24°C. Concentração inicial de CO2 na garrafa lacrada: 7 g/L. Adaptado daqui. #ParaTodosVerem: gráfico com a perda inicial em gramas no eixo y e o tempo em horas no eixo x. A partir de 4 h é possível ver o início da perda de CO2, que aumenta quase linearmente, chegando a perda de 0,040 g de CO2 após 36 h.

 

É importante apontar que no estudo em que foi preparado o gráfico acima foi utilizado uma garrafa PET de 1,5 L de refrigerante de Cola, mantido a temperatura de 24°C. Temperaturas mais altas, aumentam a permeabilidade aos gases, permitindo que mais CO2 saia da garrafa no mesmo tempo. E tanto a espessura da parede da garrafa, quanto o volume (razão área/volume na verdade) da mesma influenciam nesse fluxo dos gases. Isso também pode ser uma razão porque às vezes percebemos diferenças entre o sabor de um mesmo refrigerante numa garrafa de 600 mL e de 2 L (se você reparar até o prazo de validade são diferentes em tamanhos de garrafas diferentes e isso é também por causa da permeabilidade do material!)… Pois é, o negócio é complexo!

Outra medida feita com aquela garrafa de 1,5 L de refrigerante de Cola foi como varia o fluxo de CO2 para fora da garrafa com o tempo.

Fluxo de CO2 que atravessa a parede da garrafa PET. Medida feita com uma garrafa PET de 1,5 L de refrigerante de Cola, a 24°C. Concentração inicial de CO2 na garrafa lacrada: 7 g/L. Adaptado daqui. #ParaTodosVerem: gráfico com o fluxo de CO2 em gramas/ano no eixo y e o tempo em anos no eixo x. O fluxo se inicia com 16 g/ano e vai diminuindo quase linearmente até alcançar 2 g/ano após 1,2 ano. Após isso o fluxo diminui mais lentamente chegando a pouco menos de 1 g/ano ao final de dois anos.

Durante o primeiro ano, o fluxo de CO2 para fora da garrafa se reduz quase linearmente e depois tende lentamente para um fluxo nulo, o que faz sentido uma vez que quase não há mais CO2 na garrafa. É indicado nesse estudo que depois de um ano somente 25% da quantidade original de CO2 permanecia na garrafa e ao final de dois anos menos que 10%.

Até aqui falei somente sobre garrafas plásticas, mas como você já deve estar imaginando, os diferentes materiais utilizados no envase de refrigerantes (PET, alumínio e vidro) têm diferentes permeabilidades, ou seja, os gases atravessam a embalagem em taxas diferentes, sendo que o vidro é o material mais “impermeável” ao fluxo de gases (seguido pelo alumínio e por último o PET). Portanto, passado o mesmo tempo após o envase para os três tipos de embalagem, dentro da garrafa plástica vai ter menos gás (CO2) do que a lata de alumínio que por sua vez terá menos gás que a garrafa de vidro.

#ParaTodosVerem: imagem em movimento de uma garrafa de Coca-Cola de vidro, com as bolhinhas saindo.

 

E isso é válido mesmo para o gás dissolvido na bebida. Pensando que parte daquela dose extra de gás adicionado antes de lacrar a embalagem está escapando pelas paredes da mesma, sabemos que isso está diminuindo a pressão parcial do gás dentro da garrafa. Isso leva à diminuição da solubilidade do gás no meio aquoso, então parte do CO2 dissolvido no refrigerante sai da solução, vai para a garrafa em sua forma gasosa e, com o passar do tempo, irá sair da garrafa. Logo, se tivéssemos uma garrafa plástica e uma garrafa de vidro envasadas no mesmo dia e guardadas há muito tempo, quando abrirmos ambas as garrafas, a solução do refrigerante na garrafa plástica vai ter menos gás, o que vai ser percebido como sabores diferentes. Dependendo do tipo de refrigerante, do tempo de estoque e da forma de armazenamento, outras características do material e da bebida podem ser alteradas devido à interação entre eles, mas de forma geral, é por causa dessa diferença da permeabilidade entre os materiais das embalagens que o refrigerante em garrafa de vidro é mais gostoso!

Ainda que uma quantidade maior de CO2 seja colocada na garrafa plástica do que na garrafa de vidro para compensar esse tipo de perda devido à diferença de material, dependendo de há quanto tempo a garrafa foi envasada, essa quantidade extra de gás pode não ser suficiente e ainda perceberemos a diferença.

 

Voltando ao The Walking Dead…

#ParaTodosVerem: imagem em movimento do personagem Merle bebendo de uma garrafa e “oferecendo” a um zumbi.

Sabemos que:
1. Ainda que lacrada, a garrafa estava há, pelo menos, 10 anos sofrendo das variações da temperatura ambiente.
2. CO2 está constantemente saindo da garrafa por causa da permeabilidade do material, então em algum momento aquele gás extra adicionado ao final do envase já não estará mais presente, diminuindo a pressão interna do gás e, consequentemente, a solubilidade do CO2 na solução da bebida.
3. Além disso, quando a temperatura ambiente sobe, a solubilidade do CO2 diminui, deixando mais gás disponível na garrafa para escapar (e consequentemente “menos gás” na bebida).

Mesmo que no momento em que a garrafa foi encontrada ainda tivesse alguma quantidade de CO2 não solubilizado no refrigerante, será que essa quantidade seria suficiente para manter uma pressão interna maior que a ambiente, possibilitando um escape de gás que ouviríamos ao abrir a garrafa?

Considerando a quantidade de variáveis que vimos que envolvem tal problema, é arriscado batermos o martelo, mas baseado em toda essa teoria podemos fechar esse texto dizendo que: não, não seria possível ouvir esse escape de gás de uma garrafa de refrigerante de 10 anos!

#ParaTodosVerem: imagem em movimento do personagem Rick falando “They’re gonna feel pretty stupid when they find out” (“Eles vão se sentir bem idiotas quando descobrirem”, em inglês).

 

Referências:

Ashurst, P. R. (ed.). Chemistry & Technology of Soft Drinks & Fruit Juices. 3rd edition. Wiley, 2016

Kregiel, D. Health Safety of Soft Drinks: Contents, Containers, and Microorganisms. BioMed Research International, vol. 2015, Article ID 128697, 15 pages, 2015

Michiels, Y.; Puyvelde, P. V.; Sels, B. Barriers and Chemistry in a Bottle: Mechanisms in Today’s Oxygen Barriers for Tomorrow’s Materials. Applied Sciences, Vol. 7, No. 7, p. 665, 2017

Silva, L. A. et al. Solubilidade e reatividade de gases. Quim. Nova, Vol. 40, No. 7, 824-832, 2017

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Equilíbrio químico na água mineral

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Carbonated drinks & Vapour Permeability

Fizzy Drinks – flavour and CO2 escape