Imagine uma sociedade pautada por algoritmos, onde tudo pode ser quantificado, medido e analisado pela inteligência de máquina, fazendo com que as escolhas não sejam mais feitas por seres humanos, mas sim baseadas no interesse de grandes corporações. Por mais que essa descrição pareça combinar bastante com a nossa realidade, ela descreve o país ficcional de Qualityland, a melhor e mais incrível nação que já existiu, pelo menos segundo os publicitários contratados pelo governo.

Essa distopia escrita pelo autor alemão Marc-Uwe Kling se passa em um futuro distante, onde a tecnologia está tão integrada na vida das pessoas que basicamente tudo é moldado por escolhas perfeitas que são realizadas pelos sistemas de inteligência artificial. Nesse mundo, não existe mais espaço para erro ou incertezas, os cálculos são extremamente precisos, fazendo com que grandes empresas conheçam nossos desejos e vontades, adaptando seus produtos conforme são oferecidos a cada pessoa.

Essa sociedade “perfeita”, que está constantemente se moldando a você, com incríveis doses de revisionismo histórico, achou por bem mudar o nome dos seus cidadãos, e agora, todos tem como sobrenome a profissão exercida pelos seus pais. As pessoas também são separadas por níveis que vão de 1 até 99, e com isso recebem benefícios na sociedade, como passar na frente de filas ou mesmo abrir o sinal vermelho para que seu carro possa passar com o simples aceno de uma mão.

A grande empresa The Shop advinha as suas vontades e envia encomendas até a sua residência mesmo que o pedido não tenha sido feito, pois ela sabe até melhor do que você mesmo as suas vontades e necessidades. A tecnologia escolhe até mesmo seu futuro namorado ou namorada com base no seu perfil e histórico, encontrando a pessoa perfeita para você, desde que ela seja do seu nível.

É nesse mundo, que Peter Desempregado tenta levar a sua vida, sofrendo pelo recente término do seu relacionamento com Sandra Administradora, o que o colocou ainda mais abaixo de sua posição social. Ele é portador de um nível abaixo de 10, o que faz com que ele seja considerado um inútil, que não merece ter sua opinião considerada e que vive as margens do sistema.

É baseado nessa narrativa que também acontece uma disputa eleitoral bastante singular, na qual John Of Us e Conrad Cozinheiro estão disputando a presidência do país, com o complicador de que John é um androide, o primeiro de sua classe a tentar se candidatar a um cargo público.  Essa briga, com ânimos exaltados, se apresenta de dois lados, pois Cozinheiro é um populista ignorante e preconceituoso que não consegue ganhar as discussões com John. Mas, por outro lado, John também sofre com a desconfiança do público por ser feito de metal e engrenagens.

Tudo isso é pautado pelo recebimento de um brinquedo sexual em forma de golfinho que chega na casa de Peter Desempregado, que, na tentativa de devolver o mesmo, acaba entrando nos meandros do sistema e entendendo que nada é aleatório, mas sim coordenado para sanar interesses das grandes corporações.  Com isso, o personagem entende o mundo que o rodeia, suas complexidades e também a loucura que acomete uma sociedade que não tem mais uma personalidade, e que é controlada integralmente por cálculos e algoritmos otimizados.

É necessário refletir ainda, que o autor é muito competente em fazer metáforas, ironias e analogias à situação atual do mundo, criticando o acumulo de capital e os problemas que envolvem as sociedades organizadas. Ele faz isso de maneira leve e com pitadas de humor ácido, que se apresentam nas discussões entre personagens tão diferentes e que muitas vezes são espelhos de pessoas reais que conhecemos.

O livro Qualityland é um bom exemplo de ficção para os amantes do tema, mas também para pessoas que simplesmente querem ler uma boa história, que, além de entreter, busca tocar em alguns pontos importantes para a sociedade atual, mas sem perder o bom humor e a escrita afiada que aparece de maneira bastante clara nessa obra.